Já fazem duas décadas que a Harley-Davidson está no mesmo dilema: como lidar com uma clientela fiel que está morrendo aos poucos ao mesmo tempo em que tenta conquistar novos compradores? A Sport Glide pode não ser revolucionária à primeira vista, mas é um dos principais produtos da empresa no Brasil atualmente.
Confesso que já fui dono de uma Harley-Davison no passado e virei as costas para a marca após uma experiência ruim de pós-vendas, onde me cobraram R$ 500 em um pisca em 2010, e desde então a marca saiu do radar para mim, ao menos enquanto consumidor.
De lá para cá vieram as elétricas da LiveWire, a Pan America e surgiu a oportunidade de andar na Sport Glide, um dos modelos mais recentes da Harley-Davidson. O visual, como qualquer modelo da marca, enche os olhos com metal e cromados. Antes de andar é difícil dizer se a moto tem o suficiente para quebrar o paradigma das Harleys antigas: caras, grandes, beberronas e que vibravam o suficiente para perder uns parafusos. E por a partir de R$ 101.850 já sabemos que o primeiro clichê a Harley-Davidson manteve. Falta saber como ficou o resto...
Olhando apenas no papel, parece que a Harley-Davidson tem uma lista de equipamentos que é um tanto, digamos, enxuta pelo que se cobra pela Sport-Glide. Ela oferece piloto automático, iluminação completa por lâmpadas de LED, chave presencial, para-brisa, maleiros laterais e freios ABS.
Além disso, o que aparenta ser um grande velocímetro analógico no tanque, no maior estilo das Harleys antigas, traz um pequeno visor abaixo com o computador de bordo. Ele tem as funções de hodômetro total e parcial, marcador de combustível, relógio, autonomia e conta-giros. Funções estas que são acionadas por um botão próximo ao manete.
Uma das boas sacadas da Sport Glide é que ela, meio que secretamente, é ao mesmo tempo uma bagger (com malas laterais) e um cruiser (estradeira convencional). Tanto os maleiros quanto a carenagem frontal são destacáveis e de fácil operação. Com eles, há 50 litros de bagageiro; sem eles, têm-se um visual mais limpo e é mais fácil de manobrar na cidade.
Em termos de motorização, ela traz o já conhecido Milwaukee-Eight 107 com 1.745 cm³ de capacidade, sendo uma das poucas motos a não utilizar a versão maior (114) no Brasil. Antigamente, a Harley-Davidson não era muito dada a entregar dados de desempenho, mas algo já mudou e o site da empresa mostra: são 82 cv de potência e 14,17 kgfm de torque.
Ainda é um grande bicilíndrico em V como manda a tradição da empresa, mas já traz algumas modernidades. Entre elas estão 4 válvulas por cilindro e até gerenciamento de temperatura em marcha lenta. Além disso, o arrefecimento permanece a ar para os cilindros, mas os cabeçotes têm refrigeração a líquido.
Por último, o câmbio tem 6 velocidades, sendo a última marcha bem longa para a estrada. A caixa de câmbio ainda é separada do bloco do motor, então a transmissão primária segue por corrente, mas, do câmbio para a roda, continua trazendo uma correia. Abordando a suspensão, ela já traz um garfo dianteiro telescópico invertido, algo mais comum de se encontrar em motos com algum tipo de proposta esportiva.
O primeiro contato com a Harley-Davidson Sport Glide me transportou diretamente para as Harleys que eu conhecia. Muito bonita de se ver, pesada de se manobrar. Tudo na moto é grande, desde as manoplas até o assento. Tudo parece ter sido feito para um americano padrão e não para mim, que tenho 1,72 m de altura e menos de 70 kg.
Nos primeiros metros, a Sport Glide mostrou que não estava muito interessada em andar na cidade. Mantendo uns 50 km/h, mantive terceira marcha e o motor mal girava. No entanto, mesmo com os maleiros, não deu muito trabalho para passar nos corredores, com parcimônia, claro. A postura com os braços semi-flexionados e pernas avançadas não é a ideal no uso urbano, mas não atrapalha e é muito útil na estrada para um rodar relaxado.
Mas estava sentindo falta de alguma coisa. A vibração era mínima e o característico ronco compassado da Harley não estava presente, nem mesmo em marcha lenta. Parado, o propulsor gera pouco calor, mas, andando, a temperatura aumenta bastante, principalmente na perna direita próximo ao escapamento.
O bom de morar em uma região relativamente periférica é que, passando a ponte sobre o rio Tietê, manutenção viária parece ser opcional. Se a Sport Glide fosse dura como as Harleys de antigamente, era aqui que a porca ia torcer o rabo. Porém, para a minha surpresa e felicidade da porca, o rabo permaneceu ileso. Mesmo com menos curso nos amortecedores que uma big trail, a estradeira deu conta muito bem dos buracos, sem pancadas secas nem trancos.
