Foi um encontro em família: a Jeep levou a Brotas, a 250km da capital paulista, diversas gerações de seus 4x4. Chamada de Jeep Legacy (Herança Jeep em inglês), essa reverência às tradições reuniu personagens apaixonados pela marca, bem como jornalistas automotivos, que puderam fazer um "teste de DNA" por trilhas e estradinhas do hotel Primavera da Serra. Um passeio educativo que permitiu entender tudo o que mudou (e o que não mudou) em 82 anos de evolução técnica.
Primeiro ponto: a Jeep é uma marca que alcançou vida própria. Seus produtos já foram fabricados por diversas companhias, sem que perdessem a personalidade original. Sua gênese, como lembrou o jipeiro Nelson de Almeida Filho em uma palestra, está no Austin 7, carrinho inglês que serviu de base para o Bantam BRC, primeiro protótipo do que viria a ser o Jeep militar americano.
Era 1940. Em vias de entrar na Segunda Guerra, os EUA lançaram a concorrência para fabricar um veículo leve com tração 4x4. Sem capacidade de produção em massa, a Bantam foi posta para escanteio e o projeto da Willys-Overland levou a melhor. Nascia o modelo Willys MB, fabricado em Toledo, Ohio.
O modelo da Willys foi padronizado para que a Ford também pudesse produzi-lo em cinco de suas fábricas (com a denominação GPW), no esforço de guerra. A essa altura, o veículo já era chamado de Jeep, sigla de General Purpose, "Uso Geral". Ciente do tesouro que tinha em mãos, a Willys começou a publicar propagandas do Jeep antes mesmo de a Segunda Guerra terminar. Seria uma ferramenta de trabalho em tempos de paz.
Terminada a guerra, somente a Willys seguiu firme na fabricação do Jeep, agora para uso civil. Nascia a família CJ (Civilian Jeep). Nas décadas seguintes, a Willys-Overland deixaria de existir, mas o Jeep continuaria vivo nas mãos de outros grupos.
Nos EUA, a produção dos Jeep foi continuada pelas sucessoras da Willys - pela ordem: Kaiser, American Motors Corporation (AMC) e Renault, Chrysler, DaimlerChrysler, FCA e, hoje, Stellantis. Por ter sobrevivido a tantas trocas de comando, o Jeep já mostrava sua força como produto.
A montagem dos Jeep CJ no Brasil começou em 1947. A pioneira foi a empresa Gastal, no Rio de Janeiro (já contamos essa história aqui) e, logo depois, o 4x4 passou a ser montado também em São Paulo, pela Jeepsa (1948) e sua sucessora Agromotor (1949).
Em 1953, foi fundada a Willys-Overland do Brasil, com fábrica em São Bernardo do Campo. Fez tamanho sucesso que levou ao lançamento de derivados como a Rural e a Pick-up Jeep. Com mecânica e estilo exclusivos para nosso país, a linha nacional da Jeep continuou em produção mesmo depois de 1967, quando a Ford comprou a filial brasileira da Willys. A fabricação do CJ-5 pela Ford do Brasil foi encerrada em 1983 - e somente nos anos 90 é que veículos com a marca Jeep voltaram a ser vendidos no país, pelas mãos da Chrysler. Hoje a produção é da Stellantis, em sua moderna fábrica em Pernambuco.
O Jeep seria produzido sob licença ao redor do mundo por empresas como Mitsubishi (Japão), Mahindra (índia), IKA (Argentina), Hotchkiss (França), SsangYong (Coreia do Sul), Viasa (Espanha), Pars Khodro (Irã) entre tantas outras. Inspirou ainda projetos como o do Land Rover e do Suzuki Samurai. Foi, como se vê, um dos primeiros carros mundiais. Fato é que o nome Jeep tem um caráter único como pudemos perceber nesse test drive.
Começamos pelo Willys MB/Ford GPW, popularmente conhecido no Brasil como "Jeep 42" (apesar de ter sido fabricado entre 1941 e 1945). Seu motor de quatro cilindros e válvulas no bloco rendia 55 cv. O veículo pesava 1,1 tonelada e, com sua tração nas quatro rodas, mais caixa de reduzida, movia com destreza quatro soldados ou podia levar todo tipo de carga e reboque que se pudesse imaginar. Ágil em estradinhas vicinais, leve e sem capota... não à toa, alguém disse que o Jeep era o único esportivo de verdade produzido nos EUA!
