O Carde, museu de carros, arte e design em Campos do Jordão, será inaugurado no dia 28 de novembro e, antes mesmo de abrir as portas ao público, já está dando o que falar por seu extraordinário acervo de automóveis antigos. A instituição, mantida pela Fundação Lia Maria Aguiar, reúne clássicos de altíssima qualidade, em quantidades jamais vistas por aqui.
Uma das mais recentes aquisições é, simplesmente, o Tucker 48 chassi #1003. Sim… Isso mesmo: o terceiro entre apenas 51 exemplares construídos. Esse exato automóvel já pertenceu a ninguém menos que o cineasta George Lucas, criador de “Star Wars” e “Indiana Jones”, além de produtor executivo do filme “Tucker, um homem e seu sonho” (1988).
Em agosto passado, durante a Monterey Car Week, na Califórnia, esse Tucker foi arrematado em um leilão da Broad Arrow Auctions por US$ 1.380.000 (R$ 7,92 milhões). Por sua raridade, história, exotismo e estado de conservação, certamente será uma das principais estrelas do Carde.
Impecavelmente restaurado, pintado em seu Royal Maroon (bordô) original, o #1003 será o segundo Tucker existente no país. O outro é o exemplar #1035, que chegou aqui entre dezembro de 1948 e janeiro de 1949, foi rifado incontáveis vezes, recebeu chassi e mecânica Cadillac na década de 50 e hoje está no Museu Roberto Lee, em Caçapava (SP), exibido com todas as cicatrizes de sua atribulada história. Um detalhe bacana é que a cor original do #1035 (hoje pintado de preto) também era Royal Maroon. Caçapava tem até um monumento ao Tucker!
O Tucker 48 #1003 do Carde (foto - Broad Arrow Auctions) (21)
Gênio sabotado, inábil ou pilantra? É difícil escolher um adjetivo para o empresário americano Preston Thomas Tucker. Em 1946, ele começou a anunciar nas revistas o Torpedo, um carro de linhas aerodinâmicas e adornos à Flash Gordon. Os para-lamas dianteiros e faróis eram destacados, acompanhando o movimento das rodas nas curvas.
Não existia nem um protótipo pronto. Apesar disso, Preston Tucker anunciava que, em poucos meses, começaria a produzir o “primeiro modelo inteiramente novo em 50 anos de automóveis”. Uma gigantesca fábrica em Chicago, que fazia os motores dos bombardeiros Boeing B-29, foi arrendada. O passo seguinte foi conseguir dinheiro para a produção, por meio da venda de ações ao público e de representações para quem quisesse abrir concessionárias.
No início de 1947, Alex Tremulis (ex-designer da Auburn-Cord-Duesenberg Company) deu forma elegante ao projeto inicial de Tucker: carroceria baixa e alongada, quatro portas tomando parte do teto e três faróis. Um motor de seis cilindros contrapostos e 9,6 litros foi instalado na traseira do Tin Goose (“ganso de lata”, apelido dado ao primeiro protótipo do Tucker 48). Tinha ignição eletrônica, injeção direta e o colossal torque de 62 kgfm, levando o carro a 190 km/h.
Na transmissão, haveria conversores de torque atuando diretamente sobre as rodas traseiras, um sistema hidráulico idealizado por Tucker. As rodas seriam de liga de magnésio. As suspensões eram independentes e haveria freios a disco, algo inédito nos carros da época (e que acabou sendo abandonado nos Tucker 48).
Para a proteção dos passageiros, havia maçanetas embutidas, para-brisa que era ejetado em acidentes e painel acolchoado. Tucker sugeriu instalar cintos de segurança (algo que só se usava em aviões), mas outros diretores acharam que isso daria uma imagem ruim ao modelo.
O Tucker 48 #1003 do Carde (foto - Broad Arrow Auctions) (18)
O motor e o câmbio do protótipo ainda não tinham sido bem desenvolvidos, mas Tucker tinha pressa em apresentar o carro ao público. O jeito foi adotar o motor Franklin O-335 de 5,5 litros usado, por exemplo, nos helicópteros Bell 47. Com seis cilindros contrapostos, rendia 150 cv.
Na transmissão, apelou-se para uma caixa de câmbio manual com pré-seletor, aproveitada dos Cord 810/812 de tração dianteira, da década de 30. No Tucker, o conjunto ficava na traseira e foi rebatizado de Y-1.
Montanhas do dinheiro captado haviam sido gastas sem que a produção decolasse. Para atrair mais verbas, a companhia começou a vender acessórios como rádios e capas de bancos antes mesmo que os carros fossem fabricados. Preston Tucker ainda pediu um empréstimo de US$ 30 milhões ao governo — soma que foi negada. Havia 300 mil encomendas quando foram iniciadas investigações sobre os negócios do empresário.
