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Especial Dia 4x4: 'Ajudamos' a produzir o Jeep nº 1 milhão feito no Brasil

Passamos um dia de operário na fábrica em Goiana (PE)

O Jeep 1 milhão feito em Goiana desde 2015

Se o caro leitor comprar nos próximos dias o Commander Overland T270 branco polar de chassi KN40454, saiba que este é o Jeep de número 1 milhão produzido na fábrica da Stellantis em Goiana, Pernambuco. E, além disso, fique sabendo que quem instalou o volante no utilitário foi este repórter que vos escreve. Espero ter feito bem o serviço...

Para comemorar a marca milionésimo Jeep "made in Goiana", a marca convidou um grupo de oito jornalistas para passar a manhã de 21 de março na linha de produção e participar de algumas etapas do processo de montagem.

Em 29 anos de carreira como repórter automotivo, já devo ter visitado umas cem ou duzentas fábricas de carros em todo o mundo. Esta, contudo, foi a primeira vez em que pude pôr mãos à obra e - por uma hora e meia - sentir um pouco das pressões a que um operário da indústria automobilística é submetido em seus turnos diários de oito horas.

Minha missão principal ali era montar o volante do Jeep 1.000.000 e, para tanto, eu deveria fazer um treinamento relâmpago. Ou seja: acompanhar um operário (oficialmente chamado de operador) na linha de produção e aprender o passo a passo da tarefa.

A moderna fábrica de Jeep - hoje Stellantis - no município de Goiana foi inaugurada em 2015 com o Renegade e atualmente produz também o Compass, o Commander e a picape Fiat Toro. Este ano ainda começará a montar uma picape média da Ram. Gera 14.700 empregos na linha de montagem e no parque de fornecedores. Mais de 90% dos funcionários são da própria região - Goiana está no meio do caminho entre Recife (que fica 64 km ao Sul) e João Pessoa (60 km ao Norte). Ônibus fretados trazem empregados de 13 cidades nos arredores.

Trabalhadores da fábrica e jornalistas posam com o Jeep 1 milhão de Goiana

Trabalhadores da fábrica e jornalistas posam com o Jeep 1 milhão de Goiana

DO CANAVIAL AO CHÃO DA FÁBRICA

O terreno onde está a fábrica era um canavial. Muitos dos trabalhadores que trabalhavam na colheita foram contratados para as obras de construção da fábrica. Depois da inauguração, foram treinados para o serviço na linha de produção. É um ciclo de industrialização que anda cada vez mais raro no Brasil.

Para quem trabalha no chão da fábrica, os vencimentos começam em torno dos R$ 1.600. É pouco para o acelerado ritmo da produção de modelos que custam a partir de R$ 134.190 (um Jeep Renegade de entrada). Isso corresponde a 7 anos do salário básico de um operário em Pernambuco.

Na Itália, os salários de um operário da Stellantis começam em € 1.285, o que dá R$ 7.200 pelo câmbio atual, e o mais simples dos Renegade produzidos naquele país sai por pelo equivalente a R$ 128.500 - é um ano e meio de salário italiano.

Por outro lado, muitos operários em Goiana têm na fábrica seu primeiro emprego CLT, com direito a férias e 13º salário. Há ainda benefícios como plano de saúde e participação nos lucros, e isso pesa um bocado para quem antes tinha um trabalho sazonal e precarizado.

O Commander pronto na Linha 2 (2)

O Commander pronto na Linha 2

UM CARRO A CADA 1m25s

Em 21 de março, a fábrica ainda operava em três turnos: o primeiro começando às 6h da manhã, o segundo iniciando precisamente às 15h48, e o terceiro, mais curto e com menos pausas, a partir da 1h da madrugada. Um dia depois da nossa visita, contudo, os funcionários do segundo turno foram postos em férias coletivas até 10 de abril. Segundo a Stellantis, a pausa é necessária para ajustar a produção ao fornecimento de componentes eletrônicos importados, que andam escassos no mercado.

De qualquer forma, o visitante fica impressionado com o ritmo da linha de produção. A cada turno, podem ser fabricados até 430 automóveis. A esteira não para... Quem compra tanto carro?

Antes da montagem, jornalistas recebem instruções de segurança

Antes da montagem, jornalistas recebem instruções de segurança

HORA DO BATENTE

Visto o imaculado uniforme composto por calça e camisa polo brancas. Para trabalhar na linha de montagem, é preciso ainda pôr luvas de material sintético e um pesado par de sapatos de segurança, com biqueira dura e isolamento contra choques.

Quem faz as honras da casa é a jovem Bianca Henrique, que foi contratada há 9 meses e é team leader (supervisora) da Final 1. Explica-se: a linha Final 1 é onde são feitas as montagens de bancos, portas, molduras, volantes e itens de acabamento. Dali os carros seguem para a Final 2, onde são realizadas verificações de qualidade e estética, além do teste da parte elétrica.

Eu ficarei com a montagem dos volantes, enquanto outros colegas cuidarão dos bancos, lanternas, para-choques, fluidos e de carregar os softwares.

Chegamos ao meu novo posto de trabalho e Bianca me apresenta duas apostilas que mostram uma lista do que fazer e fotos de um operador executando cada atividade. Tudo tem uma sequência correta, um procedimento para montar.

