Os projetistas da Volkswagen do Brasil foram desafiados a projetar um carro espaçoso e arejado, usando a mesma base do Fusca. Assim nasceu a Brasilia, lançada há exatos 50 anos - em junho de em 1973 - para se tornar um grande sucesso de vendas no país e até no exterior.

Essa história começa na década de 60, quando o Fusca era o líder disparado do mercado brasileiro e um dos carros mais vendidos do mundo. Mas a Volkswagen sabia que tinha um problemão pela frente: o imutável besouro parecia cada vez mais uma peça de museu frente aos novos (e cada vez melhores) concorrentes. A marca alemã precisava, urgentemente, pensar em seu futuro e diversificar sua linha de automóveis.

Na Europa, a primeira tentativa de ampliação e modernização da linha foi com os modelos Typ 3, lançados em 1961. A gama incluía um sedã, um hatch, uma perua e um esportivo - e todos seguiam os mandamentos da Volkswagen na época: motor traseiro refrigerado a ar e suspensão por barras de torção.

Criaçoes da Era Leiding - SP-2, Brasilia e TC

Criaçoes da Era Leiding - SP-2, Brasilia e TC

CRIATIVIDADE BRASILEIRA

Ao sul do Equador também se tentou fazer algo novo. Rudolf Leiding, presidente da Volkswagen do Brasil entre 1968 e 1971, liberou geral a criatividade de sua equipe de projetistas. Antes contidos pela matriz, brilhantes profissionais como Marcio Lima Piancastelli, José Vicente Novita Martins (Jota) e George Yamashita Oba ganharam carta branca para desenhar modelos por aqui.

Como primeiro trabalho, foram executadas alterações de estilo nos protótipos alemães EA 97 - que haviam sido descartados pela matriz anos antes. Assim nasceu a família VW-1600 brasileira: além de um sedã quatro portas (hoje mais conhecido como Zé do Caixão), a linha incluía a perua Variant e o fastback TL. Eram modelos de médio porte e atenderam bem a consumidores que precisavam de carros maiores que o Fusca.

O entre-eixos era o mesmo do Fusca, mas a Brasilia era 2cm mais curta que o besouro

O entre-eixos era o mesmo do Fusca, mas a Brasilia era 2cm mais curta que o besouro

Depois, Leiding pediu que, a partir da base mecânica do Fusca, fosse feito um carro compacto de estilo moderno. Deveria ter linhas retas e oferecer o máximo de espaço possível em um mínimo de comprimento - conceito que havia estreado com o inglês Mini em 1959. A ideia era que o novo modelo tivesse uma grande área envidraçada, transmitindo a seus ocupantes a impressão de que era um automóvel grande. Ao mesmo tempo, deveria ser um carro fácil de manobrar no trânsito urbano.

Ainda pelas diretrizes de Leiding, o carro não deveria substituir o Fusca. O veterano besouro continuaria em linha, enquanto o novo modelo ocuparia um segmento um pouco superior.

Piancastelli, chefe de desenho da Volkswagen do Brasil, aceitou feliz a missão e começou a coordenar os trabalhos de criação. O ponto de partida foi a distância entre-eixos: exatamente os mesmos 2,40 metros do Fusca. Mas a plataforma (ou melhor: as bandejas do chassi) foi alargada. E todo aquele espaço que era desperdiçado com os estribos e os para-lamas proeminentes do besouro foram incorporados ao conforto dos ocupantes. Os dois da frente poderiam se esparramar, e os três passageiros de trás também deveriam ficar bem à vontade.

O painel lembrava muito do do DKW Fissore - na foto, o volante do modelo 1973

O painel lembrava muito do do DKW Fissore - na foto, o volante do modelo 1973

A grande área envidraçada era um dos destaques

A grande área envidraçada era um dos destaques

Sem os para-lamas salientes nem os estribos do Fusca, a Brasilia tinha bom espaço interno

Sem os para-lamas salientes nem os estribos do Fusca, a Brasilia tinha bom espaço interno

Havia um porta-malas dianteiro e outro na traseira, sobre o motor

Havia um porta-malas dianteiro e outro na traseira, sobre o motor

Para manter a cabine arejada e permitir que os vidros fossem bastante grandes, o painel era rebaixado. Aqui, aliás, entra um detalhe curioso: o painel era uma adaptação daquele que fora usado no DKW Fissore, um cupê da extinta Vemag (fábrica comprada pela Volkswagen em 1967).

