O Passat completa 50 anos de Brasil. Se hoje a primeira geração do modelo é lembrada com saudades, na época do lançamento não foi bem assim. Acostumados ao Fusca, os fãs de Volkswagen ficaram muito desconfiados com a chegada daquele carro com motor dianteiro - e, ainda por cima, refrigerado a água! E mais: tinha tração dianteira e suspensão por molas helicoidais, indo na contramão de tudo o que a marca alemã apregoava em nosso mercado até então.
Em 21 de junho de 1974, exato dia da apresentação do Passat à imprensa brasileira, o jornal “O Globo” publicou uma matéria ao estilo “o povo fala”. Motoristas eram convidados a dar sua opinião sobre o modelo que estreava. Passado meio século, alguns dos comentários chegam a soar cômicos, tamanha a aversão por novidades tecnológicas:
- Fusca que eu conheço só anda a ar. Esse negócio de água não vai dar certo! (Jorge Borges Pena, chofer de praça).
- Meu carro sempre foi Volks. Até agora não tenho nenhuma queixa. Prefiro ficar com ele do que arriscar a trocar por um que precisa de água. (Carlos Henrique V. Medeiros, médico).
Ao longo de décadas, a Volkswagen vendeu a ideia de que motor traseiro refrigerado a ar era a melhor solução mecânica possível. A marca tinha lá sua razão: até a década de 1950, os carros americanos eram maioria por aqui e, na época, não havia radiadores selados nem ventoinhas elétricas. Com o calor brasileiro, era muito comum que os automóveis sofressem panes por superaquecimento, em especial nas subidas de serra e nos engarrafamentos. A cada vez que isso acontecia, era grande o risco de empenar o cabeçote ou mesmo fundir o motor.
Até então, quase todos os carros tinham motor dianteiro e um pesado conjunto de cardã e diferencial para levar tração até o eixo traseiro. É por isso que o Fusca representou uma revolução quando apareceu no Brasil com seu esquema “tudo atrás” e suspensão independente nas quatro rodas, por barras de torção. Com seu motor traseiro refrigerado a ar, o carrinho era confiável, leve e econômico, não fervia e era fácil de manobrar. Sem um diferencial protuberante, os Volkswagen tinham fundo liso, o que lhes permitia vencer caminhos difíceis sem agarrar na trilha.
Nos anos 60, as propagandas da VW enfatizavam as vantagens da refrigeração a ar
Todas essas qualidades eram muito úteis diante de nossa malha viária e temperatura tropical. Em um instante, enxames de besouros e Kombis tomaram nossas ruas e estradas, a ponto de os Volkswagen refrigerados a ar já serem maioria no trânsito no início da década de 1960. De tão bem adaptados por aqui, os modelos nem pareciam ter sido projetados na Alemanha.
Por meio de anúncios geniais, obra de Alex Periscinoto, na agência da Alcântara Machado Publicidade (Almap), a Volkswagen constantemente lembrava que “Ar não ferve”. Era uma forma de alfinetar os Renault Dauphine e Gordini, maiores concorrentes do Fusquinha 1200 na década de 1960.
Com o passar dos anos, chegaram rivais mais modernos, como o Ford Corcel, dotado de tração dianteira e radiador selado. Mesmo assim, a Volkswagen continuava a nadar de braçada em nosso mercado. Para se ter uma ideia, em 1973, a marca alemã abocanhou 59,7% do total de vendas de automóveis e comerciais leves no Brasil. Na época, o fabricante só produzia aqui modelos com motor traseiro boxer refrigerado a ar - foram 362.302 unidades emplacadas naquele ano. E olha que nem incluímos nessa conta os carros de fábricas como Gurgel e Puma, que também usavam mecânica VW “a ar”.
Enquanto isso, na matriz…
A essa altura, contudo, o cenário já estava mudando na Alemanha. Entre 1964 e 1966, a Volkswagen adquiriu a Auto Union (que estava sob controle da Daimler-Benz), levando a marca Audi juntamente com o projeto do motor M118, de quatro cilindros em linha e refrigerado a água, usado inicialmente no sedã Audi F103.
Em 1964 a VW comprou a Auto Union - junto veio o projeto do Audi F103 com motor e tração dianteiros
Em 1969, a Volkswagenwerk anexou outra conhecida fabricante alemã, a NSU. Junto levou o NSU K70, um sedã médio-grande de quatro portas que já estava em fase de produção pré-série. Rebatizado como Volkswagen K70, o carro foi o primeiro modelo com a marca de Wolfsburg a trazer motor e tração dianteiros. Seu motor também era um quatro-em-linha refrigerado a água, mas de projeto NSU, e não Daimler/Audi.
K70 (1969-1975) - sedã da NSU virou o primeiro VW com motor dianteiro refrigerado a água
Já o velho motor boxer refrigerado a ar, projetado por Ferdinand Porsche nos anos 30, vinha sendo aumentado e modernizado, com direito até a injeção eletrônica, mas isso não escondia o peso de sua idade. O Fusca continuava a vender bem na Europa e nos Estados Unidos, mas novos concorrentes - em especial, os japoneses - conquistavam espaço ano a ano.
Novos modelos do grupo com motor e tração dianteiros, como o Audi 80, mostravam-se infinitamente superiores aos estranhos VW 411 e 412, descendentes crescidos (e mal-ajambrados) dos TL e Variant.
