Em abril de 2017, Jesse Koz, vendedor de 24 anos, deixou o emprego e a faculdade de Educação Física, subiu em seu Fusca 1300L branco, ano 1978, pegou a estrada e foi embora. Resolveu tirar férias permanentes, sem data pra volta.

De Balneário Camboriú, onde vivia, ele partiu com R$ 10 mil no bolso e um cão golden retriever batizado de Shurastey - uma referência a "Should I stay or should I go" (Devo ficar ou devo ir?), hit da banda inglesa The Clash nos anos 80.

O Fusca também tinha nome - Dodongo - e fora comprado por módicos R$ 7 mil. Era outra referência, pois Dodongo é um dos chefes mais tradicionais da franquia "The Legend of Zelda". A missão original do velho VW seria passear com Shurastey pelas praias de Santa Catarina. Mas Jesse foi longe, muito mais longe...

Ele nem tinha muita ideia do que estava fazendo. Queria simplesmente ser livre para fazer o que quisesse, na hora em que bem entendesse (desde que isso não envolvesse gastar muito dinheiro). Não se importava em dormir dentro do Fusca apertado junto com o Shurastey, não se importava em comer Miojo todos os dias. Estava livre - e isso bastava.

E, assim, o cara que não sabia sequer trocar o óleo do motor saiu meio que sem rumo, com a única certeza de que queria viajar por esse mundão.

Maio de 2017 no início da viagem
Maio de 2017 no início da viagem

CAMINHO SEM LINHAS RETAS

Apontou para o Sul, foi ao Uruguai e Argentina (até Ushuaia). Não tendo mais para onde descer, virou a proa pro Norte, passou pelo Paraguai e entrou de volta no Brasil, a caminho de Santa Catarina. Ao fim do primeiro ano, havia adicionado 30 mil km ao hodômetro do Fusquinha. Já se sentia outra pessoa desde que a viagem começara - Jesse não cabia mais em Balneário Camboriú.

Pelo caminho, ele aprendeu um bocado de mecânica para safar-se dos inúmeros problemas mecânicos que iam surgindo. Pôs uma barraca no teto do carro e resolveu conhecer o Rio de Janeiro e as praias do Nordeste, sempre com o fiel Shurastey. Chegou ao Pará e desceu até Mato Grosso do Sul. De lá tomou o rumo de Bolívia, Chile, Peru, Equador e Colômbia, onde chegou em agosto de 2019. Após 840 dias e cerca de 60 mil quilômetros rodados, sua viagem pela América do Sul havia terminado - e era preciso ir mais longe.

Ushuaia, 2017
Ushuaia, 2017
A dupla no Fusca em 2017
A dupla no Fusca em 2017

No início da viagem, Jesse sobrevivia da venda de adesivos por R$ 5 e do apoio de gente que encontrava pelo caminho. Com o passar dos quilômetros, suas páginas nas redes sociais passaram a ser acompanhadas por milhares de viajantes de sofá. Vieram também patrocínios (até de fábricas de produtos veterinários) e um site de vendas de camisetas, calendários, adesivos e produtos caninos que permitiram ao aventureiro manter-se na estrada, de forma muito simples, com o "cãopanheiro" Shurastey.

Dias na estrada, noites dormidas dentro do Fusca, frio de -15°C? Tudo bem...

Na Pedra do Telégrafo, Rio de Janeiro - 2018
Na Pedra do Telégrafo, Rio de Janeiro - 2018
De volta ao Brasil, em 2018
De volta ao Brasil, em 2018

“Eu estava longe de ser o cara mais capacitado, com mais conhecimento sobre Fuscas e viagens, mas eu tinha a certeza de que o que eu estava fazendo, independente dos problemas, iria me trazer felicidade", escreveu em sua página no Instagram, que já passava dos 400 mil seguidores.

Salar de Uyuni, 2019
Salar de Uyuni, 2019
Equador, 2019
Equador, 2019

AMÉRICA CENTRAL E PANDEMIA

Em setembro de 2019, o Fusca Dodongo foi levado de navio para o Panamá. Vieram Costa Rica (e lindas praias caribenhas), Nicarágua, Guatemala e, enfim, o México.

