Nos anos 50, muitos pioneiros sonharam fazer um carro 100% nacional. Um dos idealizadores mais originais foi Theodor Darié. Nascido na Romênia, em 1909, radicado no Rio de Janeiro a partir de 1949 e naturalizado brasileiro em 1954, ele chefiava a divisão de estudos e projetos da Fábrica Nacional de Motores (FNM), onde atuou para o lançamento e nacionalização dos caminhões da marca.

Darié tinha um robusto curriculum: capitão-aviador reformado da aviação romena, ele cursara a École spéciale militaire de Saint-Cyr e a École Militaire et d'Application de l'Aéronautique de Versailles, na França, bem como a Universidade de Göttingen e a Escola Politécnica de Berlim, na Alemanha. Fora diplomado doutor-engenheiro na Escola Politécnica de Braunschweig, também na Alemanha, onde passou o período da Segunda Guerra. Com o fim do conflito, foi trabalhar na francesa Snecma, então uma das maiores empresas aeroespaciais do mundo.

Ainda nos tempos em que era piloto e instrutor de aeronáutica na Romênia, Darié contraiu um reumatismo crônico que limitou seus movimentos para sempre. Desde os anos 30, andava com muita dificuldade, não podia girar o pescoço e, tampouco, sentar-se - em vez disso, ajoelhava-se. E foi a doença que levou Darié a construir um veículo para facilitar sua locomoção pelo Rio de Janeiro. Assim nasceu seu primeiro carro, em 1954: era o pequenino e exótico VM 400, com apenas três rodas.

VM 400 b (1954)
VM 400 (1954)

Feito em Xerém, onde ficavam as instalações da FNM, o carro experimental VM 400 tinha cinco lugares (podia levar três adultos na frente e duas crianças atrás). Era o suficiente para transportar a família Darié.

- Papai nos levou várias vezes para passear na FNM a bordo do carro de três rodas. Era uma diversão! - relembra Hilde Darié, uma das quatro filhas do engenheiro.

A carroceria era uma espécie de caixa aberta, feita de chapas dobradas sobre estrutura tubular. Ia montada sobre um eixo com duas rodas e suspensão independente feita por elementos de borracha, que substituíam os feixes de molas convencionais.

Atrelado à frente desse conjunto, como um cavalo a puxar uma carroça, ia o conjunto mecânico: um motor monocilíndrico dois tempos de 400 cm³ e 16 cv, refrigerado a ar, desenhado e construído pelo próprio Darié. Quase tudo no carro era produzido no Brasil - as poucas exceções eram o carburador Amal e o magneto Villiers, ambos oriundos de motocicletas inglesas, e os rolamentos suecos SKF que suportavam o virabrequim.

O câmbio tinha duas marchas à frente e nenhuma à ré. Já a embreagem era automática, do tipo centrífuga, dispensando o pedal. Sua conexão com a roda dianteira (de tração) se dava por meio de correias em V.

VM 400 c (1954)
 VM 400 a (1954)

Todo esse conjunto formado por motor e roda dianteira apontava para a esquerda ou a direita conforme o motorista movia a direção. É muito provável que a inspiração mecânica tenha vindo dos triciclos alemães Framo LT 200 e Tempo A 400 das décadas de 30 e 40. Darié, afinal, estudara na Alemanha durante este período.

O volante não era redondo, mas uma espécie de guidom, em posição central, e podia ser manejado com facilidade pelo engenheiro Darié. O banco permitia que ele dirigisse de joelhos, em vez de sentado.

Com frente em forma de V (como um limpa-trilho) e um único farol, o carrinho experimental de Darié pesava 400 quilos e alcançava a máxima de 65 km/h. Funcionava tão bem que logo veio a ideia de produzir em série um modelo para ser vendido ao público em geral. Seria o VM 800, com quatro rodas e motor de dois cilindros, 2T e 800cm³, montado na traseira. O projeto contava com o incentivo dos colegas da FNM, mas nunca saiu do papel.

O primeiro Centaurus

O projeto do VM 800 não foi adiante. Em vez disso, Darié fez algumas alterações no pioneiro VM 400 e, em 1956, mostrou um novo protótipo de três rodas. Batizado de Centaurus, o carro foi feito nas instalações da fábrica de elevadores Induco (na Rua Fonseca Teles 114, São Cristóvão, Rio), novo pouso profissional do engenheiro romeno.