O Audi 80 (B1) de 1971 deu origem ao VW Passat
Na hora de criar um sucessor para a linha 412, a Volkswagen simplesmente pegou o sedã médio Audi 80 (B1) e o transformou em um fastback com a ajuda do renomado designer italiano Giorgetto Giugiaro. Assim nasceu o Passat, lançado na Alemanha em julho de 1973. Seu motor era o moderníssimo EA827, de quatro cilindros em linha, refrigerado a água, projetado pela Audi, sob a liderança do engenheiro Ludwig Kraus. Ia meio inclinado no cofre, para que se pudesse fazer um capô mais baixo. Essa mecânica daria origem ao lendário AP, nome adotado no Brasil a partir de 1985.
Ao mesmo tempo, a Volkswagen abortou o projeto do EA266 (um carro pequeno com motor central, instalado sob o banco traseiro) e pôs todas as suas fichas no Golf. Lançado em maio de 1974, o compacto com motor transversal dianteiro, refrigerado a água, foi criado para substituir o Fusca na Europa e nos EUA. Três meses depois do Golf chegou o irmão menor Polo, na verdade um Audi 50 com o escudinho da VW na grade.
Lançado na Alemanha em 1973 o Passat chegou ao Brasil menos de um ano depois
Enquanto tudo isso acontecia na Europa, a Volkswagen do Brasil, comandada por Rudolf Leiding, continuava apostando nos carros com motor traseiro refrigerado a ar. Entre 1969 e 1973, nasceram o VW-1600 quatro portas (vulgo Zé do Caixão), a Variant, o TL, o VW-1500 “Fuscão”, o Karmann-Ghia TC, o SP2, a Brasilia… Todos ainda seguindo a doutrina original do finado professor Porsche.
Daí que o lançamento do Passat no Brasil, em junho de 1974 (apenas 11 meses depois da Alemanha), deu uma cambalhota nos princípios e convicções dos nossos Volksmaníacos - ou seja: quase 60% dos compradores de carros no país, na época. Reproduzimos aqui mais algumas opiniões sobre o novo modelo publicadas no jornal “O Globo”, há 50 anos:
- Prefiro o Fusca. É econômico e eu me acostumei com ele, apesar de não ter luxo. Acho que a Volkswagen está fazendo uma aventura com o Passat. (José Ramos, comerciante).
- Fico mesmo com o Fusca. Para mim, carro é necessidade. O Volks é um veículo para quem trabalha. Não há nada melhor que refrigeração a ar. A outra apresenta sempre o inconveniente de ter que colocar água. (Wilson Batista Pereira, inspetor de vendas).
- Não troco meu Bugre por nenhum carro novo. Nem entendo de refrigeração. (Linda Maria, estudante de Psicologia).
Alguns pouco entrevistados pareciam abertos à novidade da Volkswagen:
- Ainda não conheço o Passat. Por enquanto, fico com o Volkswagen comum. Vamos esperar. Se o modelo aprovar, pode ser que eu mude de carro (VW-1300). Ainda é cedo para o Passat. (Márcio Vitor Monteiro, técnico de vendas).
- Vamos esperar o Passat. Se for bom, vou trocar meu VW-1500 por esse novo modelo. Refrigeração não é problema. (Josefina da Paixão, técnica de vendas).
- Se o Passat aprovar, pode ser que eu troque o meu Corcel. Refrigeração a ar ou a água não faz diferença. (Vicente L. Souza, comerciante).
O Passat representava um mundo de diferença em relação aos VW nacionais daquele tempo. Para começar, era muito espaçoso para seus 4,18 m de comprimento, com bancos reclináveis e forrados com tecido na versão LS. Sua suspensão, McPherson na frente e com eixo rígido atrás, era suave. Ao mesmo tempo, nas curvas fechadas, o modelo era estável e muito neutro (pelo raio de rolagem negativo, tão citado nas propagandas), com direção leve e precisa. Seu motor de 1.471 cm³ e 78 cv tinha funcionamento suave e silencioso.
E havia a segurança. Além de ser o VW mais controlável em alta velocidade, o Passat trazia cintos de três pontos, coluna de direção retrátil, pneus radiais e duplo circuito de freios. Tanto a dianteira quanto a traseira haviam sido projetadas para absorver impactos. Mas o fato é que nenhum cidadão brasileiro da época (exceto, talvez, Emerson Fittipaldi) ligava para essas “frescuras”...
Linha VW 75 no Brasil - Passat era o único refrigerado a água e com motor dianteiro
Dois problemas iniciais quase queimaram o filme do Passat. A cebolinha e o relê de temperatura do motor às vezes não acionavam a ventoinha, provocando superaquecimento. Outras vezes, a situação era inversa: a ventoinha ficava ligada mesmo com o carro estacionado, até arriar a bateria. Havia quem, simplesmente, fechasse o circuito para manter a ventoinha em ação sempre que o motor estivesse ligado.
Já a longa alavanca de câmbio tinha um trambulador frágil e com folgas, que levava a engatar ré em vez de primeira. Levaria algum tempo até que o problema fosse corrigido no Brasil. Pela primeira vez, donos de VW tinham que se preocupar com coisas assim.
Mesmo com esses senões, o Passat venceu o preconceito e os temores iniciais fechando seu primeiro ano cheio (janeiro a dezembro de 1975) com 52.006 exemplares vendidos. Foi menos que o Corcel (72.869) e o Chevette (62.693), porém mais que o Opala (49.107) e o Dodginho 1800 (7.544). Não demorou e o VW TL saiu de cena.
Ao longo de 14 anos, o Passat teve 897.953 unidades produzidas no Brasil, tanto para o mercado interno (676.887 carros) quanto para exportação (com destaque para o Iraque, com cerca de 170 mil exemplares). Aos poucos os motores Volkswagen “a água” foram tomando o lugar do velho boxer refrigerado a ar, que deu seu último adeus na Kombi, em 2005.
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