Chego em casa confuso. Não vibra, não é dura de buraco...o que está acontecendo? Nesse momento recorri a um amigo de longa data, ex-harleiro e apegado às estradeiras tradicionais de alta cilindrada. No caminho, uma pequena estrada de serra que conheço bem. Ali pude abusar um pouco do acelerador nas curvas e, aleluia, o ronco encorpado começou a aparecer nas médias rotações.
Outra boa surpresa: no vai e vem das curvas da serra, a Sport Glide parece ter metade do peso declarado, tamanha a facilidade de se mudar de direção e inclinar no contorno das curvas. De olhos fechados, te diria que estava em uma estradeira de média cilindrada, provavelmente uma 600 ou 750.
Chego no amigo, que já estava me esperando com o capacete nas mãos. Fui até lá só para que ele constatasse o mesmo que eu: "Nem parece Harley, não vibra, deita bem (na curva) e nem raspa as pedaleiras". Tive que continuar andando, pois sabia que, no uso diário, a Sport Glide já estava anos-luz na frente dos modelos que eu conhecia da marca. Meu medo é que isso poderia afetar o que sempre foi seu ponto forte: o conforto na estrada.
Passo em casa para apenas para pegar a capa de chuva que ficou alocada em um dos maleiros sem dificuldades, mesmo com galochas. Dali fui direto para a primeira rodovia que eu pudesse manter 120 km/h sem pagar pedágio. E, nisso pelo menos, fiquei feliz de a Harley não ter mudado. A Sport Glide cruza as grandes rodovias como se a velocidade máxima fosse apenas uma velocidade conveniente de cruzeiro, com vibração mínima e baixo nível de ruído.
O para-brisa, mesmo sendo mais baixo que as bolhas tradicionais das motos da marca, cumpre bem o papel de desviar o vento do peito e deixa pouca turbulência passar para o capacete. No retorno, parei em um posto para tirar o para-brisa, contei 37 insetos diferentes grudados na peça e deixei ele quieto no lugar. Depois de cerca de 3 horas de estrada, nada de membros dormentes ou dores de qualquer tipo. O prazer de guiar na estrada ela com certeza manteve.
A Harley-Davidson Sport Glide pode ser considerada um símbolo dessa "nova Harley". Cara, mas livrada de todas as más características do passado que poderiam afastar novos consumidores para a marca. Tem apenas um pouco menos de conforto na comparação com uma big trail similar só que, com a possibilidade de se tirar os maleiros laterais com facilidade, é a até mais prática para usar na cidade também. Na estrada continua mandando bem.
O preço de mais de R$ 100 mil para uma moto que ainda não tem todas as tecnologias de ponta, como rivais de outros segmentos, é remanescente ainda da antiga Harley, mas a Sport Glide pode atrair novos compradores com um rodar confortável e uma condução mais amigável. Para os antigos fãs, o visual continua lindo como sempre e a moto não perdeu em nada sua performance de estrada. Parece que a Harley está querendo ganhar dos dois lados. E eu ainda precisei rever meus conceitos sobre as motos da empresa.
Para quem tem esse nível de caixa para bancar uma moto e não quer uma big trail porque, convenhamos, todos parecem estar fazendo isso, a Harley-Davidson Sport Glide é uma das melhores opções atualmente no catálogo da marca. E vamos combinar que não como se a gente tivesse opções de estradeiras clássicas de alta cilindrada sobrando no Brasil...
Fotos: Mario Villaescusa (para o Motor1.com)
Motor |
Bicilíndrico em V, 1.745 cm³, arrefecimento a ar para os cilindros, a líquido para os cabeçotes |
Potência |
82 cv a 5.020 rom |
Torque |
14,17 kgfm |
Câmbio |
Mecânico, 6 velocidades, transmissão final por correia |
Comprimento |
2325 mm |
Entre-eixos |
1625 mm |
Altura do assento |
680 mm |
Altura mínima do solo |
120 mm |
Trail |
150 mm |
Peso em ordem de marcha |
317 kg |
Suspensão dianteira |
Garfo telescópico invertido, curso não informado |
Suspensão traseira |
Monoamortecido, curso não informado, ajuste de pré-carga |
Freio dianteiro |
Disco, ABS |
Freio traseiro |
Disco, ABS |
Roda dianteira |
Liga leve, 18 polegadas |
Roda traseira |
Liga leve, 16 polegadas |
Pneu dianteiro |
130/70 - 18 |
Pneu traseiro |
180/70 - 16 |
Tanque de combustível |
18,9 litros |
Preço |
R$ 101.850 (cor Vivid Black) |
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