As proporções e a arquitetura básica eram parecidas com as do VM 400, mas havia aprimoramentos para viabilizar uma produção em série. Antes era escondido por uma carenagem, o trem motor passava a ser exposto. E, em vez do guidom central, o Centaurus trazia um volante convencional, à esquerda.

Por anúncios de jornais nota-se que Darié tentou encontrar quem fizesse a usinagem de peças mecânicas para um novo motor. Não deve ter encontrado quem executasse bem o serviço e, desanimado, quase vendeu o protótipo não acabado em fevereiro de 1956. No fim, porém, o Centaurus recebeu o motor monocilíndrico do VM 400 - agora acoplado a um câmbio de seis marchas à frente e duas à ré (!), com alavanca na coluna de direção. Com a modificação na transmissão, a máxima subiu para 80 km/h.

Freios, só nas rodas traseiras. O trem motor dianteiro era facilmente desmontável e, segundo seu criador, podia ser consertado com grande rapidez. Se a coisa complicasse, bastava trocar o motor, vapt-vupt! O Centaurus, aliás, dispunha de um pitoresco sistema antifurto: o motorista podia carregar consigo a roda da frente após o carro ser estacionado.

De uma ponta à outra, eram apenas 2,45 metros. A carroceria conversível de tubos de aço soldados e revestida com chapa dobrada podia levar seis pessoas ou, retirando-se os bancos, 400 quilos de carga. A ideia é que o Centaurus fosse de extrema simplicidade e o mais barato possível. A ambição do projetista era criar um carro que atendesse “à necessidade premente de transportes baratos no Brasil”. Seu preço deveria ser inferior a Cr$ 100 mil, metade do valor de um Fusca com quatro anos de uso - ou "5 a 6 meses de salário médio do operário qualificado".

Um repórter do jornal O Globo foi ver a novidade em um galpão de São Cristóvão e, com certo ufanismo, descreveu o automóvel na edição de 15 de outubro de 1956: “É uma sensação diferente rodar num carro nacional! (...) O Centaurus foi idealizado no Brasil, construído por operários brasileiros, e vai ser fabricado em série por capitais brasileiros”.

Vale lembrar que o Romi-Isetta, primeiro carro nacional, fora lançado oficialmente no mês anterior à reportagem, e somente em novembro a Vemag começaria a fabricar os DKW por aqui, ainda com muitas peças importadas.

Em associação com a fábrica de elevadores Induco, o engenheiro Darié falava em produzir dez Centaurus por dia, com a mão de obra de 300 operários: “Se nada me faltar, em seis meses poderemos iniciar a produção seriada”. Pintado de vermelho escuro, o triciclo chegou a ser exibido em um estande da Induco na Exposição da Indústria Automobilística Brasileira, em julho de 1957 - uma espécie de proto-Salão do Automóvel, nas dependências do Aeroporto Santos Dumont, no Rio.

Centaurus 1400 Bimotor

A Automóveis e Motores Centaurus S.A. foi constituída em 1959. Darié não era o presidente, mas o diretor técnico, e o capital pertencia a sócios da Induco. A companhia cogitou produzir uma motoneta - a Novomobil-Brasil - para surfar na onda das Lambrettas e Vespas, mas não desistira de fazer carros. A essa altura, veio o anúncio de que a fábrica seria construída na região de Viracopos, município de Campinas, e já estaria produzindo em 1961.

Os planos do carrinho popular de Darié foram postos de lado e, no II Salão do Automóvel, em novembro de 1961, a empresa apresentou o Centaurus 1400 Bimotor. Era o protótipo de um carro esportivo, com desenho exuberante, cheio de faróis e lanternas. Tinha dois motores - cada um com dois cilindros horizontais e opostos, 800 cm³ e 30 cv. Refrigerados a ar, podiam funcionar em conjunto ou isoladamente. Com 4,55m de comprimento e pesando apenas 750 quilos, o modelo - em teoria - poderia alcançar 100km/h (com um motor) ou 140km/h (com dois).

