Nos Estados Unidos, Pebble Beach. Na Argentina, a AutoClásica. Por aqui, o que temos de mais parecido é o Brazil Classics Show, na cidade mineira de Araxá, a 370 quilômetros de Belo Horizonte. Por sua opulência anacrônica, o cenário é perfeito: o Grande Hotel de Araxá, remanescente da era de ouro dos cassinos.
Diante do mastodôntico edifício inaugurado pelo presidente Getulio Vargas em 1944, os melhores carros antigos do Brasil são reunidos a cada dois anos. Sobre tapetes vermelhos, os maiores colecionadores do país exibem suas mais recentes compras ou restaurações — e sempre há grandes surpresas para deixar os colegas de queixo caído.
Na edição 2024 (que começou na última quarta-feira e vai até amanhã), um carro não-restaurado é o que mais tem atraído a atenção dos participantes. Trata-se do Packard Woerdenbag, um conversível construído artesanalmente, no Rio de Janeiro, na década de 1950. A história desse exemplar único, contudo, começa muitos anos antes…
A família Woerdenbag teve grande tradição automobilística no Rio. O pioneiro foi o engenheiro holandês Johanes Gerardus Woerdenbag, mais conhecido como João Geraldo ou “João Alemão”. Em sua oficina na Rua do Senado, centro da cidade, ele construiu o biposto vencedor no Circuito da Gávea de 1940, pilotado por Rubem Abrunhosa. Afora a mecânica Studebaker, de oito cilindros em linha, e a suspensão de Alfa Romeo, quase tudo era nacional e feito em casa pelo talentoso mecânico.
Packard Woerdenbag (Foto - Paulo Guarino)
Os dois filhos de Johanes — Thomas e João Luiz — eram igualmente talentosos. Depois de se formar engenheiro, Thomas voltou a trabalhar na oficina, ao lado do pai. Em 1953, ele decidiu construir um carro de corridas. Aproveitou parte do chassi do biposto campeão de 1940, importou um motor Packard de oito cilindros em linha, um câmbio Jaguar Le Mans e foi fazendo o resto ele mesmo, a começar pelos flanges para unir partes de diferentes fabricantes. A dor de cabeça foi tamanha que, à beira de um ataque de nervos, Thomas abandonou o projeto e foi passar uns meses nos Estados Unidos.
Na volta, resolveu fazer um carro esporte conversível de dois lugares, à moda dos Ford Thunderbird e Chevrolet Corvette então recém-lançados. A mecânica seria a mesma do carro de corridas abandonado, mas a carroceria seria para desfilar. As linhas lembravam algo do Glasspar G2 e do Woodill Wildfire, dois fora-de-série americanos pioneiros no uso da fibra de vidro. A carroceria do carro de Thomas, contudo, seria toda de alumínio, modelada com martelinho e talento na oficina dos Woerdenbag.
Até os milhares de furinhos que embelezam o painel foram feitos manualmente, um a um, por Thomas. Os botões das luzes e outros equipamentos também foram torneados por ele. Mesmo as rodas raiadas foram produzidas na Rua do Senado. Outras peças eram aproveitadas de modelos existentes: grade de Hillman, faróis de Buick e lanternas traseiras de Chevrolet 55. Pintado originalmente com um belo azul esverdeado, o exuberante conversível ficou pronto em julho de 1956, recebendo a placa 8-28, do Distrito Federal (o Rio ainda era a capital do país).
O Brasil esquentava os motores para inaugurar sua indústria automobilística e, nesse clima, o conversível Woerdenbag enfeitou capas de publicações e anúncios, além de vencer um concurso de elegância automotiva realizado em plena Copacabana. Onde parava, era imediatamente cercado por uma multidão de curiosos — o que levou o jornalista Jânio de Freitas a contar brilhantemente a história de sua construção nas páginas da Manchete, revista de enorme tiragem na época. ”O carro mais bonito do Brasil foi feito (à mão) na Rua do Senado” dizia o título, sem qualquer exagero, na edição de 8/9/1956.