Propagandas do Tucker 48 publicadas no Brasil (1)
Nos tribunais, Tucker foi inocentado. Sua fábrica, porém, já estava desacreditada, associada a picaretagem ou, na melhor das hipóteses, um passo além das pernas. Preston Tucker ainda veio ao Brasil em 1951, buscando industriais e investidores nacionais para produzir um esportivo chamado Carioca. Não deu em nada. Em 1956, um câncer matou o empresário, aos 53 anos.
Sua imagem só seria reabilitada a partir de 1988, quando Francis Ford Coppola dirigiu o filme “Tucker, um homem e seu sonho”. Desde então, Preston Tucker passou a ser considerado um visionário perseguido e destruído pelos grandes fabricantes de Detroit.
Apenas 51 unidades do Tucker 1948 chegaram a ser finalizadas na fábrica, ao longo de 9 meses de produção. Quase todos esses carros ainda existem, sendo 43 nos EUA, um na Austrália, dois no Japão e, agora, dois no Brasil.
O Tucker 48 #1003 do Carde (foto - Broad Arrow Auctions) (10)
O carro que será exibido no Carde é o terceiro Tucker 48 de produção, número de série #1003, e mantém seu motor Franklin original, de 335 polegadas cúbicas (5.490 cm³). A carroceria é pintada na cor original Royal Maroon e o interior é revestido com tecido bege clarinho.
A história desse Tucker é extensamente documentada. O carro foi vendido em julho de 1948 para a Arkansas Tucker Sales Corporation. Ao longo da década de 50, Art Watson, primeiro proprietário conhecido, exibiu o #1003 como chamariz em sua agência de automóveis. Em algum momento, fez uma pintura bicolor na carroceria.
O Tucker 48 #1003 do Carde (foto - Broad Arrow Auctions) (3)
Nick Jenin, o próximo dono, acrescentou o #1003 à sua coleção itinerante de 11 Tuckers. Em 1962, o carro foi adquirido por Paul Stern, de Manheim, Pensilvânia, e revendido ao famoso colecionador William Pettit, que o expôs em seu museu por mais de duas décadas.
O cineasta George Lucas foi o proprietário seguinte. Ele adquiriu o carro nos anos 80 com apenas 13.391 milhas (21.550 km) no hodômetro. Apesar disso, o #1003 estava em mau estado e não foi usado nas filmagens de “Tucker, um homem e seu sonho”. Por muitos anos, o criador de “Star Wars” manteve o automóvel no Skywalker Ranch — seu rancho de cinema e local de trabalho em Nicasio, na Califórnia.
Lucas — que ainda é dono do Tucker #1009 — vendeu o #1003 em 2005. Desde então, o carro já passou por alguns donos e uma restauração abrangente. Só a revisão da mecânica e da elétrica levou quatro anos, nas mãos de Martyn Donaldson, um especialista em Tucker.
“Não são exatamente bons carros, mas são interessantes. Como nunca chegaram à produção em massa, itens como os componentes de direção foram fundidos em bronze, inviáveis para produção em série. Essencialmente, cada Tucker é um protótipo pré-série, e nenhum é exatamente igual ao outro. Mas você pode dirigi-los confortavelmente, pois há um leve motor aeronáutico, de alumínio, na traseira. É como um grande Porsche 911!”, descreve Donaldson.
O Duesenberg J 1930 do Carde (foto - RM Sotheby_s) (1) (1)
Vá preparando seu coração. Outro dos carros recém-importados para o acervo do Carde é um Duesenberg J, ano 1930, considerado por muitos o melhor automóvel já fabricado nos Estados Unidos em todos os tempos.
Um Duesenberg J novo custava o equivalente a seis Cadillac ou a um Rolls-Royce e meio. Seu motor de oito cilindros em linha DOHC, com quatro válvulas por cilindro e 6,9 litros, rendia 269 cv e permitia chegar a 188 km/h em terceira marcha — imagine isso há 94 anos… Os leitores da saudosa revista “Motor 3” hão de se lembrar da apaixonada matéria de capa escrita pelo mestre José Luiz Vieira, em 1982, com o test drive de um automóvel da marca.
O Duesenberg J 1930 do Carde (foto - RM Sotheby_s) (3) (1)
Nos anos 20, vieram uns poucos Duesenberg para o Brasil mas não sobrou nenhum para contar história. O exemplar que chegou ao museu de Campos do Jordão é uma limusine encarroçada pela Willoughby Company. Verde por fora e por dentro, chama a atenção não apenas por sua suntuosa beleza como pelas dimensões: são 3,90 metros de entre-eixos.
Passou por uma extensa restauração nos anos 2010, ficando com a aparência que se vê hoje. Como toque final, o carro foi equipado com escapamentos laterais ao estilo dos Model J Supercharged, conferindo um toque esportivo e um ronco potente (que pode ser liberado, ou não, por meio de uma válvula).
Desde sua restauração, este raro Duesenberg foi bem preservado mas raramente exibido, tendo aparecido mais recentemente no Amelia Island Concours d'Elegance em 2018. Agora, quem for a Campos do Jordão poderá vê-lo de perto.
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