Xangai, 1984. Um grupo de 30 executivos e engenheiros da Volkswagen do Brasil chega à cidade com a missão de ensinar os chineses a produzir seu primeiro carro de passeio “estrangeiro” - o sedã Santana. Chove a cântaros e a linha de montagem, instalada numa fábrica de caminhões, está cheia de goteiras. As caldeiras ficam perigosamente perto do armazém de pintura. Mas o pior vem na hora de dormir: não há hotel decente na cidade e o jeito é alugar uma casa para a equipe. Tudo é precário, até o sistema de esgoto.
Santana táxi de Xangai em 2007
Um salto de exatos 40 anos, e hoje a China é a locomotiva da economia mundial, com metrópoles ultramodernas e a maior indústria automobilística do planeta. Somente em 2023, foram fabricados no país 26 milhões de carros de passeio (contra 2,2 milhões feitos no Brasil). O pioneiro Santana, hoje uma raridade nas ruas, ainda é reverenciado como o modelo mais representativo da história dos automóveis chineses, com 4 milhões de unidades produzidas ao longo de 28 anos.
Até o começo dos anos 80, a indústria automobilística da China praticamente se restringia a caminhões e ônibus. Havia uns poucos sedãs desenhados e produzidos no país, como o Shanghai SH760, para serem usados principalmente pelo estado. Foi então que o líder Deng Xiaoping abriu a economia e tratou de atrair empresas estrangeiras para formar joint ventures.
Shanghai Volkswagen é o que se lê
A Volkswagen foi rápida e, em 1982, assinou seu primeiro contrato com a estatal SAIC (Shanghai Automotive Industry Corporation) - nascia a Shanghai Volkswagen, com capital dividido meio a meio entre as duas empresas.
O carro escolhido para a nova linha de montagem foi o Santana, que nascera na Alemanha, em 1981, como um sedã derivado do Passat de segunda geração. Fracasso de vendas em seu país de origem, o modelo decolou no exterior, sendo produzido no Japão (pela Nissan), na Espanha, na África do Sul, na Nigéria, no México e no Brasil.
1984 - Brasileiros, chineses e alemães posam com o primeiro Santana fabricado em Xangai
Os chineses queriam aprender a fabricar carros de passeio modernos, mas quem os ensinaria? Como na Alemanha a produção já empregava muitos robôs, a matriz encarregou a Volkswagen do Brasil de dar as aulas. Além disso, os engenheiros da fábrica na Via Anchieta haviam acabado de passar por todo o processo de nacionalização do modelo.
Em uma entrevista ao jornal O Globo, em 2007, Wolfgang Sauer (1930-2013), ex-presidente da VW do Brasil, revelou detalhes da pioneira missão à China.
“Podíamos ensinar melhor. Tínhamos boa mão de obra especializada e estávamos acostumados a uma produção pouco automatizada”.
Em junho de 1984, o Santana estreara com sucesso no Brasil - país que mais tarde exportaria os componentes a serem montados em Xangai.
O modelo original do Santana foi feito na China até 2012, ao lado de versões mais recentes
“O ministro da Indústria da China veio ver a fábrica de São Paulo. Acostumado a fazer uma sesta após o almoço, ele ficava de mau humor quando viajava e não podia descansar. Sabendo disso, oferecemos uma cama e, a partir de então, o relacionamento melhorou”, lembrou Sauer na entrevista de 2007.
A negociação foi difícil. O ponto positivo era que Xangai já tinha uma universidade de tecnologia e muitos alunos sabiam alemão. Mesmo o ministro falava perfeitamente o idioma dos diretores da Volks.
E, assim, brasileiros e alemães foram os primeiros estrangeiros a entrar na China para fazer automóveis. Depois da montagem de algumas centenas de kits CKD, meses de treinamentos e uma arrumação geral na fábrica, o primeiro Santana feito em Xangai saiu da nova linha de produção em setembro de 1985.
A outra pioneira na China foi a American Motors Corporation (AMC) que, em 1984, fez uma joint venture com a Beijing Automobile Works para produzir o Jeep Cherokee XJ.
Táxis Santana em Xangai, em 2007
Na época, automóveis particulares ainda não eram permitidos na China, e tanto os Cherokee quanto os Santana eram usados apenas pelo serviço público, por empresas estatais ou como táxis. Nos anos 90, quando o cidadão chinês pôde, enfim, comprar seu próprio carro, a produção deu um salto.