O sistema elétrico de 12 volts tinha um Dynastart, como os DKW dos anos 30: arranque e gerador formavam uma só peça, montada diretamente no virabrequim. O câmbio era de três marchas, acoplado a uma embreagem automática (centrífuga). Já a carroceria mesclava alumínio com painéis de "fibras de madeira prensadas e temperadas", mantendo o peso total em 750 quilos.

Darié sai

A essa altura, a Automóveis e Motores Centaurus S.A. era dirigida por um grupo de militares de alta patente (incluindo um general) e já vendia quotas de participação para "a obra nitidamente patriótica" - mas seus planos pareciam cada vez mais distantes de se tornarem realidade. Foi quando Darié deixou o projeto.

- Um dos sócios resolveu desviar o dinheiro. Papai sofreu muito e saiu. Não deu certo por corrupção, pura e simplesmente - conta Hilde Darié.

Pelo que havia sido dito no Salão de 1961, a produção do conversível deveria começar em julho do ano seguinte. Mas, em 1962, o que a Centaurus anunciava era uma picape - e já com motor de quatro cilindros em linha, quatro tempos, refrigerado a ar, de 60 cv. Era o "motor Centaurus-Sader, de 60cv, para diferentes tipos de carros e até tratores". O projeto mecânico era obra de um certo engenheiro Sader, desenhado no Brasil mesmo. Nem protótipo essa picape teve: ficou só no desenho.

Começaram os comentários de que a Automóveis e Motores Centaurus S.A. seria mais um golpe em incautos acionistas - ou uma aventura ao estilo da Indústria Brasileira de Automóveis Presidente (IBAP). Em 1963, os dirigentes da Centaurus chegaram a pôr nos jornais um convite para que os desconfiados visitassem as instalações da fábrica - agora na Rua 1º de Março 635, bairro Guanabara (ainda em Campinas, mas 20km distante do terreno inicialmente previsto, em Viracopos). O galpão ainda existe e hoje é ocupado por uma concessionária Honda.

O produto agora seria um jipinho em duas versões: Agrário (civil) e Milico (militar). O modelo tinha carroceria de fibra de vidro e seu comprimento total podia ser de 3,75 m (Agrário) ou 3,27 m (Milico). O motor era de produção própria: quatro cilindros, 1.816 cm³, com bloco ferro e cabeçote de alumínio, refrigerado a ar e com 54 cv. Ia atrelado a um câmbio de três marchas, com tração apenas na traseira. A suspensão era por feixes de molas e a parte elétrica, de 6 volts.

O protótipo foi testado por um ano na região de Campinas, em 1965, e alguns exemplares feitos artesanalmente chegaram a ser emplacados - tanto que encontramos, nos arquivos do "Jornal do Brasil", um anúncio de classificados de um jipe Centaurus usado à venda no Rio em 1968.

Foi o último movimento da empresa, que logo desapareceu sem ter nenhum modelo produzido em série. Como o centauro meio homem, meio cavalo da lenda grega, o Centaurus mecânico de Campinas não passou de um mito.

- Papai era um engenheiro matemático, um visionário, um sonhador. Ele acreditava e tinha ética. Os sócios dele simplesmente sumiram com o dinheiro e enganaram todos os acionistas - afirma Hilde.

Unicamp entra na era do álcool

Mesmo após sua saída da Centaurus, Darié decidiu continuar em Campinas. Com a crise do petróleo em 1973, dois anos antes do lançamento oficial do programa Proálcool, o engenheiro chefiou os pioneiros testes para o desenvolvimento de carros a álcool, no Centro de Tecnologia da Universidade de Campinas. Foi nesses estudos que a taxa de compressão dos motores começou a ser elevada para tornar mais eficiente o funcionamento com álcool anidro.

Darié chegou a bolar um dispositivo para o pré-aquecimento da mistura ar-álcool, que evitaria a necessidade do tanquinho de gasolina para as partidas a frio e permitiria o bom funcionamento do motor a temperaturas entre 0°C e 16°C. Além disso, apostava na injeção direta do combustível derivado da cana como forma de reduzir o consumo e as emissões. O engenheiro continuou na Unicamp até 1983, ano de sua morte.

E, assim, o homem que um dia sonhou construir um carro 100% brasileiro, acabou por contribuir no desenvolvimento de motores que usavam um combustível nacional.

 

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Galeria: Centaurus: o carro de três rodas

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