Forte, rico e empreendedor, o conde Jacques Bouly de Lesdain não se contentava com a banalidade. Quando desembarcou no Rio de Janeiro, no verão de 1908, o francês de 27 anos já havia percorrido boa parte da Ásia Central como adido diplomático, em "missões de exploração científica" pelos cafundós da Mongólia e da China.
Acompanhado de sua primeira esposa, a americana Mabel Bailey, também cruzara do Tibet até a Índia. Todas essas caravanas, em lombo de cavalos, mulas e camelos, eram relatadas em livros bem ilustrados que misturavam cultura e aventura.
Para o Rio, Lesdain trouxe um automóvel Brasier 16/26HP novo em folha. A marca estava em alta e, recentemente, havia conquistado com o piloto Léon Théry um bicampeonato na Copa Gordon Bennett (1904 e 1905), uma das principais competições automobilísticas naqueles anos pré-Grand Prix. Em uma carta, o conde relatou que tinha a ideia de abrir uma representação da Brasier no Brasil.
Seduzido pelo Corcovado (ainda sem o Cristo Redentor), Lesdain resolveu subir a montanha de carro, feito inédito numa época em que o único caminho até o pico era a estrada de ferro. O nobre foi chamado de maluco, mas conseguiu alcançar o topo e ganhou as manchetes dos jornais.
“Concorrente” foi do Rio a Petrópolis em três dias
Foi quando começaram os boatos de que alguém tentaria chegar a São Paulo de carro. Competitivo, Lesdain não vacilou e correu à garagem para convocar três amigos chauffeurs e mecânicos (os também franceses Henri Trotet, Gaston Conte e Albert Vivès). Os preparativos foram feitos às pressas: parte da carroceria do Brasier foi retirada, abrindo espaço para ferramentas, correntes, estopa, querosene e 18 latões de gasolina. Também foi incorporado ao grupo um garoto brasileiro, de 12 anos, cujo nome não ficou registrado para a posteridade.
Era a madrugada de 6 de março de 1908 quando o Brasier partiu da Garage Excelsior, no Centro do Rio, tomando o rumo de Jacarepaguá. Lesdain, porém, ouvira da missa a metade: seu “concorrente” não planejava viajar a São Paulo, mas apenas ser o primeiro a ir de automóvel do Rio a Petrópolis. Foram três dias até que Gastão de Almeida conseguisse chegar à cidade imperial com seu Dietrich (de trem, esse percurso já era feito em pouco mais de uma hora).
Enquanto Gastão comemorava o êxito na Serra Fluminense, Lesdain penava em sua aventura. Na falta de uma estrada que ligasse as duas maiores cidades do país (a primeira rodovia Rio-São Paulo só seria inaugurada em 1928), o jeito foi encarar caminhos de boiadeiros e trilhas ligando fazendas.
No quinto dia de viagem, o automóvel ainda estava se arrastando por Belém (atual município de Japeri, hoje considerado Região Metropolitana do Rio de Janeiro). Lesdain fez uma bate e volta de trem expresso à capital para buscar mais combustível, peças e víveres. Faltava até comida no caminho.
Depois de Mendes, o grupo se perdeu seguidas vezes sob pesadas chuvas de verão. Além da desorientação, havia lama até a metade das botas. Outro problema era a ausência de pontes. Postos de gasolina, obviamente, não existiam, e a solução era levar latões de 50 litros. Não raro, o Brasier tinha que ser rebocado por juntas de bois.
34 horas para percorrer 15 quilômetros
A cada cidade, os expedicionários telegrafavam aos jornais da capital, narrando as últimas peripécias. De Barra do Piraí, por exemplo, informaram que estavam atolados, sem condições de prosseguir - foram 34 horas para percorrer 15 quilômetros. Apesar dos percalços, o grupo avançou pelo Vale do Paraíba, muitas vezes dormindo sob as estrelas.
Em Areias, já no estado de São Paulo, outro incidente: o povo inteiro se reuniu na praça da matriz para ver, pela primeira vez, um automóvel. O prefeito fez as honras e tudo corria bem até que Lesdain resolveu ligar o carro. Depois de algumas voltas na manivela, o motor de quatro cilindros do Brasier pegou soltando explosões. Houve correria e um cidadão quebrou a perna.
Vencida a metade do percurso, os heróis passaram a enviar telegramas a São Paulo, anunciando sua iminente chegada. Em 11 de abril, centenas de curiosos e muitos apaixonados por automobilismo se reuniram no bairro da Penha, na capital paulista, para receber o herói.
Lesdain agradeceu o carinho dos brasileiros que o orientaram e hospedaram ao longo da aventura de 36 dias, em que foram percorridos 700 quilômetros (o caminho não era a quase reta de hoje...). No restaurante Rotisserie Sportsman, enquanto comemorava a epopeia com uma taça de champanhe, o conde anunciou que prosseguiria a viagem até outras cidades.
São Paulo-Santos, de carro, pela primeira vez
Apenas quatro dias depois da chegada de Lesdain a São Paulo, foi dada a largada para um novo "raid", desta vez rumo a Santos. Ao conde francês, juntaram-se os automobilistas locais Paulo Prado, Antonio Prado, Clovis Glycerio, Bento Canavarro e Luiz Barbosa da Silva, além do jornalista Mario Cardim e de um grupo de mecânicos.
O possante Brasier de Lesdain desta vez foi acompanhado por um Sizaire-Naudin e um Motobloc, todos automóveis franceses. Foram os primeiros carros a ir de São Paulo a Santos, em uma viagem que levou 36 horas.
A primeira corrida do Brasil
Em 26 de julho, Lesdain estava novamente em São Paulo, pronto para participar da primeira corrida de automóveis do Brasil — o Circuito de Itapecerica. Desta vez, não teve sorte: nos treinos, bateu o Brasier. Emprestaram-lhe outro carro (um Herald) e houve mais um acidente. Lesdain quebrou o queixo.
Mas o nobre francês deve ter gostado do Brasil, já que ainda ficou bastante tempo por aqui. Em fevereiro de 1909, viajou com seu Brasier de São Paulo a Campinas. O percurso de 180 quilômetros (na época) foi concluído em 25 horas. A maior dificuldade era conseguir gasolina. Em Atibaia, por exemplo, o conde foi socorrido por um motociclista de tanque cheio.
Depois dessa aventura, não se soube de outras de reinações de Lesdain por aqui.
O fim do conde
O conde ainda viveria muitos anos mais - e acabou por sujar sua colorida biografia. Entusiasmado apoiador do nazismo desde os anos 1930, ele se tornou um colaborador dos alemães que ocuparam a França durante a Segunda Guerra Mundial. Após a derrota dos nazistas, Lesdain fugiu da França, mas foi condenado à morte em 1950, em um julgamento à revelia. Protegido pelo Vaticano, ele trabalhou por muito tempo na publicação do jornal L'Osservatore Romano. Jacques de Lesdain morreu em Roma, em janeiro de 1976, aos 95 anos de idade.