Jason e Luisinho no posto de trabalho

Jason e Luisinho no posto de trabalho

Todo operador iniciante tem que ser acompanhado por um supervisor, que confere se o novato está realmente fazendo o ciclo correto. Assim, evitam-se "vícios", ou seja, achar que alterando a ordem das etapas, pode-se fazer o serviço mais rapidamente - tal pressa pode criar problemas na produção ou defeitos no carro. Se uma etapa for esquecida, o controle de qualidade perceberá lá na frente.

Quem vê de fora imagina que é um trabalho simples, repetitivo e mecânico mas, pela mesma esteira rolante, vêm os quatro diferentes modelos de carro produzidos em Goiana, em dezenas de versões e configurações. Qual será o próximo a vir é uma surpresa para o operador.

Um carrinho AGV (Automated Guided Vehicle), autoguiado por demarcações no chão da fábrica e comandado por wi-fi, abastece nosso posto com os volantes, airbags, tapetes de borracha, capas do retrovisor interno e chaves dos próximos quatro carros a serem montados. Grosso modo, o AGV é um trenzinho com quatro vagões - cada um deles, trazendo as peças na sequência exata para cada um dos automóveis que estão na esteira rolante.

O operário pega cada peça e, com um leitor de QR code, lê se é o componente certo para o carro da vez. Volante, tapete, chave, airbag... No terminal do operador, uma tela colorida mostra o modelo e o número de chassi do veículo que será montado e vai aprovando, passo a passo, toda a operação.

Após quatro carros passarem pelo posto, AGV vazio volta automaticamente ao ponto de municiamento e logo chega outro "trenzinho" carregado para que o trabalho não pare.

Hora de montar volantes (4)

Hora de montar volantes

O COMPANHEIRO LUISINHO

O operador Luís Henriques, de 24 anos, desde os 19 na linha de produção, vai me ensinando o processo na prática. Há uns 40 volantes para montar até a chegada do Commander mais esperado do dia.

Logo percebi que a tarefa era bem mais complicada do que parecia. Primeiro, memorizar a ordem correta das coisas... Vamos ver se consigo lembrar: 1) Desconectar o cabo negativo da bateria; 2) ir até o carrinho; 3) pegar o volante, o tapete e o airbag, ler o QR code dos três e confirmar se são os componentes corretos para o carro; 4) Encaixar o volante na posição e apontar uma porca na coluna de direção; 6) Conectar o plugue do airbag; 5) Pegar a apertadeira e fixar a porca central do volante. A ferramenta já vem programada com torque correto para essa montagem. Tem dois gatilhos, e deve ser posta bem na horizontal - como pesa uns cinco quilos, vale como exercício de musculação; 6) encaixar o miolo do volante/airbag/buzina na posição.

A questão é que isso tem que ser feito em 1 minuto e 25 segundos - e depois repetido até o fim do turno de oito horas. Se um operador ficar apertado e precisar ir ao banheiro, pode pedir ao team leader que o substitua. Cada operário, aliás, é treinado em três tarefas, para cobrir ausências inesperadas.

Hora de montar volantes (5)

Hora de montar volantes

Chega a minha vez e já me embanano todo na hora de encaixar o volante. Mesmo observando uma marcação-guia, é preciso um certo jeitinho para que a peça se ajuste na coluna de direção. Para um principiante, o plugue do airbag também não é tão simples de ser conectado. A peça é preta, seu encaixe também, e a cabine do carro não é lá muito iluminada. Para complicar, a luva grossa tira a sensibilidade da ponta dos dedos. Sorte que Luisinho me dá o macete:

- É só empurrar de baixo pra cima com a ponta do dedão, até ouvir o clique.

Mas lembre-se que a esteira vai andando e é preciso terminar logo para, depois, correr de volta ao posto. Já me vejo como Charles Chaplin na antológica cena da fábrica em "Tempos Modernos". Luisinho entra em ação mais uma vez para conferir se tudo foi fixado corretamente. Não há tempo para muito papo: faço a metade inicial das operações, Luisinho conclui... Sinto que estou mais atrapalhando do que ajudando.

Depois de uns dez carros, contudo, vou pegando o jeito e quase entrando no ritmo. Um Renegade, um Compass, uma Toro e, finalmente, o Jeep 1 milhão de Goiana chega. Meio trêmulo, suado e esbaforido, alinho o volante, conecto o plugue do airbag, ponho a porca e meu companheiro de linha de produção se encarrega de terminar a etapa.

Foi apenas uma hora e meia montando carros mas, ao parar, o cansaço bateu.

- Esse trabalho não é mole, hein, Luisinho?

- Antes eu era ajudante de supermercado, carregando caixas. Aquilo sim era pesado - diz meu companheiro de linha de montagem.

Hugo Vidal tira o Commander pronto da linha de montagem (3)

Hugo Vidal tira o Commander pronto da linha de montagem

Hugo Vidal e seus companheiros a caminho do Alasca em 1955

Hugo Vidal e seus companheiros a caminho do Alasca em 1955

Operação Abacaxi, a viagem ao Alasca em 1955-1956 (1)

Operação Abacaxi, a viagem ao Alasca em 1955-1956

Pronto, o Jeep 1 milhão de Goiana foi ligado pela primeira vez e retirado da linha de produção por Hugo Vidal, um convidado pra lá de especial: em 1955, com mais dois amigos, ele viajou do Brasil ao Canadá para participar de um encontro mundial de escoteiros. Antes de voltarem para casa, eles ainda deram uma passadinha no Alasca em pleno inverno. Aos 88 anos, Vidal ainda ainda dirige seus Jeep todos os dias.

Foi a visita mais educativa que já fiz a uma fábrica, redobrando meu respeito ao operariado brasileiro.


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