Se a ideia do governo ao financiar um programa de descontos para carros era dar um refresco à severa retração do mercado – enquanto juros, financiamentos, emprego e confiança do consumidor não voltam a padrões civilizados – já é possível vislumbrar que a medida teve pouco ou nenhum efeito, o resultado parece ainda mais limitado do que se previa.
Os descontos – de R$ 2 mil a R$ 8 mil patrocinados pelo governo para carros até R$ 120 mil, somados a abatimentos adicionais que os fabricantes também realizam – de fato motivaram aumento de vendas no varejo das concessionárias, mas desestimularam a outra metade do mercado formada por locadoras e frotistas em geral, que negociam faturamento direto com os fabricantes e, até o momento, não tiveram acesso aos descontos, em seus primeiros 30 dias reservados exclusivamente a pessoas físicas.
No fim, somando a alta no varejo e subtraindo a queda das vendas diretas, o resultado deve ser próximo de zero a zero, um quase empate. Ou seja, apesar de muita falação, foi muito esforço para pouco benefício.
Números apurados pela consultoria Jato Dynamics até a quinta-feira, 22, confirmam o desequilíbrio: somando os primeiros 15 dias úteis de junho, foram emplacados 92,3 mil automóveis e utilitários leves, sendo que as vendas de varejo totalizaram 54,6 mil veículos, ou 59%, índice acima dos 52% de maio, e as vendas diretas foram de 37,7 mil, ou 41%, porcentual abaixo dos 48% apurados no mês anterior.
Pelo ritmo atual as vendas devem acelerar na última semana de junho e esgotar o limite de R$ 500 milhões reservados pelo governo para bancar os descontos mínimos – até a sexta-feira passada, dia 23, R$ 420 milhões já tinham sido consumidos por meia dúzia de fabricantes que credenciaram no programa 266 versões de 32 modelos de carros.
Assim os recursos vão acabar antes que as locadoras possam aproveitar o programa para comprar – a não ser que o governo decida estender o benefício, medida até agora negada pelos ministros envolvidos.
Até o dia 21, passados 15 dias corridos do programa de descontos, a Bright Consulting calcula que apenas 4 mil veículos tenham sido vendidos a mais neste mês.
Considerando só o movimento inercial do mercado, que até agora registra apenas 6,1 mil emplacamentos por dia útil, número 18,6% inferior aos 7,6 mil/dia de maio, junho terminaria com cerca de 145 mil emplacamentos.
Mas levando em conta a esperada aceleração desta semana a Bright projeta a venda total de 182,5 mil veículos leves, o que elevaria a média diária para 8,7 mil.
Se de fato este número se concretizar ainda ficará abaixo de março, até agora o melhor mês do ano com 186,6 mil emplacamentos, o que significará um empate técnico, pois março teve 23 dias úteis, dois a mais que junho.
Ou seja, vendeu-se mais carros quando o programa de descontos ainda nem existia. Ou, visto por outro ângulo, sem os abatimentos nos preços este mês poderia ser um desastre completo.
Mesmo no varejo também é difícil aferir algum benefício de um programa que concede incentivos ficais, patrocinados pelos cofres públicos, a bens de consumo muito caros para grande parte da população, sem que houvesse linhas de crédito para abrandar o peso de valores tão altos em suaves prestações.
Apesar da insistência de se chamar de populares carros que, com descontos, giram na faixa de R$ 60 mil a R$ 115 mil – podem até ser no acabamento tosco e na pobreza de conforto, mas seguramente são preços que nada têm de populares para padrões brasileiros – eles continuam sendo tão inacessíveis quanto estavam e o programa de descontos nem passou perto de abrir a possibilidade de aquisição de um zero-quilômetro para quem antes já não podia comprar um.
Ou seja, foram concedidos descontos financiados pelo governo para quem não precisa deles, um desperdício de recursos públicos.
Para comprovar este fato basta observar que este mês, até o fim da semana terminada no dia 23, não estavam na lista dos dez mais vendidos do País nenhum dos dois carros mais baratos do mercado, Renault Kwid e Fiat Mobi, que receberam o maior desconto possível patrocinado pelo governo, de R$ 8 mil.
Enquanto isso, no mesmo ranking parcial de junho, figuravam nas seis primeiras posições quatro SUVs compactos com preços nada populares, que partem acima dos R$ 90 mil e passam dos R$ 120 mil.
A lista era encabeçado pela picape Fiat Strada, modelo acima dos R$ 90 mil que teve desconto bancado pelo governo de R$ 5 mil para a cabine simples e de R$ 4 mil para as demais opções.
Logo abaixo da Strada vinha o Volkswagen Polo, único hatch compacto no pódio dos três mais vendidos que se situa na faixa de preços considerados de entrada do mercado – justamente aqueles que tiveram os maiores descontos bancados pelo governo. Mas nenhuma das versões do hatch da Volkswagen foi habilitada ao maior desconto possível do governo, de R$ 8 mil. A linha Polo, inclusive a versão Track mais barato, conseguiu desconto patrocinado máximo de R$ 6 mil, enquanto as opções intermediárias e as topo de linha foram credenciadas a receber R$ 5 mil e R$ 4 mil.
Da terceira à sexta posições, pela ordem, estavam os SUVs Volkswagen T-Cross, Chevrolet Tracker, Honda HR-V e Hyundai Creta, todos modelos com preços que passam dos R$ 100 mil, e os dois últimos sequer estão credenciados a receber descontos patrocinados pelo governo.
Fechavam a lista da sétima à décima colocações, também pela ordem, Hyundai HB20, Fiat Toro, Chevrolet Onix e Toyota Corolla.
O programa de descontos até poderia fazer mais efeito se tivesse mais recursos e fosse estendidos por mais tempo. Mas o cobertor fiscal é curto e está beneficiando quem antes já podia pagar por um zero-quilômetro.
Como sempre, resta esperar o País voltar a crescer e gerar empregos para que o mercado nacional de veículos volte a andar no ritmo que precisa para sustentar tantas fabricantes e fábricas instaladas, que já estão parando outra vez por falta de clientes.
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