"Pasmem os céticos! Um automóvel inteiramente fabricado no Brasil está rodando pelas ruas desta capital."

Assim começa o texto publicado na edição de setembro de 1950 da revista "A Cigarra". O jovem de 22 anos que assinava a reportagem era ninguém menos do que Luiz Carlos Barreto, que nas décadas seguintes viria a se tornar o mais poderoso produtor de cinema do Brasil com filmes como "Assalto ao trem pagador", "Terra em transe", "Dona Flor e seus dois maridos", "Bye Bye Brazil", "O quatrilho" e "O que é isso, companheiro?".

O "automóvel inteiramente fabricado no Brasil" era o Pinar, uma das tantas tentativas amadoras de se produzir carros nacionais anos antes do lançamento oficial dos Romi-Isetta e DKW-Vemag Universal, em 1956.

Galeria: A história da Pinar

A reportagem de oito páginas traz imagens de Indalécio Wanderley ("o fotógrafo das misses") que mostram painel, forrações, motor e até os pedais do cupê.

O repórter Barreto conta que o capitão Edwaldo de Oliveira Santos, do serviço de Motomecanização do Exército, inicialmente desejava apenas demonstrar a possibilidade de se construir um automóvel completo, usando unicamente os recursos então disponíveis no país. Assim teve início, em 1947, o projeto Pinar (Pioneiros da Indústria Nacional de Automóveis Reunidos). A empreitada, que durou três anos entre concepção e execução, foi bancada pelo capitão Edwaldo e um grupo de amigos - no que hoje chamamos de crowdfunding.

Como era

A base era um chassi com seções em U "feito com aço de Volta Redonda". A carroceria foi toda moldada a martelo. "Mesmo assim, esta parte do automóvel apresenta um razoável aspecto e linhas aerodinâmicas", descreveu Barreto.

Com 4,50 m de comprimento, 3 metros de entre-eixos e 1,80 m de largura, o Pinar era, segundo o repórter, um cupê "de tamanho normal, com acomodações para seis pessoas". O estilo incluía um farol auxiliar no meio da grade, à moda Tucker 48, e uma traseira comprida, com três saídas de ar redondas em cada lado (como nos para-lamas dianteiros dos Buick de então).

A ficha técnica incluía soluções bem modernas para os padrões da época, como suspensão independente nas quatro rodas, com molas helicoidais e amortecedores tubulares, direção por pinhão e cremalheira e transmissão com semi eixos e juntas homocinéticas.

O motor

A cereja do bolo era o motor instalado na traseira - e aqui entra o trabalho do talentoso Domingos Ottolini (1895-1976), outro personagem fundamental nessa história. Mecânico desde garoto, Ottolini ganhou fama no ramo ao lançar um regulador de velocidade para ônibus, em 1934. Fabricava também pistões de alumínio e bronzinas para o mercado de reposição.

No comecinho de 1950, Ottolini recebeu em sua oficina na Rua Oliveira Lima 3A, no Grajaú (Zona Norte do Rio), a visita do capitão Edwaldo. O militar trazia consigo um motor Volkswagen - algo que ainda era praticamente desconhecido no Brasil.

Kübelwagen no Rio

Onde o capitão Edwaldo conseguiu essa mecânica é um mistério. Uma teoria é que o motor boxer refrigerado a ar fora retirado de uma viatura alemã abandonada na Segunda Guerra, e trazido da Itália por algum pracinha da Força Expedicionária Brasileira.

Mas vale dizer que, em 1949, circulavam no Rio de Janeiro pelo menos dois jipes Kübelwagen completos (como descobrimos recentemente por meio de fotografias). Assim, também é possível que o motor fosse proveniente de um desses "Kübel cariocas".

