História Automotiva: Ceirano, os pioneiros italianos que o mundo esqueceu
Quatro irmãos criaram marcas importantes, mas foram ofuscados pela Fiat
Na semana passada, noticiamos que o governo italiano estuda tomar controle de marcas de automóveis descontinuadas (hoje em domínio do grupo Stellantis) e oferecê-las a companhias chinesas que queiram abrir fábricas em território italiano. O foco seria nas marcas Innocenti e Autobianchi, que não têm novos carros desde a década de 1990. Este é mais um passo da guerra do governo italiano com a Stellantis, que está concentrando a produção de seus novos modelos em países como a Polônia (Fiat 600 e Alfa Romeo Junior) e a Sérvia (Fiat Grande Panda).
Também contamos aqui a história da fundação da Fiat, em 1899, a partir da compra da fábrica Accomandita Ceirano - e como o antigo dono, Giovanni Battista Ceirano, ficou de fora da nova sociedade.
Giovanni Battista Ceriano
Hoje vamos focar na história dos irmãos Ceirano, os grandes pioneiros da indústria automobilística italiana. Essa família foi responsável pela criação de marcas de grande destaque nas três primeiras décadas do século XX, algumas delas com forte presença no Brasil. Como referência, no Rio de Janeiro de 1912, havia 77 Fiat, contra 45 SPA, 15 SCAT, 8 Itala e 5 Star Rapid.
Com o tempo, porém, as fábricas criadas pelos Ceirano trocaram de controle acionário e foram extintas. O que sobrou, na maioria dos casos, foi absorvido pelo grupo Fiat. Quem sabe agora o governo italiano não decide revivê-las? Vamos relembrar essas histórias.
WELLEYES
O automóvel Ceirano Welleyes (1898)
Hoje pouco conhecidos, os irmãos Ceirano (Giovanni Battista, Giovanni Junior, Matteo e Ernesto) foram os grandes responsáveis pelo estabelecimento da indústria automobilística na Itália, entre o fim do século XIX e o início do século XX.
O primogênito, Giovanni Battista Ceirano (1860-1912), merece atenção especial. Ele tinha uma fábrica em Turim onde produzia bicicletas com a marca Welleyes. Em 1898, juntamente com o engenheiro Aristide Faccioli, Giovanni Battista construiu artesanalmente um automóvel de apenas 2,30 m de comprimento, com motor traseiro de dois cilindros opostos e 657 cm³, que alcançava espantosos 35 km/h.
Por suas qualidades técnicas, o modelo ganhou prêmios, chegou em segundo lugar na prova Turim-Pinerolo-Avigliana-Turim e logo chamou a atenção da alta sociedade local. Rapidamente, um grupo de investidores, que incluía um latifundiário chamado Giovanni Agnelli, comprou o projeto do automóvel Welleyes, bem como sua fábrica original, a Accomandita Ceirano. Até os funcionários da Ceirano entraram no pacote, caso do projetista Faccioli e dos jovens mecânicos (e pilotos) Vincenzo Lancia e Felice Nazzaro. Assim foi fundada, em 1899, a Fabbrica Italiana Automobili Torino - hoje mundialmente conhecida como Fiat. A marca Welleyes foi extinta e o carrinho passou a ser produzido com outro nome: Fiat 3 ½ HP.
O primeiro Fiat (1899) nada mais era que o Welleyes rebatizado
Giovanni Battista recebeu seu pagamento pela venda, foi empossado como gerente de vendas da nova companhia, mas foi excluído de qualquer participação acionária. Pouco depois, ele deixou a Fiat e foi criar outros carros.
STAR
O logotipo da Star
Com a soma do que receberam dos fundadores da Fiat, Giovanni Battista Ceirano e seus irmãos Matteo (1870-1940) e Ernesto (1875–1953) estabeleceram uma nova fábrica de automóveis, a Fratelli Ceirano, que produzia carros com mecânica da francesa De Dion-Bouton.
A Fratelli Ceirano, contudo, teve vida curta: Matteo deixou a sociedade em 1903 para criar a Itala (da qual falaremos mais adiante), enquanto Giovanni Battista fundou, no ano seguinte, a Società Torinese Automobili Rapid (Star), que lançou diversos modelos com o nome Rapid. Esta linha incluía desde carros esportivos a veículos comerciais e ônibus.
Tudo ia bem até que Giovanni Battista sofreu um derrame que o afastou do comando da empresa. Aposentado, o pioneiro passou o resto de seus dias na cidade litorânea de Bordighera, na fronteira da Itália com a França. Morreu em 1912, aos 52 anos de idade.
