O Conservatoire Citroën, mistura de depósito, museu e centro de documentação da marca francesa, fechará suas portas no dia 30 de junho. Esse templo dos devotos da Citroën deixará as instalações que ocupa há 23 anos, em Aulnay-sous-Bois (na grande Paris, a 10 km do Aeroporto Charles de Gaulle), rumo a um futuro incerto.

A instituição é mantida pela L'Aventure Peugeot-Citroën-DS, uma associação criada no início da década de 80 por Pierre Peugeot, então presidente do conselho da antiga PSA Peugeot Citroën. Em 2001, todo o acervo relativo à Citroën foi reunido em um dos galpões da fábrica da PSA em Aulnay-sous-Bois. A missão inicial era preservar referências históricas e evitar que a forte identidade da marca do double chevron se perdesse com o passar das décadas. Não demorou e o Conservatoire foi aberto à visitação pública, mediante agendamento.

Os Citroën do Paris-Dakar também estão no acervo

Os Citroën do Paris-Dakar também estão no acervo

Tudo correu bem até que a fábrica de Aulnay, que produzia o Citroën C3, teve suas atividades industriais encerradas em 2014. Três anos depois, a área foi vendida pela PSA ao Établissement Public Foncier d'Île-de-France, órgão público que se dedica à liberação de grandes terrenos para a construção de empreendimentos imobiliários. Desde então, a ameaça de despejo pairava sobre o Conservatoire, que se mantinha funcionando no local graças a um acordo precário de ocupação.

Agora, com o iminente fechamento do galpão, existe a promessa de que dentro de “três ou quatro anos” será inaugurado um novo museu da Citroën, mas ainda não há obras e nem se sabe onde isso acontecerá. Diante da indefinição, o acervo, que inclui mais de 300 carros, “será transferido para local seguro, de forma a garantir a adequada preservação do patrimônio, bem como o seu acesso para fins de estudo ou exposições e eventos”. É o que afirma um comunicado de Loïc de La Roche, atual gerente-geral de  L'Aventure.

De La Roche adianta que o local do armazenamento temporário deverá ser na Ile-de-France, ou seja: ainda perto de Paris. E faz a ressalva de que “a viabilidade do novo projeto passa pelo apoio das marcas Citroën e DS, bem como do grupo Stellantis, para que o Conservatoire continue a partilhar sua excepcional herança”.

Engrenagens (1900) - André Citroën começou sua vida industrial produzindo essas peças com dentes em V. É a origem do logotipo da marca de automóveis

Engrenagens (1900) - André Citroën começou sua vida industrial produzindo essas peças com dentes em V. É a origem do logotipo da marca de automóveis

Na arca da Citroën

Em 2016, visitamos o Conservatoire, um silencioso galpão de chapas metálicas, em meio a uma enorme área vazia e mal sinalizada. Na época, a paisagem ao redor era pontilhada por pátios para estocagem de Citroën Jumpy zero-quilômetro.

Além de guardar um exemplar de cada modelo ou prototipo feito pela Citroën desde 1919, inclusive automóveis especiais, o Conservatoire dispõe de um arquivo onde se pode pesquisar de dados técnicos a números de chassi e motor. Há também peças como bancos e relógios de ponto salvos de antigas fábricas Citroën, em especial das históricas usines de Quai de Javel (1915-1975) e Levallois (1921-1988), as primeiras da marca.

Construído no terreno de uma estamparia de peças desativada, o Conservatoire tem 6.500m² de área. Logo no saguão estão as engrenagens com as quais o engenheiro André Citroën deu início à sua carreira de industrial, em 1900. Duas décadas mais tarde, os dentes em V dessas engrenagens deram origem ao “double chevron”, o logotipo da marca de automóveis. Também são mostrados os obuses que o empresário fabricou na Primeira Guerra Mundial, já usando processos industriais fordistas aprendidos em viagens a Detroit.

Quando as portas da parte principal do galpão são abertas, o que se vê é uma caverna do Ali Babá de arregalar os olhos. São aproximadamente 300 automóveis alinhados bem próximos uns dos outros e formando longos corredores (imagine uma versão automobilística daquele depósito onde guardam a Arca da Aliança no fim do primeiro filme de Indiana Jones).