Fato é que o capitão Edwaldo encomendou um clone do motor Volkswagen a Ottolini. Cerca de um mês depois, o pedido saiu: bloco de alumínio, virabrequim, pistões, bielas, coletores... Tudo foi fabricado artesanalmente, nos tornos, pelo mecânico, seus cinco filhos, seu pai e mais três funcionários, em um impressionante exercício de engenharia reversa. O serviço foi feito a toque de caixa e, assim que ficou pronto, o motor teve direito a cerimônia de batismo e festa na oficina do Grajaú.

Aquele motor era bem diferente dos que se viam nos carros americanos que dominavam as ruas do Rio em 1950, o que deixou o repórter Barreto impressionado: "O motor do Pinar, à primeira vista, dá a impressão de não ter sequer possibilidade de funcionar (...) O seu conjunto compreende uma coleção de peças cuja produção no Brasil julgava-se até então impossível.

A exemplo, citamos o eixo de manivelas, as bielas, os pistões, os anéis de segmento, os bronzes, o comando de válvulas, as válvulas, as engrenagens de distribuição, o bloco, o cárter e os tubos de admissão e descarga, peças estas não só construídas em nossa pátria, como também aqui concebidas e desenhadas, permitindo assim que o motor do primeiro carro brasileiro seja original e simples, destituído mesmo de complicações supérfluas."

Nas reportagens da época, não há qualquer referência à Volkswagen. Para todos os efeitos, o projeto mecânico era 100% nacional... Pelas fotos é possível perceber que a cópia saiu quase igual ao original alemão. Ottolini, porém, modificou alguns detalhes, caso do carburador que foi parar atrás da carcaça da ventoinha. A regulagem devia ser bem complicada.

O construtor jurava que o motor rendia 72cv - o que nos parece um tremendo otimismo, dado que os VW 1100 alemães de 1950 rendiam 24cv, e mesmo os Porsche 356 "pre-A" da época não passavam de 40/44cv, dependendo da cilindrada. Como o cupê brasileiro pesava 980 quilos, o desempenho não devia ser dos melhores.

Fato é que o zumbido do motor boxer a ar do Pinar se fez escutar nas ruas do Rio em 20 de julho de 1950 - exatos 53 dias antes de os primeiros Volkswagen chegarem oficialmente ao Brasil (no Porto de Santos, em 11 de setembro de 1950)!

Na cabine

O carro chegava a impressionar os passantes mas, na cabine, o aspecto não era dos melhores.

"É bem verdade que o acabamento deixa algo a desejar quanto à perfeição, entretanto, melhor não poderia ser, uma vez que o automóvel que acaba de ser construído serve apenas como uma amostra daquilo que poderemos realizar no futuro", ponderou Barreto.

“O carro é rústico em seu acabamento pois foi todo ele trabalhado a mão. Segundo os construtores, o seu custo elevou-se a cerca de Cr$ 400 mil. Todavia, uma vez fabricado em série, o que se deverá verificar já em princípio do ano próximo, o custo de cada carro não ultrapassará Cr$ 40 mil e a produção diária será de 20 carros”, previa a edição de 22 de junho de 1950 do jornal "O Globo".

Já a revista "O Cruzeiro" não foi tão condescendente e tascou: “bonito por fora, mas horripilante por dentro”.

Dutra e Getúlio

Na manhã daquele 20 de junho, o Pinar foi exposto no saguão do Ministério da Educação, marco da arquitetura moderna brasileira. Também foi levado ao Palácio do Catete, onde foi visto de perto pelo então presidente da República Eurico Gaspar Dutra.

Segundo a reportagem de "A Cigarra", o presidente Dutra teria posto à disposição dos construtores áreas da Fábrica Nacional de Motores, em Xerém (RJ). Vale dizer que, na época, a FNM estava ociosa, após o fim do estoque de kits CKD dos caminhões Isotta Fraschini D-80, e antes do início da montagem dos modelos pesados da Alfa Romeo.

A ideia do capitão Edwaldo era, efetivamente, criar uma fábrica de carros de passeio - a primeira do país - congregando todos os fornecedores de autopeças já existentes na época. Para tanto, em novembro de 1950, anunciou a fundação da Fábrica Nacional de Automóveis S.A..