A guerra terminou e o Jeep passou a ser vendido como ferramenta agrícola. Nasciam os primeiros CJ - visualmente diferiam dos MB/GPW por terem faróis saltados da grade e abertura da caçamba traseira. No Brasil, era exibido levantado por uma corrente, para que o público pudesse ver seu diferencial dianteiro e entender a tração 4x4.
Dessa geração, o modelo mais popular foi o CJ-3A (1949-1953), vulgo "Jeep 51" no Brasil. O motor ainda era o mesmo L134 Go-Devil "cabeça chata" dos tempos da guerra, um pouquinho mais potente (60 cv), e o câmbio era o T90, mais resistente que a dos MB. Mas a relação final era mais curta - daí que a velocidade de cruzeiro foi reduzida.
Sim, esses CJ-3A são lentos no asfalto. Na prática, podem cruzar a uns 65/70 km/h, alcançando uns 85 km/h de máxima e olhe lá... Por outro lado, vinham com capotas fechadas nas laterais. "Já os militares vinham só com uma capota toda aberta dos lados, que desestabilizava o Jeep ao cruzar com outros veículos na estrada" explica Marco Cesar Spinosa, dono de um GPW 1942.
Visualmente os CJ-3A eram reconhecidos pelo para-brisa inteiriço, contra o vidro bipartido das gerações anteriores. Ronquinho forte do motor e da transmissão, câmbio de três marchas mais caixa reduzida... Dirigí-lo em uma estradinha de terra é um papo reto entre homem e máquina. Puro prazer, principalmente sem capota e com o para-brisa abaixado!
Em 1953, veio o CJ-3B, a ausência mais sentida no encontro de Brotas. Seu motor continuava a ser um quatro cilindros e 2,2 litros, mas passava a ter válvulas de admissão sobre as câmaras de combustão. Era o Hurricane, de 75cv. Por causa do novo cabeçote, tiveram que subir o capô uns 15 cm, o que deu ao modelo o apelido de "Cara da Cavalo". Seu estilo perdeu harmonia e muitos o consideram o mais feio dos Jeep... Por outro lado, esse modelo renegado mantinha o peso leve dos antecessores. "O "51" é um ícone, mas o CJ-3B tem 15 cv a mais!", ressalta o guia de aventuras Yguaçu Paraná de Souza, 62 anos, jipeiro desde os 14.
Em 1957, a Willys começou a fabricar no Brasil o Jeep CJ-5. Maior, mais largo e mais pesado que os CJ-3, nasceu com o motor Hurricane de quatro cilindros mas logo ganhou, em 1958, o motor BF-161, de seis cilindros, 2,6 litros e 90cv (o mesmo da Rural e do Aero-Willys). Não é tão divertido de guiar quanto os antecessores, mas resolve bem qualquer parada com a potência extra e a robustez. Seus bancos eram mais cômodos e o tanque era maior que os dos Jeep anteriores. Ainda que beberrão, foi um êxito no Brasil: antes do lançamento do Fusca, o CJ-5 era o carro mais vendido no país. Por uns tempos, também foi o 0km mais barato.
No início da década de 60, o Brasil passou a fabricar também o modelo CJ-6, com entre-eixos de 101 polegadas (2,56m), contra 81 polegadas (2,05 m) dos CJ-5. Seu nome oficial era Jeep 101, numa referência ao entre-eixos esticado, mas o modelo ganhou por aqui o apelido de "Bernardão" (por conta da fábrica em São Bernardo do Campo).
Inicialmente, o CJ-6 saía apenas na versão duas portas, como o que dirigimos no evento, carro de serviço da loja Agromotor, em São Paulo, desde 1963! (Sim... 60 anos no batente e ainda em ótimo estado). "Mas o William Max Pearce, presidente da Willys-Overland do Brasil, gostava de caçar com os amigos e teve a ideia de fazer a versão quatro portas", conta Luis Carlos Filoni, que entrou na Agromotor como contador, em 1961, em hoje é dono da empresa.
