Caso o novo presidente da República Argentina, Javier Milei, que toma posse no próximo 10 de dezembro, leve a cabo a improvável ameaça propagada durante sua campanha eleitoral de sair do Mercosul e romper com o acordo bilateral de comércio de veículos, reduzindo ou acabando com o imposto de importação de 35% para carros importados de fora do bloco econômico, ambos os países vão perder importantes porções de suas exportações, mas o prejuízo será maior no lado argentino.
Chega-se a esta constatação com uma rápida olhada na balança comercial dos dois países. Em 2022 os fabricantes de veículos no Brasil exportaram à Argentina US$ 1,9 bilhão e as importações de automóveis e comerciais leves do país vizinho somaram quase três vezes mais: US$ 4,6 bilhões, ou 75% dos US$ 6,1 bilhões que o Brasil gastou com veículos importados.
A Argentina é o maior exportador de carros ao Brasil: de janeiro a outubro deste ano – período que está longe de ser o melhor da relação comercial dos dois países – as fábricas argentinas enviaram ao mercado brasileiro 175 mil carros e comerciais leves, o equivalente a 64% das exportações e quase 34% de tudo que foi produzido no país.
Esta proporção significa que qualquer redução de vendas ao mercado brasileiro pode ferir de morte a indústria automotiva argentina, pois coloca em risco mais de um terço da produção de onze fabricantes – todos eles também instalados no Brasil. Modelos argentinos representaram 64,5% de todos os 271,3 mil veículos importados vendidos no Brasil nos últimos dez meses.
Na mão contrária o impacto para as montadoras no Brasil de uma ruptura no acordo de comércio bilateral com a Argentina também seria grande, mas significativamente menor. As vendas de veículos brasileiros ao mercado argentino vêm caindo nos últimos anos.
Até 2019 a Argentina era responsável por mais da metade das exportações de veículos do Brasil, mas por vários motivos este porcentual está sendo reduzindo ano a ano, caiu a 35% em 2021, 29% em 2022 e segue descendo a ladeira.
Nos últimos dez meses de 2023 a participação da Argentina nas exportações de veículos brasileiros desceu ao menor nível em três décadas. De janeiro a outubro 27% das vendas ao Exterior das fábricas brasileiras de automóveis e comerciais leves foram ao país vizinho, o equivalente a 97,3 mil unidades, ou apenas 5% dos quase 2 milhões de veículos produzidos em solo brasileiro no mesmo período.
Com este resultado pela primeira vez a Argentina perdeu para o México o posto de maior comprador de carros brasileiros, desceu ao segundo lugar, enquanto os mexicanos tornaram-se os maiores clientes importando do Brasil 116,3 mil automóveis e comerciais leves, ou 33% das exportações do setor.
Os inúmeros problemas econômicos de ambos os lados da fronteira sempre afetaram o comércio bilateral de veículos entre os dois países. Para reduzir seu rombo nas contas externas e a falta crônica de dólares o mercado argentino vem se fechando aos produtos estrangeiros.
No mais recente capítulo dos muitos altos e baixos da relação, desde o meio deste ano, a Argentina impôs taxação extraordinária de 7,5% sobre produtos importados, inclusive para carros brasileiros que por acordo deveriam estar isentos de qualquer tributação alfandegária.
Outro golpe foi a concessão de descontos tributários somente para carros fabricados na Argentina, o que vem resultando em perda de participação dos automóveis brasileiros no mercado argentino nos últimos anos.
Segundo dados da Acara, que reúne os revendedores argentinos, de janeiro a outubro as vendas de veículos no país cresceram 11,4% sobre o mesmo período de 2022, somando 394,7 mil emplacamentos, dos quais 66% são de modelos produzidos na própria Argentina e 27% vêm do Brasil. Um ano antes esta proporção era de 58% e 34%. Este ano e no ano passado penas 7% das vendas foram de importações de outros países.
