A China é hoje o maior produtor mundial de veículos: são 26 milhões de carros, caminhões e ônibus por ano (os Estados Unidos, segundo lugar no ranking, fabricam 16 milhões/ano). Essa potência automobilística, contudo, levou décadas para mostrar a que veio.
A pioneira fábrica de veículos foi a estatal First Automobile Works (FAW), que começara a produzir na cidade de Changchun, em 1956, o caminhão Jiefang CA-10 — versão local do soviético ZIS-150 que, por sua vez, copiava o americano International Harvester série K, usado na Segunda Guerra Mundial.
O esforço para fabricar o Jiefang CA-10 foi parte do Primeiro Plano Quinquenal estabelecido pelo governo de Mao Tsé-Tung, em 1953, criando as bases para a industrialização da China a partir do zero. Com isso, mais de mil novos produtos manufaturados começaram a ser feitos localmente (nas décadas seguintes, o robusto caminhão sino-soviético-americano mostraria seu valor em todo tipo de serviço, continuando em linha até 1986).
Empolgado com a crescente industrialização, Mao perguntou durante uma reunião do politburo central do Partido Comunista da China: “Quando poderemos usar nossos próprios carros para vir a este encontro?”. Estava lançada mais uma missão para os trabalhadores da FAW.
Tudo foi feito a toque de caixa. Uma divisória de vidro foi instalada na linha de produção dos caminhões FAW, demarcando o espaço para a equipe responsável pelo desenvolvimento dos sedãs. Em junho de 1957, os protótipos começaram a ser construídos a partir de exercícios de engenharia reversa - era a única solução possível diante da urgência e dos parcos recursos técnicos que a China dispunha na época.
Um Simca Vedette Régence (irmão do nosso Chambord) foi importado da França para servir como referência de estilo e proporções. Em apenas quatro dias e quatro noites, a equipe de design considerou pronto o serviço de dar cara própria ao modelo chinês. Como não havia estamparias prontas, as carrocerias dos protótipos seriam feitas no martelinho.
Já o motor de quatro cilindros e 1,9 litro, com comando de válvulas no cabeçote, foi copiado dos confiáveis Mercedes 190 (geração W120 "Ponton") e levou três dias para ser montado. O câmbio de três marchas foi projetado pela própria FAW - a oficina de fundição terminou a primeira transmissão em sete dias.
Tudo foi construído artesanalmente nas oficinas de Changchun e recebeu toques locais no acabamento: luzes traseiras imitando antigas lanternas chinesas, forrações de seda, inscrições “Primeira fábrica de Automóveis da China” nos para-lamas e, enfeitando o capô, um dragão dourado.
O protótipo foi batizado de Dongfeng CA71. “Dongfeng” significa Vento Leste - a inspiração vinha de um recente discurso em que Mao havia afirmado metaforicamente "o vento leste está prevalecendo sobre o vento oeste". Já o “CA” era sigla de China Automobile, o “7” era código para carro de passeio e o “1” se referia a primeira geração.
Em maio de 1958, a notícia saiu estampada até em jornais do outro lado do mundo: “Das usinas de Changchun saiu o primeiro carro jamais fabricado na China, no último dia 12. O automóvel, que recebeu o poético nome de Vento Leste, foi mostrado em brilhante cor vermelha, carroceria bem desenhada e um dragão sobre o radiador, como que para identificar seu país de origem, e tem todo o luxo possível (rádio, ar quente e frio etc). Capaz de atingir 128 km/h com seus 70 cv, o carro pesa 1.230 quilos e tem um consumo de 9 a 10 litros para cem quilômetros”.
Naquele mesmo mês, o primeiro protótipo foi enviado a Pequim, bem a tempo da realização do 8º Congresso do Partido Comunista da China. O CA71 foi apresentado a Mao, que demonstrou grande interesse pelo sedã. Num instante, o presidente já estava aboletado no banco traseiro para dar duas voltas por Zhongnanhai, onde fica a sede oficial do governo.
"Agora temos nosso próprio carro!", comemorou sorridente o "Grande Timoneiro", após o breve passeio.
No dia seguinte, foi a vez de o primeiro-ministro (e também ministro das Relações Exteriores) Zhou Enlai conhecer o Dongfeng. Ao saber que o motor era copiado de um Mercedes-Benz, ele deu carta branca para a clonagem: "Os estrangeiros copiam uns aos outros", teria dito. "Mas a cópia deve ser inteligente".
Depois de 30 protótipos feitos artesanalmente, contudo, o projeto Dongfeng CA71 foi descartado. A tarefa de fazer sedãs médios para servir como carros oficiais ou táxis foi repassada à companhia de tratores e automóveis de Shanghai, hoje SAIC, que estaria mais apta a produzir automóveis em larga escala (leia-se: até 5 mil carros por ano...).
Da Shanghai Automobile saíram, ainda em 1958, os protótipos Fenghuang (Fênix), que tinham mecânica clonada dos soviéticos Pobeda M20 e poloneses FSO Warszawa. Somente em 1964, porém, é que o carro definitivo entrou em linha: era o SH760, primeiro sedã médio produzido em série na China.
Dos protótipos Fenghuang não sobrou quase nada na versão final - o SH760 tinha motor seis-em-linha e parte central da carroceria "inspirados" nos Mercedes 220 (W180) Ponton. A grade e a traseira ficavam por conta da criatividade chinesa. Fato é que o modelo de estreia da Shanghai Automobile continuaria em linha até 1991, com retoques estéticos de plástico que não conseguiram disfarçar sua aparência de Mercedes da década de 50.
Com o cancelamento do projeto Dongfeng CA71, a FAW priorizou a produção de caminhões, bem como das enormes limusines Hongqi (Bandeira Vermelha), concebidas para desfiles em paradas militares ou para o transporte de autoridades estrangeiras. Essas limusines tiveram como ponto de partida um protótipo montado a partir do Imperial série C69, ano 1955 - enorme sedã americano do grupo Chrysler.
Batizadas de Hongqi CA72, as suntuosas limusines eram construídas em pequena série - de 1959 a 1965, por exemplo, apenas 198 exemplares foram feitos. Seu motor era um V8 Hemi de 5,4 litros, clonado da Chrysler. Até hoje, os "carros de desfile" chineses levam a marca Hongqi e trazem vários traços estéticos da pioneira CA72. São um orgulho industrial do país.
A imensa maioria da população, contudo, continuava a andar de bicicleta. Somente nos anos 80 é que a indústria de carros de passeio na China começou, realmente, a ganhar impulso - e por meio de um grupo de brasileiros que foi a Xangai ensinar os chineses a fabricar o VW Santana na fábrica da SAIC. Mas isso já é assunto para outra história.
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