Já o Bernardão de quatro portas tinha um acabamento mais esmerado, que incluía calotas e forração de portas com detalhes cinza-claros.
No Brasil, a linha Jeep incluía ainda a Rural (o primeiro SUV nacional, digamos assim) e a Pick-up Jeep, ambas reestilizadas pelo designer americano Brooks Stevens em 1960 exclusivamente para nosso mercado, ganhando uma grade moderna que lembrava as colunas que Niemeyer projetara para a nova capital, Brasília. Depois que a Ford comprou a Willys, em 1967, a Pick-up Jeep foi rebatizada de F-75 e continuou em linha até 1983. "No início, tudo o que a Ford fez foi pintar os para-choques e a grade de branco, em vez de pretos", lembra Filoni.
A tampa traseira da picape passaria a trazer o nome Ford em vez de Jeep e, em 1976, a picape passaria a ser equipada com o motor Ford OHC de 2,3 litros do Maverick. As Pick-Up Jeep ajudaram a construir o Brasil nos anos 60 e 70. Algumas estão trabalhando até hoje, como a verdinha que dirigimos no Jeep Legacy - a picape não era "convidada oficial" no evento, mas sim um dos carros de serviço do hotel, com todas as marcas de décadas de labuta.
Enquanto no Brasil a Ford encerrou a produção dos Jeep CJ em 1983, nos Estados Unidos a evolução continuou. O último modelo da linha foi o CJ-7 (1976-1986). A AMC, então fabricante do Jeep nos EUA, estava sob o controle da Renault em 1986 quando o CJ-7 deu lugar a seu sucessor: o primeiro Wrangler.
Ainda era um Jeep no estrito senso, com chassi separado da carroceria, tração 4x4 acionada por alavanca, eixos rígidos e molas semi-elípticas tanto na dianteira quanto na traseira. As bitolas, contudo, eram mais largas e a suspensão um pouco mais baixa que a dos CJ - foi feito todo um trabalho para deixar o Wrangler um pouco mais fácil de dirigir, especialmente no asfalto. Além disso, o conforto foi muito aprimorado, com forrações de um capricho inimaginável nos tempos dos CJ.
O maior choque visual do primeiro Wrangler eram os faróis retangulares, ao gosto dos anos 80. Pelo menos, a grade com sete aberturas verticais - característica dos Jeep desde 1947 - foi mantida.
Quando os portos do Brasil foram reabertos aos automóveis estrangeiros, em 1990, era esse Wrangler de primeira geração (YJ) que estava em produção nos Estados Unidos. Pouquíssimos exemplares chegaram aqui, todos trazidos por importadores independentes. Era mais fácil vê-lo na tevê, como o jipe do versátil agente MacGyver, no seriado "Profissão Perigo". Um desses desses YJ estava no evento de Brotas. "Imagine que meu Wrangler 94 é da versão de quatro cilindros e com câmbio manual de cinco marchas. Deve ter encalhado nos Estados Unidos!", brinca Cacá Clauset, o dono do raro 4x4.
O exemplar está com um kit especial de suspensão com molas helicoidais e maior vão livre. O que mais chama a atenção no comando desse Jeep é a leveza da direção hidráulica superassistida. Além disso, seu interior original está mais para carro de passeio do que para ferramenta agrícola - mostrando o início da transição dos Jeep para os tempos modernos.
Desde o YJ do MacGyver, já são quatro gerações de Wrangler, cada vez maiores, mais complexas, mais pesadas e... mais caras. A atual é a JL, com molas helicoidais, suspensão suave, muitas assistências eletrônicas, controle fácil em alta velocidade, opção híbrida e torque de sobra para vencer obstáculos.
A leveza e a simplicidade do "vovô" CJ-3A ficaram no passado, mas o Wrangler atual e a picape Gladiator ainda trazem em seu DNA aquele jeito que são capazes de vencer qualquer trilha. Após dirigir todos eles em um mesmo dia chega-se a uma conclusão: nos Jeep antigos, é você quem conduz; nos novos, você é conduzido - não os atrapalhe e eles farão quase tudo sozinhos e no maior silêncio.
Fotos: Jason Vogel
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