Para se ter uma ideia, apenas 5.148 carros de passeio foram fabricados na China no ano de 1980. Em 2000, a produção total foi de 604.677 unidades - um crescimento de 11.645% em 20 anos. E a marcha continuou em ritmo alucinado: em 2010, foram feitos 13 milhões de automóveis no país asiático.
O Santana chegou a representar 60% das vendas de carros na China
Em todos esses anos de florescimento da indústria, o Santana foi líder de vendas na China, chegando a representar 60% do mercado local. Por muito tempo a SAIC-VW produziu simultaneamente dois tipos de Santana: o original dos anos 80, com linhas retas, e o modelo brasileiro da década de 90, mais arredondado e chamado na China de Santana 2000. O índice de nacionalização, que era de 6% em 1985, alcançou os 90% em dez anos.
Santana 2000 (1995-2004) - modelo desenhado no Brasil ganhou entre-eixos maior na China
Lançado na China em 1995, o Santana 2000 - ou “Santana de segunda geração” - tinha uma versão com entre-eixos e portas traseiras 10,8cm mais longos que os do modelo brasileiro (eram 2,65m, contra 2,54m). A Volkswagen bobeou em não produzir esse sedã “long wheelbase” por aqui - certamente teria feito enorme sucesso como táxi. Se os chineses até hoje são adeptos dos sedãs grandes, isso se deu por herança cultural do Santana.
As Quantum foram muito usadas como viaturas policiais (Foto - Jason Vogel, 2007)
As ruas da China, antes dominadas pelas bicicletas, tornaram-se um mar de Santanas na primeira década do século XXI. Era um símbolo da renovação do país: o sedã mais usado na praça, bem como o modelo favorito do chinês que subia na vida e, enfim, podia comprar um automóvel. “Carro muito forte!”, elogiavam os fãs. Aturava gasolina de má qualidade, vencia as estradas esburacadas da época e fazia bonito nas regiões montanhosas. Em resumo: o Santana era o carro nacional que o país precisava.
SH7181 - protótipo da minivan Santana de sete lugares (1989)
O designer Zhong Boguang (de pé) liderou o projeto SH7181 - tentativa chinesa de criar uma Santana (1989)
Fabricada com o nome de Santana Variant, a perua Quantum tornou-se a viatura policial padrão da nação. Os chineses chegaram a construir o protótipo de uma minivan baseada no modelo, mas o projeto não foi adiante.
VW Santana 3000 (2004-2008)
Em 2004, o Santana 2000 passou por um facelift exclusivo para o mercado chinês. Mudaram a frente, a traseira e o painel e rebatizaram o sedã como Santana 3000. Em 2008, veio mais um retoque no visual e o modelo passou a ser chamado de Santana Vista, ou “Zhijun". Sua versão pé-de-boi, a Chang Da, era usada principalmente como táxi.
Santana Vista, ou Zhijun, o último facelift (2008-2013)
Mas o Santana de primeira geração (aquele original quadradinho de 1984) ainda ficou em linha na China até 2012, convivendo com o Vista. Logo depois, em 15 de janeiro de 2013 foi a vez de os Santana de segunda geração deixarem de ser fabricados no país da grande muralha. A missão estava cumprida.
O New Santana (2012-2022) tinha plataforma do Polo, com motor transversal
Para substituir o modelo que pôs os chineses atrás do volante, a Volkswagen lançou um novo carro chamado de… New Santana! Era, contudo, bem diferente, com a plataforma PQ25 do Polo e motor transversal. O modelo teve até uma versão Cross e chegou a ser vendido nas Filipinas, mas a popularidade do Santana original jamais foi repetida. A produção do New Santana foi encerrada em 2022.
A linha New Santana (2012-2022) incluía um Crossover
A essa altura, os chineses já tinham um mundo de novas opções de modelos - na própria linha Volkswagen, havia a concorrência dos sedãs Sagitar (o nosso Jetta) e Lavida. Mais do que isso, as companhias locais ganharam status e tecnologia próprios ao fazerem a transição para a eletricidade. No ano passado, pela primeira vez em décadas, a VW perdeu a liderança no mercado chinês e o posto passou a ser da BYD. Fica o alento de que um pequeno grupo de engenheiros e executivos brasileiros teve um papel importante nessa incrível história.
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