A Star foi fundada por Giovanni Battista em 1904
Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Star passou a produzir munição, além de um caminhão padronizado para uso militar, o Tipo Unico. Terminada a guerra, o norte da Itália entrou em um período de greves, ocupações de fábricas e confrontos entre diversos grupos políticos (anarquistas, comunistas e fascistas), muitas vezes com resultados trágicos. Foram dois anos em um contínuo clima de insegurança.
Após tantos revezes, foi iniciado o processo de liquidação da Star, em 1921. As instalações da fábrica ficaram com Giovanni Agnelli (Fiat), que passou a produzir ali os rolamentos RIV. O que sobrou da Star foi incorporado pela Società Piemontese Automobili (SPA), fundada por Matteo Ceirano. Mas antes de contar a história da SPA é preciso fazer um flashback…
Postal comemorativo da vitória da Itala na Coppa Florio de 1905
ITALA
Por muitos anos, a Itala foi a segunda grande marca italiana de automóveis. A companhia foi fundada em Turim, em 1903, por Matteo Ceirano e mais cinco sócios.
Matteo havia acabado de deixar a Fratelli Ceirano, que mantinha com o irmão mais velho Giovanni Battista, e partira para voo próprio. Desde o início de sua existência, a Itala mostrou seu valor destacando-se em competições, muitas vezes com o próprio fundador ao volante. Não demorou e investidores entraram em cena, ampliando o capital e as instalações da empresa. Para se ter uma ideia, a produção em 1904 foi de 3.080 carros - um colosso para aqueles tempos. A grande maioria era destinada à exportação.
Os projetos eram tocados pelo engenheiro Alberto Balloco, que acompanhava Matteo desde os tempos da Fratelli Ceirano. Foi Balloco o criador do modelo de competição Itala 100 HP, com motor de quatro cilindros e 14.760 cm³ (3.690 cm³ por cilindro!), que venceu a Coppa Florio de 1905, guiado por Giovanni Raggio, derrotando o favorito Fiat 120 HP pilotado por Lancia e Nazaro.
Itala no Pequim-Paris 2010, repetindo o trajeto de 1907
Balloco também projetou o Itala 35/45 HP, modelo com motor de quatro cilindros em linha, 7.433 cm³ e a avassaladora potência de 45 cv (a 1.500 rpm). Foi com esse carro que a Itala obteve seu mais memorável triunfo: a vitória no rali Pequim-Paris de 1907, com uma vantagem de três semanas sobre o segundo colocado.
A essa altura, porém, Matteo Ceirano já havia perdido o controle da Itala para os investidores. Ele deixou a companhia e fundou uma nova fábrica, a SPA, em 1906. Sob nova administração, a Itala continuou em seu caminho com experimentações técnicas, como as válvulas rotativas, e ampliando a gama de produtos. Na Primeira Guerra, a fábrica fez motores V8 para aviões, sob licença da Hispano-Suiza. A companhia preparava a entrega de 3 mil caminhões ao exército italiano quando a encomenda foi reduzida a umas poucas centenas de veículos - e o pagamento se arrastou por uma eternidade.
Propagandas de Itala no Brasil nos anos 20
Desde então, a situação financeira da Itala nunca mais voltou ao prumo, ainda que a empresa continuasse a exportar seus carros para diversos países (no Brasil, a marca era representada pela Bonazzo & C., com lojas no Rio e em São Paulo). Em 1929, veio a fusão com a fábrica de caminhões Officine Metallurgiche e Meccaniche di Tortona. A produção de automóveis com a marca Itala foi encerrada no início dos anos 30 e o que sobrou da companhia foi comprado pela Fiat.
S.P.A. Torpédo 25 HP (1913)
SPA
Matteo Ceirano deixou a Itala em 1906 e se juntou ao industrial Michele Ansaldi para dar início a mais uma fábrica de veículos: a Società Piemontese Automobili (SPA), também em Turim. Era uma fábrica de carros de passeio, esportivos e de luxo, além de chassis para caminhões e ônibus. Nos anos que antecederam a Primeira Guerra, a SPA teve boa presença internacional, inclusive no Brasil, onde era representada pela firma Laport, Irmão & C., do Rio de Janeiro. A empresa fazia até motores de avião.
Como aconteceu com a Itala, as encomendas militares durante a guerra de 1914-1918 e a crise social do pós-guerra abalaram a saúde financeira da SPA. Em pouco tempo, o controle acionário da companhia foi assumido pelo grupo automotivo Ansaldo e pelo Banco Agrícola Italiano, e Matteo deixou o negócio.