Pelo caminho, fazia novos amigos. Foi convidado a pernoitar em centenas de casas. E, a cada país, ocorria pelo menos um perrengue mecânico - mas isso não tirava seu amor pelo Fusca:

"Comemorei feito criança cada nova conquista, cada novo lugar que Dodongo me levou! Foi incrível como ele aguentou passar por tudo: lugares inóspitos, deserto de sal, deserto de areia, praias, dunas, gelo, neve e estradas que pediam tração 4x4... Lá estava esse besourinho branco chamando a atenção de todo mundo! Passamos por povoados onde as crianças saiam correndo atrás de nós, onde as pessoas se davam soquinhos e riam quando nos viam, quantos sorrisos de caminhoneiros arrancamos nas ultrapassagens. Já nem sei muito o que escrever sem que comece a chorar aqui!", contou aos seguidores.

Rio Gallegos, na Argentina - a primeira retirada do motor
Rio Gallegos, na Argentina - a primeira retirada do motor
Vidro lateral traseiro especial para refrescar Shurastey
Vidro lateral traseiro especial para refrescar Shurastey

No início de 2020, a pandemia de Covid-19 prendeu os viajantes no México. Só em setembro daquele ano, Jesse pôde voltar ao Brasil, de avião, ao lado de Shurastey. Abandonar o Fusca no México e encerrar de vez a viagem não estava em seus planos. O carro foi deixado em uma oficina - não se sabia por quanto tempo. O importante era que estivesse em forma para voltar à estrada um dia.

No período em que passou no Brasil, não parou quieto. Comprou uma Kombi, reformou-a e foi viajar mais um pouquinho. No auge da pandemia, a ordem era evitar sair de casa, mas Jesse tinha sua própria casa rodante, chamada Bluma. Veio a vacinação, as fronteiras foram reabertas e a Kombi foi rifada para que a aventura com o Fusca pudesse prosseguir.

Presos na neve rumo às catarata do Niágara - abril de 2022
Presos na neve rumo às catarata do Niágara - abril de 2022

Em janeiro passado, Jesse voltou ao México, com Shurastey, para resgatar o Fusca e retomar o rumo do Alasca. Cruzou a fronteira para os Estados Unidos, onde fez um trajeto bem turístico, vendo tudo o que sempre desejou: foi à Disneyworld, tirou selfie em frente ao Capitólio, em Washington, e estacionou seu Fusca (com placa de Balneário Camboriú) em plena Nova York, com os luminosos da Times Square ao fundo...

Os últimos grandes sonhos realizados foram cruzar a Route 66 de ponta a ponta com o Fusquinha ("Em 12 dias nós percorremos 4.413 km por oito estados", relatou no dia 5 de maio), ir a Hollywood e, em São Francisco, atravessar a Golden Gate.

No meio da Route 66 - abril de 2022
No meio da Route 66 - abril de 2022
Na Times Square, em Nova York - abril de 2022
Na Times Square, em Nova York - abril de 2022
Em Washington, em frente ao Capitólio - abril de 2022 - Parte da carroceria e da suspensão foram trocadas no México
Em Washington, em frente ao Capitólio - abril de 2022 - Parte da carroceria e da suspensão foram trocadas no México

Anteontem, uma trágica notícia chegou do Oregon, estado americano próximo da fronteira com o Canadá: ao se desviar de uma súbita desaceleração do tráfego na Highway 199, Jesse bateu de frente em um SUV Ford Escape que vinha na pista contrária. O brasileiro de 29 anos e seu cão morreram na hora. Eileen Huss, de 62 anos, que dirigia o Escape, foi hospitalizada, e uma criança que a acompanhava não ficou ferida.

Em um fenômeno tópico desses tempos de redes digitais, a página de Instagram @Shurastey_ saltou de 400 mil para 698 mil seguidores desde o acidente fatal. Rapidamente, eles se cotizaram para tentar trazer os corpos do jovem e de seu cão de volta ao Brasil.

Acampamento sob a luz das estrelas, uma cena comum na viagem
Acampamento sob a luz das estrelas, uma cena comum na viagem

Foram, ao todo, cinco anos e 85 mil km de viagem. Jesse, Shurastey e Dodongo ficaram juntos até o fim.

“A vida é mais do que ficar só esperando”, escreveu Jesse em um de seus últimos posts.

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