Type A (1919) - Também chamado de 10 HP, o modelo de estreia da Citroën foi o primeiro carro europeu feito em grande série numa linha de montagem

Type A (1919) - Também chamado de 10 HP, o modelo de estreia da Citroën foi o primeiro carro europeu feito em grande série numa linha de montagem

Quando fomos lá, os carros estavam sem poeira e pareciam prontos para a ação. Muitos realmente funcionaram ao primeiro chamado do arranque, como nos provou Yannick Billy, um dos cuidadores dos automóveis. No Conservatoire é feita apenas a manutenção básica, enquanto as restaurações para valer são encomendadas a terceiros.

O escritório de André Citroën foi remontado no Conservatoire

O escritório de André Citroën foi remontado no Conservatoire

Na entrada, estão os modelos com tração traseira desde o primeiro Type A (1919), conservado por iniciativa do próprio André Citroën. Muitos dos carros foram guardados desde novos pela companhia; outros foram comprados ou recebidos em doação. Há ainda uma remontagem do escritório do empresário. É possível acompanhar a evolução da marca, com a introdução das carrocerias com estrutura de aço e dos calços de borracha para o motor.

Traction Avant (1934) - Baixo e com estrutura monobloco, o primeiro Citroën com tração dianteira contrasta com o Rosalie, último carro de passeio da marca com tração traseira

Traction Avant (1934) - Baixo e com estrutura monobloco, o primeiro Citroën com tração dianteira contrasta com o Rosalie, último carro de passeio da marca com tração traseira

Traction, 2CV e DS

Vem a ala de Traction Avant, carro revolucionário com monobloco, tração dianteira e outras características que o deixavam muito à frente de seu tempo. O Traction foi lançado em abril de 1934 — 15 meses antes de André Citroën morrer falido e doente, aos 57 anos.

O fundador não pôde ver as outras revoluções mecânicas e de estilo que sua marca faria com os modelos 2CV (1948-1990) e DS (1955-1975), criados nos tempos em que a Citroën pertencia à Michelin. Esses carros, em variadas versões, preservam a memória de personagens arrojados como o executivo Pierre-Jules Boulanger, o engenheiro André Lefèbvre e o desenhista de carrocerias Fla minio Bertoni, trinca responsável pelos anos de ouro da Citroën.

Ônibus U23 (1947) - Com carroceria Besset e motor de quatro cilindros a gasolina (1911 cm3 e 70cv), este exemplar foi achado na Córsega, em 2006, bem destruído

Ônibus U23 (1947) - Com carroceria Besset e motor de quatro cilindros a gasolina (1911 cm3 e 70cv), este exemplar foi achado na Córsega, em 2006, bem destruído

RE 2 (1971) - Nos anos 70, a Citroën criou um helicóptero com motor a pistão rotativo (Wankel). O projeto foi abortado quando a marca desistiu de usar esse tipo de mecânica em seus carros

RE 2 (1971) - Nos anos 70, a Citroën criou um helicóptero com motor a pistão rotativo (Wankel). O projeto foi abortado quando a marca desistiu de usar esse tipo de mecânica em seus carros

No Conservatoire também há corredores cheios de carros de competição, como os ZX Rallye-raid usados em provas como o Paris-Dakar nos anos 90, e outros com utilitários, um ônibus e até um helicóptero.

TPV (1939) - Na Segunda Guerra, os protótipos que deram origem ao Citroën 2CV foram escondidos em um sótão. Só em 1995 foram reencontrados

TPV (1939) - Na Segunda Guerra, os protótipos que deram origem ao Citroën 2CV foram escondidos em um sótão. Só em 1995 foram reencontrados

O tesouro máximo são os acanhados TPV (Très Petite Voiture), protótipos dos anos 30 que dariam origem ao popular 2CV. Foram feitos artesanalmente 250 exemplares do TPV, para testes. Com a ocupação alemã, três deles foram escondidos em um sótão e — literalmente — esquecidos até 1995, quando foram encontrados por acaso, durante uma obra. Hoje são exibidos do jeito que foram encontrados.

Falta algum modelo? Sim... o lendário Traction Avant 22, que tinha motor V8, foi apresentado no Salão de Paris de 1934, mas jamais chegou às lojas. Seus protótipos desapareceram sem deixar traços e hoje são considerados o Santo Graal dos citroënistas.

Agora é torcer pela sensibilidade histórica dos executivos que comandam o grupo Stellantis, atual detentor da marca Citroën. Um lugar como o Conservatoire não pode fechar para sempre.

Galeria: Conservatoire Citroën

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