Quem semeia o verde colhe carro antigo. Jardineiro por profissão, Laercio Donizete Fróes, de 58 anos, sempre amou os clássicos. Sabe a história de cada DKW, Fordinho ou Galaxie que existe na cidade onde vive, Bariri, a 350 quilômetros da capital paulista. Nessa mania de mapear as raridades, acompanhou por décadas a lenta decadência de um Ford cupê 1948.

O carro pertencia a uma pessoa chamada Sami, que era famoso em Bariri por vender carne temperada de carneiro e coalhadas de alta qualidade. Sami morava no centro da cidade e era lá que o Ford ficava. Em 1979, vândalos tentaram atear fogo ao velho cupê. Os danos não foram muito extensos, mas a parte elétrica foi queimada. Desgostoso, o proprietário rebocou o Ford para uma chácara, às margens da estrada que leva ao aeroporto local.

020 - Um Ford cupê 1948 em bom estado
Um Ford cupê 1948 em bom estado

Um dia, alguém pediu emprestado as rodas do Ford, para fazer uma carreta. O cupê de 1.400 quilos então foi posto sobre uns tocos. Ficava exposto às intempéries e, a cada chuva, o piso de terra batida afundava um pouquinho. Não demorou e um enorme formigueiro se formou à sombra do carro. Os pedaços de madeira que serviam como cavaletes apodreceram e o chassi colou no chão. Com o tempo, vidros e muitas peças foram roubadas. Levaram até o capô dianteiro, deixando à mostra o motor V8 Flathead de 3,9 litros e 100 cv. A brilhante pintura preta deu lugar a tons indefinidos de primer e ferrugem.

AMOR PLATÔNICO

Sempre que ia pescar com os filhos Felipe e Igor, Laercio passava pela chácara onde estava o Ford e, do lado de fora da cerca, sofria ao ver o carro sendo tragado pela terra, pouco a pouco. Felipe, que na época era menino, não se conformava: fazia desenhos do Ford semienterrado e sonhava construir um telheiro para proteger o cupê.

002 - Desenho feito pelo filho de Laercio em 2008

Foram anos de amor platônico. No fim, o barro endurecido já estava pelo meio das portas, quase cobrindo o topo dos para-lamas. O carro estava virando um fóssil...

Sami, o dono original do Ford, morreu. Seu herdeiro, Zé, soube do tanto que Laercio gostava do cupê e o chamou para um cafezinho:

- "Tem certeza que é isso que você quer? - perguntou Zé, incrédulo, diante da carcaça coberta de terra."

- "Assim mesmo, do jeito que está" - confirmou o jardineiro.

- "E se eu te disser que o carro é seu?"

De tanta emoção, Laercio quase teve um troço ao ganhar o cupê. Agora, era pôr mãos à obra para desenterrar o clássico.

O RESGATE

008 - O passo seguinte foi começar a cavar

A operação de resgate começou em janeiro passado, com uma capina para retirar o matagal seco que se emaranhava sobre a carroceria. Semanas depois, Laercio contratou uma pá mecânica para abrir um fosso de meio metro em volta do carro:

- "Fora essa máquina, cavei tudo sozinho, aos sábados, domingos e feriados" - conta.

Nos 43 anos em que o Ford esteve parado, cresceram duas árvores, enredando com suas raízes o chassi e a suspensão. Isso complicou um bocado a exumação. Foi preciso serrar as grossas raízes e uma das árvores caiu - por pouco não acabou de vez com a carroceria. Um tambor de freio já havia sido  "engolido" pelo outro tronco, que teve que ser bem amarrado. O crescimento das árvores também mutilou a porta e o para-lama direitos.

014 - Na semana passada, um caminhão munck ajudou a tirar o Ford do buraco
015 - A parte mais danificada é o para-lama dianteiro direito

- "Com uns macaquinhos hidráulicos, tipo garrafinha, eu ia levantando o carro aos poucos e apoiando em uns toquinhos de madeira. Teve dia em que eu trabalhei todo o tempo deitado. Voltava pra casa com lama até a cabeça" - relata Laercio.

Por incrível que pareça, a metade enterrada do carro nem apodreceu tanto, atestando a qualidade (a espessura) das chapas usadas nos automóveis americanos dos anos 40. O  teto foi o pedaço mais carcomido pela oxidação: afundado por um galho, acumulou água empoçada por muitos anos.

VITÓRIA

016 - Laercio pôs o carro sobre uma carretinha emprestada

No último fim de semana, após três meses de trabalho, o Ford foi içado por um caminhão munck e posto sobre uma carretinha que permitirá mover o Ford de um lado para outro. O cupê, enfim, deixou a chácara e foi levado para a casa de Laercio.

- "No momento, estou tirando um bocado de terra de dentro da cabine. Esse barro ficou duro como pedra, tenho que usar talhadeira! Só aí vou levar no posto de gasolina, para uma lavagem caprichada" - adianta o apaixonado pelo Ford cupê.

E quais são os planos para depois?

007 - O V8 Flathead ainda está no lugar, mas sem o carburador
O V8 Flathead ainda está no lugar, mas sem o carburador

- "Quero funcionar a mecânica, que é a parte que sei fazer. Roubaram o carburador e a tampa do distribuidor, mas motor, câmbio e suspensão estão no lugar. Soube até que as rodas e pneus ainda estão guardados na chácara".

A lataria e os acabamentos ficarão para depois:

- "Tenho esperança de que me ajudem nisso".

Não seria mais fácil transformar a carcaça em um hot?

- "Não gosto não. Prefiro original".

Desde que iniciou os trabalhos, Laercio vem publicando fotos do resgate na página "Barn find Brasil", do Facebook. Começou a arrebanhar fãs, numa grande torcida para que a loucura desse certo.

- "Já recebi algumas doações de peças e fiz muitos amigos. Quero deixar essa história pros filhos e netos, quando eu já não estiver mais neste mundo" - afirma o jardineiro que colheu um Ford 48.

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