Pelo esboço inicial, a Brasilia seria uma espécie de minivan

Pelo esboço inicial, a Brasilia seria uma espécie de minivan

QUASE FOI MINIVAN

Os primeiros desenhos de Piancastelli mostravam um carro com para-brisa bem avançado - antecipando em uma década as minivans. No fim, contudo, o vidro dianteiro foi recuado para uma posição mais "normal". Na traseira, havia um porta-malas sobre o motor. Na frente, outro pequeno compartimento de bagagem.

O carro ficou com a aparência de uma pequena perua, tanto que seus protótipos foram chamados de "mini-Variant" pela imprensa.

A Brasilia estreou em junho de 1973, um mês depois do rival Chevette

A Brasilia estreou em junho de 1973, um mês depois do rival Chevette

No primeiro ano, lanternas com piscas laranjas e saia curta no escape

No primeiro ano, lanternas com piscas laranjas e saia curta no escape

"O" BRASILIA OU "A" BRASILIA?

O nome escolhido foi Brasilia (assim mesmo, sem acento). Enfatizava as origens nacionais do projeto e, de quebra, enquadrava-se na onda ufanista do governo militar então vigente. Vale dizer que, em 1959, a Willys-Overland cogitara batizar seu sedã Aero-Willys de... Brasília! E, em 1960, a empresa Carroçaria Sport Ltda, do Rio de Janeiro, produziu em pequena série um conversível com mecânica VW chamado Brasília.

A Volkswagen lançou sua Brasilia em junho de 1973, bem a tempo de enfrentar os recém-chegados Chevrolet Chevette e Dodge 1800. Nos anúncios, o modelo era vendido como "o" VW-1600 Brasilia, no masculino. Mas até a turma responsável pelo projeto chamava de "a" Brasilia, associando a silhueta do modelo a uma pequena perua. Fato é que, nos anos 70 e 80, todo mundo se referia à Brasilia no feminino mesmo.

O modelo estreou com motor 1600 e apenas um carburador

O modelo estreou com motor 1600 e apenas um carburador

Os 4,01m de comprimento ajudavam na hora de estacionar

Os 4,01m de comprimento ajudavam na hora de estacionar

DEVAGAR E SEMPRE

Seu motor refrigerado a ar de 1.584 cm³ e apenas um carburador rendia 60 cv brutos. O desempenho não era lá grandes coisas mesmo para os padrões da época (máxima em torno dos 130 km/h e 0-100 km/h em 25s). Por outro lado, a Brasilia tinha a mesma robustez mecânica do Fusca. Era ainda um modelo estável, fácil de dirigir e trazia, de série, freios a disco na dianteira.

Havia disposição até para competições. Foi numa Brasilia superpreparada que o piloto Ingo Hoffmann, então iniciante, venceu o campeonato paulista da Divisão 3, em 1974. Por sua resistência, o modelo também foi muito usado em ralis nos anos 70.

Somente em 1975, foram vendidas 126 mil Brasilia

Somente em 1975, foram vendidas 126 mil Brasilia

MOTOR "DENTRO DA CABINE"

Mas nem tudo era perfeito. O motor ficava dentro do compartimento de passageiros (isolado por uma pequena tampa que também servia como assoalho do porta-malas traseiro). Resultado: o ruído invadia o ambiente sem cerimônia.

E mais: na época, havia o hábito de lavar o motor sempre que se dava uma geral no carro. Cada vez que isso era feito, as forrações é que ficavam sujas... Outro problema era que, mesmo somando os dois porta-malas, não havia grande espaço para bagagem.