Depois de seu momento de esplendor, o carro foi vendido, trocou de cor, passou por alguns donos, tornou-se demodê e… sumiu. Lembrado apenas por um punhado de entusiastas, virou uma espécie de Santo Graal dos automóveis brasileiros. Havia boatos de que ainda existia, mas ninguém sabia exatamente onde. Até que, há uns cinco anos, reapareceu à boca pequena, trocou de dono e ganhou até uma reportagem em revista de carros antigos. Mas só agora, em Araxá, o Packard Woerdenbag é mostrado ao público em um evento de clássicos.
O carro está praticamente no mesmo estado em que foi encontrado, com direito à poeira acumulada nos anos em que ficou na toca. Ainda traz uma placa do estado da Guanabara, no modelo numérico usado até 1970 (21-80-97), o que dá uma ideia do tanto de tempo que não circula nas ruas.
Está pintado de vermelho e tem umas garras e barras extras nos para-choques, adaptadas no início dos anos 60 (o que poluiu um pouco a pureza das linhas). Fora isso, o carro está milagrosamente completo e original, com direito aos emblemas e letreiros “Woerdenbag” em sua carroceria. Daqui a dois anos, é bem capaz que volte a Araxá restaurado e tão bonito quanto era em 1956. Mas, por enquanto, seu jeitão de “barn find” é um ímã de olhares no evento.
O Voisin 1927 jamais restaurado do museu do automóvel de Campos do Jordão (Foto - Paulo Guarino)
Outro carro exibido como foi encontrado é o Voisin C3 carroceria Belvallette, ano 1927. Sua condição de originalidade é tal que o exemplar, provavelmente, não será restaurado (apenas posto para funcionar). Importado recentemente da França, esse Voisin será uma das atrações do museu de automóveis de Campos do Jordão (SP), mantido pela Fundação Lia Maria Aguiar. As obras estão quase concluídas e a inauguração se aproxima.
Por seu estado, o C3 consegue chamar a atenção mesmo estacionado entre dois carros gigantescos e rebrilhantes do mesmo acervo: um Isotta Fraschini 8A e um Benz 1913 (irmão gêmeo do que está na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro).
Como sempre, Araxá tem carros impressionantes, como um Cadillac 1916 com carroceria de alumínio polido. A edição deste ano é dedicada às limousines, com muitos Rolls-Royce e Packard grandes e espetaculares. O evento também está homenageando o Ford Mustang (cujo lançamento acaba de completar 60 anos) e o centenário da marca britânica MG (nascida Morris Garages Limited, em 1924). Do MG TA aos MGB, há 13 carros expostos.
"O evento não está grande como em outros anos, mas está muito representativo como sempre, com carros maravilhosos. É Araxá sendo Araxá" resume Vicente “Muca” Schulenburg, que veio do Rio e, desde a década de 90, não perde os encontros nacionais organizados pelo Veteran Car Club de Minas Gerais.
Os "velhinhos” mais comuns também têm vez, mas em leilões. Na segunda noite do evento, um VW-1600 TL, ano 1971, saiu por R$ 65 mil. Um Fusca 1600S “Bizorrão” foi arrematado por R$ 72 mil. Um VW-Porsche 914, modelo dos anos 70 que era esnobado até há pouco tempo, encontrou novo dono por R$ 210 mil. Já os lances para um Porsche Carrera 1975 chegaram a R$ 1,4 milhão e, mesmo assim, não alcançaram o valor de reserva.
Picape Joagar 1960 - pioneiro nacional (Foto - Roberto Octavio)
Ainda na ala dos leilões, uma picapezinha vermelha chama a atenção por sua raridade e história. É o único carro sobrevivente da marca Joagar. O nome vem de Joaquim Garcia, músico e torneiro mecânico que sonhou fundar uma fábrica de automóveis 100% brasileira em Jaboticabal (SP). Ele passou a década de 1950 construindo protótipos artesanalmente: fez conversível, cupê, caminhonete… Até os motores eram de produção própria. Apenas sete exemplares foram produzidos — o último, em 1960, foi justamente essa picape.
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