Houve um tempo em que a imensa maioria dos carros tinha chassi separado da carroceria, suspensão por feixes de molas, eixos rígidos, motor dianteiro e tração traseira. Tudo o que fugisse a esse padrão era recebido com certa desconfiança pelos motoristas.
Alguns fabricantes, como Bucciali, DKW e Cord já produziam carros com tração dianteira no fim dos anos 20. A Lancia usava estrutura monobloco e suspensão dianteira independente no modelo Lambda desde 1922. Já a Citroën, que se mostrava muito arrojada em termos de publicidade e instalações industriais, mas ainda produzia carros mecanicamente conservadores, como os modelos C4, C6 e Rosalie.
O primeiro Traction produzido foi o 7A, em 1934. A carroceria não mudaria muito até 1957
O grande salto tecnológico da marca só aconteceu no início da década de 30, quando o projetista André Lefèbvre (criador de esportivos futuristas para a marca Voisin) levou ao industrial André Citroën os projetos de um modelo que seria relativamente barato e traria soluções técnicas incomuns. A ideia foi aceita e o novo Citroën saiu do papel, causando frisson em seu lançamento, no dia 18 de abril de 1934. Nascia um símbolo da França.
De início, o modelo recebeu o singelo nome de Citroën 7, em razão de sua potência fiscal de “7 CV” (não se tratava da potência do motor, que originalmente era de 32 cv, mas sim da faixa em que o carro se enquadrava para o pagamento de impostos na França). Logo, porém, o modelo passaria a ser mundialmente famoso como Traction Avant - tração dianteira, em francês.
O projeto de Lefèbvre era uma visão do futuro: tudo no carro estava, pelo menos, uns 25 anos à frente de seu tempo. O modelo não foi o primeiro com tração dianteira nem, tampouco, o primeiro a trazer estrutura tipo monobloco — mas foi pioneiro ao juntar estas soluções, então muito raras.
Como a caixa de marchas ficava à frente do motor, bem no bico do carro, eliminava-se o eixo cardã. E, sem o túnel do cardã atravessando o assoalho, os passageiros dispunham de excelente espaço para um automóvel médio. Outra: dada a posição do câmbio, o entre-eixos era de incríveis 2,91 m (como em um Audi A6 atual!), em um carro com apenas 4,38 m de comprimento.
Com a adoção do monobloco, eliminava-se o chassi "tipo escada" e se ampliava ainda mais o interior. De quebra, baixava-se o centro de gravidade. Outra revolução era a suspensão independente nas quatro rodas, com barras de torção e amortecedores telescópicos. Muito baixo, o Traction era incrivelmente estável nas curvas. Na década de 40, foi o primeiro carro a receber pneus radiais, os Michelin X.
Inventaram até uma lenda: "quem capotar um Citroën ganha outro da fábrica". Mas era só uma lenda mesmo - a Citroën nunca fez esse tipo de propaganda, nem deu qualquer Traction Avant 0km a motoristas acidentados…
Também havia inovações sob o capô: o motor de quatro cilindros, com válvulas no cabeçote, era montado sobre molas para eliminar vibrações. Nada de calços de borracha.
A alavanca de mudanças do câmbio de três marchas saía do painel. Pelos planos originais, o Traction Avant teria uma caixa automática criada pelo franco-brasileiro Sensaud de Lavaud, mas o projeto não se mostrou prático. Os freios tinham acionamento hidráulico, numa época em que muitos fabricantes ainda adotavam o varão.
Flaminio Bertoni desenhou a carroceria
E nada de estribos! O Citroën de 1934 tinha estilo limpo e harmonioso, obra do designer industrial e escultor Flaminio Bertoni. Anos mais tarde, este italiano radicado em Paris ainda desenharia para a Citroën os icônicos modelos 2CV, DS e Ami.
O sucesso foi imediato, mas os grandes investimentos em plena crise econômica mundial arruinaram o caixa da marca, que já não conseguia renovar empréstimos. Para piorar, André Citroën era um jogador inveterado, capaz de queimar fortunas em uma noite de cassino.
O governo francês interveio e a empresa foi vendida à Michelin, ainda em 1934. Falido e com câncer no estômago, André Citroën morreu aos 57 anos, apenas 14 meses depois do lançamento do Traction Avant.
O êxito do revolucionário modelo, porém, durou mais duas décadas sem que houvesse grandes alterações no estilo.