Mesmo assim, a Brasilia conquistou o amor do público. Só em 1975, foram vendidas 126 mil unidades no país. Para se ter uma ideia do que isso significa, os líderes do mercado nacional em 2022 foram a Fiat Strada (112 mil unidades emplacadas) e o Hyundai HB20 (96 mil unidades).

Exportar é o que importa, dizia o slogan do governo - e a VW levou isso muito a sério

Exportar é o que importa, dizia o slogan do governo - e a VW levou isso muito a sério

A Brasilia mexicana tinha rodas, calotas e estofamento diferentes dos brasileiros
A Brasilia do Seu Barriga

A Brasilia do Seu Barriga

CARRO DO SEU BARRIGA

Até lá fora o modelo fez sucesso, sendo exportado para Portugal, Colômbia, Chile, Filipinas, Paraguai, Bolívia, Venezuela, Uruguai e Nigéria.

E foi além: entre 1974 e 1982, foram fabricadas 72.377 Brasilia no México - tanto que era o carro do Seu Barriga, no seriado "Chaves"...

Em 1976 o modelo passou vir de série com dois carburadores

Em 1976 o modelo passou vir de série com dois carburadores

Ao longo do tempo houve algumas transformações. Em 1975, o motor passou a ter dois carburadores, tornando-se mais ágil e econômico. Em compensação, ficou mais difícil regular sua marcha lenta.

O capô que estreou com um vinco em 1973...

O capô que estreou com um vinco em 1973...

... passou a ter dois vincos no modelo 1978

... passou a ter dois vincos no modelo 1978

Os frisos de alumínio da dianteira sumiram em 1977

Os frisos de alumínio da dianteira sumiram em 1977

Em 1978, a maior mudança visual: o capô passou a ter dois vincos, em vez de apenas um. Os para-choques ficaram mais angulosos e ganharam polainas de plástico. As lanternas traseiras, antes lisas, passaram a ter ressaltos horizontais, imitando os Mercedes-Benz da época.

No Brasil, as Brasilia de 4 portas foram usadas principalmente como táxis

No Brasil, as Brasilia de 4 portas foram usadas principalmente como táxis

Sucesso lá fora, a Brasilia de quatro portas nunca teve êxito no Brasil

Sucesso lá fora, a Brasilia de quatro portas nunca teve êxito no Brasil

A Volks lançou também uma versão de quatro portas, que vendeu pouquíssimo no Brasil. Seu uso por aqui era quase que restrito aos motoristas de táxi e frotistas, já que, na época, os brasileiros só queriam saber de carros com duas portas.

O painel foi trocado por um bem mais moderno em 1980. Vieram ainda bancos mais anatômicos e uma versão a álcool.

Propagandas apregoam o sucesso de vendas e o último painel

Propagandas apregoam o sucesso de vendas e o último painel

CANIBALISMO NA VIA ANCHIETA

Mas, apesar de todo o sucesso, a sentença de morte da Brasilia já havia sido assinada. A Volks concentrou suas atenções no lançamento do Gol (em maio de 1980) - modelo com motor dianteiro e que seria capaz de gerar uma família própria, formada por Voyage, Parati e Saveiro.

A partir daí, a produção da Brasilia foi drasticamente reduzida, bem como os gastos com publicidade do modelo. Em um caso clássico de canibalismo dentro da fábrica, Gol e Brasilia não poderiam ocupar o mesmo espaço no mercado.

Uma Brasilia 80 preservada pela VW na Alemanha

Uma Brasilia 80 preservada pela VW na Alemanha

A produção da Brasilia foi encerrada em março de 1982, após nove anos e 928 mil unidades vendidas no país. Contando com o mercado externo, mais de 1 milhão de unidades foram fabricadas. Muitas delas ainda sobrevivem nas mãos de colecionadores ou provando sua robustez mecânica em estradinhas de terra do interior.

E o modelo também sobrevive no imaginário popular. Quem não se lembra da Brasilia amarela com rodas gaúchas da música "Pelados em Santos", sucesso do grupo Mamonas Assassinas? Pois a tal Brasilia Amarela foi um dos carros mais fotografados no mais recente carros antigos de Águas de Lindóia, realizado este mês, fazendo frente aos superclássicos presentes.


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