- Industrializar a produção do Pinar é nosso primeiro objetivo - declarou o militar. - Construí este carro a fim de mostrar a todo o Brasil que não é impossível se fabricar um automóvel no país. Aí está a prova insofismável. Não estou sonhando e sim mostro a realidade dos fatos, pois o Pinar é uma realidade.

Em 23 de fevereiro de 1951, o Pinar foi exibido, em versão conversível, a Getúlio Vargas - recém-empossado em seu último mandato como presidente da República. A apresentação aconteceu no pátio do Palácio Rio Negro, em Petrópolis, residência de verão dos chefes de Estado. Segundo "O Jornal", o carro "portou-se galhardamente na subida da serra, graças ao seu possante motor refrigerado a ar".

O presidente - grande incentivador da indústria nacional - ficou especialmente curioso em relação ao motor traseiro e questionou as vantagens técnicas desta solução a Joppert Martins, diretor técnico da companhia que estava sendo criada pelo capitão Edwaldo. A essa altura, a superintendência da companhia havia sido entregue ao coronel Aventino Ribeiro, técnico militar e industrial.

Os planos incluíam a produção de 50 protótipos para atrair interessados em todo o país (como havia feito Preston Tucker nos Estados Unidos). Os responsáveis afirmavam já ter comprado um terreno em Nova Iguaçu (RJ) para a construção da fábrica. Meses depois, passaram a dizer que o terreno ficava em Tremembé (SP).

- Estaremos aptos a fabricar não somente o nosso protótipo, ora apresentado, um modelo de turismo, como também carros de outra classe, daqueles que o país tanto necessita, como caminhonetes, automóveis rurais e viaturas militares - afirmou o criador do Pinar ao presidente da República.

O conversível levado a Getúlio nada mais era que o próprio Pinar cupê, agora com o teto cortado, o que melhorou um bocado a sua aparência.

Disputa nos tribunais

O capitão Edwaldo e um sócio, João Severino Barbosa, tentaram vender ações da Fábrica Nacional de Automóveis S.A. mesmo antes de a empresa ser constituída legalmente. Os planos não foram adiante e, por fim, Ottolini - que alegava não ter sido pago por seu serviço - entrou na Justiça contra o capitão Edwaldo. Em 30 de abril de 1951, o juiz da 6ª Vara Cível deu a Ottolini um mandado de reintegração de posse do motor do Pinar. A sentença, aliás, fala de "um motor", deixando claro que não foi construído um segundo exemplar.

Completando o desastre, dois estelionatários do Rio começaram a viajar por Minas Gerais e interior de São Paulo dizendo-se corretores da Fábrica Nacional de Automóveis. Vendiam aos incautos "ações e representações" da companhia com a promessa de entregar uma determinada cota de carros por mês. As queixas nas delegacias se multiplicaram e a notícia rendeu notas em jornais, queimando o nome da empresa. Até um vigário de Belo Horizonte caiu nesse conto...

O sonho do Pinar não durou mais do que um ano - e nem mesmo a família de Domingos Ottolini sabe que fim levou o protótipo. Até o fim da vida, o velho mecânico continuou no Grajaú cuidando da saúde de automóveis e fabricando limitadores de velocidade e economizadores de gasolina.

E, 71 anos depois...

Ao escrever esta reportagem, telefonamos para Luiz Carlos Barreto, hoje uma lenda viva do cinema nacional. De pronto, mostrando ótima memória, ele se lembrou da matéria que fez para a revista "A Cigarra" em 1950, e sequer se mostrou surpreso por alguém estar levantando esse tema 71 anos depois... Revelou, ainda, bastidores da história:

- O carro era uma picaretagem, rapaz... Estavam para inaugurar a Rio-São Paulo (atual Rodovia Presidente Dutra) e o cara meteu esse jabuti na estrada, andou uns dez metros e enguiçou. Acontece que o (fotógrafo) Indalécio morava no mesmo prédio do criador do Pinar e quis dar uma força ao vizinho!

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