De Pequim a Paris em carro antigo. Você teria coragem?
Rali de 14 mil quilômetros para carros fabricados até 1976 revive lendária prova de 1907
Em 1907, quando o automóvel ainda tinha que se afirmar como um meio de transporte confiável, foi disputada a corrida Pequim-Paris, uma das provas de longa duração mais desafiantes de todos os tempos. Não havia estradas nem postos de gasolina. Com apenas cinco veículos inscritos, a competição original foi vencida pelo enorme Itala de Scipione Borghese, o príncipe da Sulmona.
Desde 1997, esse marco do automobilismo vem sendo revivido por grupos de apaixonados por carros clássicos em eventos que são uma mistura de rali de regularidade e desafio de resistência.
Depois de um hiato de cinco anos provocado pela pandemia de Covid-19 e pela Guerra da Ucrânia, o Pequim-Paris está de volta em 2024 com nada menos do que 80 carros antigos inscritos e competidores de 26 países. Organizada pelo grupo britânico ERA (Endurance Rally Association), a prova é apregoada como “a maior aventura motorizada” e “a mais extraordinária jornada possível em um automóvel”. E não é exagero de retórica.
Ao longo de 37 dias, o rali cruza meio mundo, literalmente: são 14.250 km, começando por China, Mongólia e Cazaquistão. Daí, atravessa o Mar Cáspio para o Azerbaijão. O desafio continua pelas trilhas da Geórgia, Turquia e Grécia. O trecho final passa pela Itália e por San Marino, até chegar à França. (Enquanto isso, você chama o caminhão-plataforma para levar seu carro antigo nos 190 km de São Paulo a Águas de Lindóia…).
Trechos demolidores e sem carros de apoio
Não há pilotos profissionais. Várias duplas são formadas por marido e mulher, ou pai e filho, e fogem ao estereótipo dos colecionadores de flanelinha na mão. Com talento mecânico e muita coragem, os participantes do Pequim-Paris fazem em média 385 quilômetros por dia, quase todo o tempo por estradas de terra e com alguns trechos demolidores pelo caminho.
A largada da oitava edição aconteceu no dia 18 de maio, junto ao trecho da Grande Muralha mais próximo de Pequim. A esperança de todos os participantes é chegar a Paris em 23 de junho, rodando por seus próprios meios. A manutenção dos carros ao longo do rali depende unicamente de seus pilotos e navegadores, já que não é permitido às equipes contar com carros de apoio. Nas edições anteriores, a maioria dos automóveis conseguiu concluir a prova.
Pequim-Paris 2024 - American La France 1914, o carro mais antigo da prova
De viatura de bombeiro a carro de rali
Chama a atenção a idade dos carros inscritos (o modelo mais novo é de 1975) e a variedade de marcas. O exemplar mais antigo na competição é, mais uma vez, um centenário American La France. Nascido nos EUA como caminhão de bombeiros, em 1914, foi transformado recentemente em um titânico speedster à moda dos anos 1920. Imagine quanta gasolina seu motor de 14,5 litros consumirá para atravessar metade do planeta.
Também entre os modelos pré-guerra há cinco Bentley, um Cadillac “racer”, além de esportivos de marcas hoje pouco lembradas, como Alvis e Lagonda. Robustas carreteras de inspiração argentina, feitas a partir de cupês Chevrolet dos anos 30, sempre se destacam na prova. No 12º dia da competição, quando fechamos esta matéria, o carro que liderava o Pequim-Paris era um Chevrolet cupê 1939 tripulado pela dupla britânica Richard Walker/Faith Douglas.
Pequim-Paris 2024 - Rolls-Royce Silver Shadow 1968 levanta poeira
Dos modelos pós-guerra, vale mencionar um Citroën DS 1973, um Rolls-Royce Silver Shadow 1968, um punhado de Ford Escort Mk I e Mk II dos anos 60 e 70 e até um Anadol STC-16, de 1974, esportivo de fabricação turca pouquíssimo conhecido no Ocidente. E o que dizer de duplas que resolveram atravessar dois continentes, cruzando lamaçais e rios de algumas das áreas menos povoadas do planeta, a bordo de um Sunbeam ou de um Bristol, por exemplo? O que falta em adequação para um Pequim-Paris sobra em charme e entusiasmo.
O Pequim-Paris de 1907
Em 31 de janeiro de 1907, o jornal parisiense Le Matin lançou o desafio: “Precisamos provar que um homem com um carro já pode fazer qualquer coisa e ir a qualquer lugar. Alguém, neste verão, se compromete a viajar de Pequim a Paris de automóvel?"
Das 40 equipes que anunciaram sua participação na prova, apenas cinco apareceram para a largada, em 10 de junho de 1907, diante da embaixada da França em Pequim. O prêmio para o vencedor era, simplesmente, uma garrafa Magnum de Champagne Mumm.
Com exceção do príncipe italiano Scipione Borghese e seu co-piloto Ettore Guizzardi, no Itala 35/45 HP, de 7 litros, todos os outros corredores eram franceses: Charles Godard e Jean du Tallis, com um automóvel Spyker, Georges Cormier e Victor Collignon, cada qual com seu De Dion-Bouton, além de Aguste Pons e Oscar Foucauld, com um triciclo Contal Mototri.
Esses intrépidos automobilistas teriam que percorrer quase 15 mil quilômetros na maior extensão terrestre do mundo. Não havia regras: o vencedor seria o primeiro a chegar a Paris e pronto. A rota incluía territórios não mapeados e todos os tipos de perigos, incluindo bandidos. Na falta de estradas, os competidores cruzavam desertos e regiões selvagens sem qualquer equipe de apoio além dos camelos que transportavam o combustível e estabeleciam pontos para reabastecimento nos cafundós da Ásia.
O tipo de dificuldade que Borghese enfrentou na prova de 1907
Para permitir que a aventura fosse acompanhada pela imprensa ocidental, um jornalista acompanhava cada equipe. A rota seguia vagamente linhas telegráficas que se estendiam por rotas de caravanas.
Houve muitas trapaças e sabotagens durante a prova, em armações dignas do Dick Vigarista, da “Corrida Maluca”. Pons e Foucauld receberam uma informação errada de onde seria um dos pontos de reabastecimento. Sem gasolina e com pouca água, tiveram que abandonar seu triciclo Contal no Deserto de Gobi, entre a China e a Mongólia. Estavam para morrer de sede quando foram salvos - com leite de iaque - por uma tribo local. Voltaram a Paris de navio a tempo de ver a chegada dos vencedores.
Já o Itala 35/45 HP, que por vezes conseguia chegar aos 100 km/h, mostrou-se muito superior aos outros carros. A confiança era tamanha que o príncipe Borghese permitiu-se um desvio de mais de 700 km, entre Moscou e São Petersburgo, para participar de um jantar em sua homenagem. Em 10 de agosto de 1907, o nobre italiano cruzou a linha de chegada em Paris para vencer o primeiro desafio Pequim-Paris, depois de percorrer 14.994 km em exatos dois meses.
Somente 20 dias depois é que apareceu o segundo colocado: Charles Godard com o Spyker. Desde a largada em Pequim, Godard estava praticamente sem dinheiro e teve que pedir às outras equipes que lhe fornecessem combustível. O Spiker sequer pertencia a ele - fora apenas emprestado. Ao terminar a prova, Godard foi preso por fraude. Comier e Collignon também conseguiram chegar rodando a Paris, terminando em terceiro e quarto, respectivamente.
Galeria: Rali Paris-Pequim 2024
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