Para se ter ideia, dos dez automóveis e comerciais leves mais vendidos na Argentina em outubro, apenas três vêm do Brasil: dois são Toyota, o Etios [que já deixou de ser produzido em Sorocaba, SP] e o Yaris, respectivamente na quinta e décima posições do ranking, e o Chevrolet Tracker ficou no nono lugar no mês passado.
O Fiat Cronos fabricado em Córdoba é atualmente o campeão de vendas na Argentina e na segunda posição está o Peugeot 208 produzido em El Palomar.
O Cronos também é o carro argentino mais vendido no Brasil este ano, mas aqui ocupa apenas a 18ª colocação no resultado de emplacamentos acumulados em dez meses até outubro passado, seguido de perto, em 19º, pela picape média Hilux produzida pela Toyota em Zárate.
Desde o início da aplicação das regras de livre comércio do Mercosul, em 1995, quando produtos do Brasil ou da Argentina passaram a atravessar a fronteira sem pagar tarifas aduaneiras, o setor automotivo foi colocado à parte, com a imposição de cotas livres de imposto para fabricantes de veículos e autopeças em ambos os países, exigência de conteúdo local de peças mínimo – hoje estabelecido em 50% – e uma tarifa externa comum, a TEC, de 35% para veículos.
A alíquota comum para veículos importados de fora do Mercosul é maior do que a geral do bloco, de 20% para outros produtos de consumo. Também foram negociadas algumas exceções pelas partes, como é o caso de isenção para veículos que vêm do México e produtos específicos, como carros elétricos e híbridos.
Pelo acordo complementar automotivo Brasil-Argentina, atualizado pela última vez em 2020, ficou estabelecido um regime de cotas isentas de tarifação aduaneira chamado de Flex, que vai até julho de 2029, quando então seria adotado o livre comércio de veículos e autopeças entre os dois países.
Na fase atual do regime Flex, iniciado em julho deste ano, os dois países podem importar um do outro o equivalente a 1,9 vez o total exportado. Este índice está previsto para evoluir a 2 em 2025, 2,5 em 2027 e 3 em 2028 até 2029.
Até o momento o regime vem funcionando bem e raras foram as vezes que as cotas flexíveis foram superadas por um dos lados. No terceiro trimestre deste ano, por exemplo, de julho a setembro o Brasil exportou quase US$ 1,8 bilhão em veículos e autopeças à Argentina e importou de lá US$ 1,6 bilhão, o que equivale a um índice Flex de 1,1, bastante abaixo do limite de 1,9 da fase atual do acordo.
Apesar das diversas variações no regime, nos últimos trinta anos Brasil e Argentina sempre trataram seus mercados automotivos como sendo um só, complementares, com trocas de modelos entre os dois. Todas as fabricantes instaladas lá têm fábricas aqui e na maior parte dos casos dividem os investimentos na região.
Do lado argentino são produzidos os modelos de maior valor agregado, quatro picapes médias: Toyota Hilux, Ford Ranger, Volkswagen Amarok e Nissan Frontier, o que garante maior rentabilidade no lado de lá da fronteira.
Colocando todos os números na balança, sem a Argentina o comércio internacional de veículos do Brasil perde um pedaço relevante, mas a indústria no País e seu mercado doméstico têm tamanho suficiente para sustentar boa parte dos fabricantes instalados aqui. Já boa parte das fábricas argentinas, se perderem os clientes brasileiros, poderão fechar as portas por falta de volume.
Sendo assim as ameaças de Milei ao Mercosul e sua indústria automotiva parecem bravatas, a não ser que o louco com uma motosserra na mão seja mais do que um personagem inventado para vencer as eleições presidenciais com votos da população há décadas desiludida com seus políticos. O presidente dos nossos vizinhos pode até cometer loucuras mas até o momento não se tem notícia que esteja rasgando dinheiro – exceção feita ao derretido peso argentino.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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