O primeiro modelo fabricado foi o “7”, logo substituído pelo “11” — ambos de quatro cilindros. Houve ainda o modelo “15”, de seis cilindros e até alguns protótipos com motor V8 (o “22”).
Quanto às carrocerias, a versão mais comum tinha quatro portas e tamanho contido (Légère, que significa “leve” em francês), mas havia versões mais compridas (chamadas de Familiale), além de cupês e conversíveis.
Com o racionamento de materiais, o carro foi feito só na cor preta entre o fim da Segunda Guerra e 1951. Antes de sair de linha, o modelo 15 ainda ganhou suspensão hidropneumática traseira, com esferas cheias de óleo e gás no lugar de molas convencionais.
A produção do Traction Avant foi encerrada em 1957, após 759 mil unidades vendidas. Nessa época, a Citroën já havia lançado outra revolução: o modelo DS.
Anúncio da Automóveis Citroën Ltda, em 1948
Os primeiros Traction Avant chegaram aqui ainda na década de 30, mas sua importação só tomou grande impulso a partir de 1948, quando foi criada a Automóveis Citroën Ltda., com sede na Rua General Polidoro e depois na Rua Bambina, sempre no bairro carioca de Botafogo.
Essa empresa foi responsável pelos anos de ouro da Citroën no país, quando fartos carregamentos de Traction Avant eram desembarcados no porto do Rio. Em 1949, a Citroën já tinha 64 agentes no Brasil. Isso incluía a longínqua Manaus e cidadezinhas como Bom Jesus de Itabapoana (RJ), Pirajuí (SP) e Visconde do Rio Branco (MG).
Mais baratos do que os onipresentes Chevrolet, os carros franceses passaram a fazer parte da paisagem brasileira entre o fim da década de 40 e meados dos anos 50. Eram popularmente conhecidos como “11 Ligeiro”, corruptela de “Légère”.
O tristemente famoso Citroën Negro do Crime do Sacopã
Além de suas famosas qualidades técnicas, o Traction também ficou conhecido nas páginas policiais: em 1952, o cadáver do bancário Afrânio Arsênio de Lemos foi achado em um Citroën na Ladeira do Sacopã, na Lagoa, Zona Sul do Rio. Com a estudante Marina como pivô, e o tenente Alberto Bandeira como acusado pelo assassinato, “O crime do Citroën negro” rendeu reportagens por muitos anos.
Parte da paisagem carioca - dois Traction Avant em Ipanema
Apesar de tão popular por aqui, a Citroën não aderiu ao entusiasmo do nascimento da indústria nacional, nos governos de Getulio Vargas e Juscelino Kubitschek. Mesmo assim, a Automóveis Citroën Ltda. continuou a vender carros importados da marca francesa até a época em que o Traction Avant já havia dado lugar ao DS. Somente em 2001 é que foi produzido o primeiro Citroën nacional: a minivan Xsara Picasso, na fábrica da PSA em Porto Real (RJ).
Dirigimos um Citroën 11 Légère para conhecer as sensações ao volante desse marco da indústria automobilística mundial. Do tipo “suicida”, as portas dianteiras revelam o ambiente forrado com tecidos claros. O motorista vai sentado baixinho, como em um sedã moderno.
Chave girada, dedo no botão do arranque e lá vamos. A posição das três marchas é invertida ao habitual: primeira para a direita e para baixo, segunda à esquerda para o alto e a terceira mais embaixo. Logo se pega o jeito.
O lance é usar o ouvido e fazer as passagens em dois movimentos (ponto morto... espera um tiquinho... engrena) para não arranhar ruidosamente. Seu único retrovisor é o interno, montado sobre o painel. Além disso, só há uma lanterna traseira e nada de setas. O negócio é sinalizar com o braço e redobrar o cuidado ao mudar de faixa.
A direção pesada é uma característica dos Traction. Já o motor é silencioso. Tem pouca potência (56 cv) para o peso do carro (1.060 kg) mas, nas saídas de sinal, é suficiente para acompanhar o trânsito moderno.
Mas o que realmente impressiona (especialmente a quem está acostumado a dirigir carros antigos) é a suavidade da suspensão. Maison de France, Esplanada do Castelo, Praça Mauá, Senhor dos Passos... vamos curtindo essa revolução francesa pelas ruas do Rio de Janeiro.
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