Anuncio de SPA no Brasil (1911)
Mesmo em novas mãos, a tecnologia dos SPA continuou a evoluir. Em 1922, a fábrica produziu o SPA Super Sports 30/40 CV. Com 4,4 litros, seu motor seis-em-linha rendia 65 cv e era tremendamente avançado para a época: tinha quatro válvulas por cilindro, duplo comando no cabeçote, pistões de alumínio, dupla alumagem (duas velas por cilindro), dois carburadores, freios nas quatro rodas e radiador em V, para melhorar a penetração aerodinâmica.
Entre 1925 e 1926, a SPA foi absorvida pela Fiat. Ainda chegou a produzir veículos militares, caminhões e ônibus até ser extinta de vez, na década de 40.
A Junior produzia voiturettes mas também fez carros de corrida
A OTAV se uniu à Junior
JUNIOR
Giovanni Ceirano Junior (1865-1948), o irmão de Giovanni Battista, Matteo e Ernesto, também quis ter sua fábrica. Em 1904 ele começou a produzir os automóveis Junior, marca que durou uns cinco anos até juntar-se com a fabricante de voiturettes (pequenos carros para uso urbano) OTAV. A parceira, contudo, passou a concentrar suas atenções nas motocicletas e os automóveis da Junior saíram de cena.
SCAT 18-30 HP Torpedo 1913
SCAT e CEIRANO
A essa altura, Giovanni Junior já estava em outro empreendimento: a Società Ceirano Automobili Torino (SCAT), esta sim uma fábrica com muita história. Fundada em 1906, a empresa fazia carros de alta qualidade.
Em 1912, o SCAT era anunciado no Brasil como “a melhor machina do mundo”. E Giovanni Pini, seu representante por aqui, não estava exagerando tanto assim: entre 1911 e 1914, a SCAT venceu três vezes a Targa Florio, famosa prova cujo trajeto serpenteava pelas montanhas da Sicília. Em duas dessas ocasiões (1911 e 1914), o piloto era Giovanni "Ernesto" Ceirano (1889-1956), filho de Giovanni Junior (são muitos Giovanni e dois Ernesto nessa história… preste atenção para não se perder!). Em sua segunda vitória, Giovanni “Ernesto” percorreu os 979 km do sinuoso circuito em 16 horas e 51 minutos.
Anuncio da Scat (1912)
Uma das inovações técnicas da marca foi a partida automática, usando um dispositivo de ar comprimido - anterior à partida elétrica do Cadillac 1912. A exemplo do que ocorreu com a Itala, a SCAT também produziu motores Hispano-Suiza V8 para aviões, na Primeira Guerra.
Em 1919, Giovanni Junior e Giovanni “Ernesto” deixaram a SCAT para fundar a Ceirano Fabbrica Automobili, chegando a montar carros na Inglaterra, por meio da Newton-Ceirano. E, nas voltas que o mundo dá, pai e filho retornaram à antiga companhia quando houve a fusão SCAT-Ceirano, em 1925.
A Ceirano também fazia caminhões
Giovanni Junior e Giovanni “Ernesto” fundaram uma nova Ceirano nos anos 20
Contudo, na esteira da crise mundial de 1929, sérias dificuldades financeiras forçaram a venda da SCAT-Ceirano ao grupo Fiat. A produção ainda continuou até 1932, quando a marca SCAT foi incorporada à SPA (que também já estava em poder da Fiat) e retirada de cena.
Como prego no caixão, a Fiat condicionou a compra da SCAT-Ceirano a algumas restrições a Giovanni Junior. Uma das cláusulas do contrato o impedia de voltar a produzir automóveis.
FATA Aurea - o capítulo final
FATA
A FATA (Fabbrica Anonima Torinese Automobili) era uma companhia de pequeno porte que fazia automóveis com a marca Aurea. Sua produção anual girava em torno de 400 carros. Na segunda metade dos anos 20, a empresa não aguentou a concorrência do recém-lançado Fiat 509 (25% mais barato que um Aurea 500), entrou em crise e fechou as portas. Foi então vendida a Giovanni Junior e Giovanni “Ernesto”.
Como não pôde voltar a produzir automóveis, por conta das restrições da Fiat, Giovanni Junior reorientou o negócio da FATA para a fabricação de autopeças, em especial para modelos da Alfa Romeo.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os prédios da FATA, bem como todo o parque industrial de Turim, foram gravemente danificados por seguidos ataques de bombardeiros britânicos e americanos. Diante da devastação, Giovanni Junior decidiu liquidar sua empresa em abril de 1945, pouco antes do fim da guerra.
E assim acabou, melancolicamente, a saga industrial dos pioneiros Ceirano.
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