Malzoni GT: modelo que deu origem ao Puma faz 60 anos
Projetado em um engenho de cachaça, carro fez enorme sucesso nas pistas e nas ruas
Houve um tempo em que tínhamos fábricas de automóveis 100% brasileiras. Entre as marcas de maior sucesso estava a Puma, que produziu 22 mil carros, exportou para 50 países e criou modelos que eram sonhos de consumo de jovens brasileiros.
Essa história começou, meio que por acaso, num engenho de cachaça em Matão, a 320 km da capital paulista. O dono da Fazenda Chimbó era o ítalo-brasileiro Genaro Domenico Nuncio Malzoni, mais conhecido como Rino Malzoni (1917-1979). Advogado por formação, ele gostava mesmo era de bancar o Pininfarina.
Lançado em 1964, o Malzoni GT de pista deu origem a uma versão de rua
Na oficina de tratores da fazenda, Rino recortava e modificava todos os carros que comprava. Em 1961, já quarentão, ele resolveu criar uma carroceria inteira, de chapa. Eram os tempos de florescimento da indústria automobilística brasileira e a mecânica escolhida foi a do DKW-Vemag nacional, com motor de três cilindros e dois tempos. O resultado foi um requintado cupê de linhas retas e limpas - um exemplar único, feito apenas para o uso de seu próprio construtor.
Em busca da leveza
Mario César de Camargo Filho, o Marinho (1937-2020), piloto da equipe oficial da Vemag, frequentava a mesma roda de bate-papo que Rino. O assunto, claro, era automóvel. Daí, a ideia: que tal fazer um DKW menor, só para corridas? Seria um grã-turismo bem mais enxuto do que o cupê de uso pessoal de Rino. Na época, os pesados Belcar sofriam para acompanhar suas rivais nas pistas, as ágeis berlinetas Willys Interlagos. O carrozziere de Matão topou a missão.
Um GT Malzoni de rua - hoje esse carro pertence ao acervo da Audi, na Alemanha
No galpão dos tratores, um chassi de Belcar teve o entre-eixo encurtado de 2,45m para 2,22m. Pedro Molina, artista da chapa, transformou o desenho de Rino numa carroceria de metal. Seguiam a escola italiana do início dos anos 60, e a inspiração vinha, principalmente, da Ferrari 250 GT Berlinetta SWB.
Entortava-se o pescoço para entrar na cabine baixinha e apertada. As janelas laterais de correr e a envolvente vigia traseira eram de acrílico. No interior, o mínimo possível. Aos instrumentos originais do Belcar foi acrescentado um conta-giros Veglia. Um volante esportivo, um singelo santantonio e pronto.
A mecânica foi preparada na concessionária Vemag que Marinho tinha em São Paulo. Era um motorzinho dois tempos de três cilindros, fuçado para render algo entre 85 cv e 88 cv — ótima potência para a cilindrada de 1.000 cm³. Quem montou esse primeiro motor foi Sérgio Cabeleira, mecânico que jamais havia pisado num autódromo. Tudo era feito à noite, nas horas vagas.
O Mazoni II, de chapa, é o avô de todos os Puma. Hoje o carro pertence ao filho de Rino
Como em todo DKW, a tração era dianteira. A alavanca de marchas desceu da coluna de direção para o assoalho. Isso inverteu as posições: primeira para trás, segunda para a frente, terceira para trás, quarta para a frente. O peso ficou em torno de 790 kg (uns 150 kg a menos que um Belcar de série).
Ainda era pesado em relação ao que os criadores imaginavam inicialmente, mas o entre-eixos menor ajudava nas curvas. O carro ficou bem na mão, uma delícia de guiar. Uma tremenda diferença em relação ao Belcar. De julho a outubro de 1964, o carrinho branco com listra preta participou de quatro corridas. Venceu uma prova em Interlagos e mostrou seu potencial. O “Jornal dos Sports”, do Rio de Janeiro, batizou o novo carro de corrida como “Malzoni II” — o “I” era o cupê de rua usado por Rino, exemplar que não sobreviveu ao passar das décadas.
Na equipe da fábrica
Jorge Lettry (1930-2008), o chefe de competições da Vemag, adotou o projeto e forneceu motores ardidos para o carro de Marinho. E foi a própria equipe oficial da Vemag que encomendou a Rino carrocerias de fibra de vidro para a temporada de 1965.
O Malzoni 96 de Norman Casari em duelo com o Karmann-Ghia Porsche da Equipe Dacon, pilotado por Emerson Fittipaldi
Depois de uma tentativa frustrada (o Malzoni III, já de fibra mas muito pesado), o carrozziere de Matão criou o elegante e leve Malzoni IV (ou GT Malzoni), com linhas mais refinadas e uma traseira reta, ao estilo Kamm tail da Ferrari 275 GTB.
O milagre de São Crispim
Os três primeiros carros foram entregues à Vemag ainda no final de 1964. Lá, ganharam chassis bem aliviados e motores DKW muito envenenados: com apenas 1.080 cm³, rendiam 106 cv. Milagres de Lettry e seu mecânico-chefe Miguel Crispim. Na forma final, o GT Malzoni pesava apenas 700 quilos. Além dos carros da equipe oficial, havia outros vendidos a pilotos amadores. Veio também uma versão de rua, com para-choques cromados e interior forrado com esmero.
Nas 35 corridas em que participaram, entre 1964 a 1968, os Malzoni obtiveram 12 vitórias contra importados de primeira linha como Alfa GTA e Alpine A110 - ou seja: ganharam em nada menos que 34% das provas. Os pilotos Norman Casari e Mário César de Camargo foram os que dominaram melhor a difícil arte de controlar o esportivo com tração dianteira.
O GT Malzoni que teve a vitória moral nas 1000 Milhas de Interlagos de 1966
Mesmo quando não ganhava, o esportivo fazia corridas épicas. Foi o caso da participação nas Mil Milhas Brasileiras de 1966, em Interlagos. Emerson Fittipaldi e Jan Balder, então novatos com 19 para 20 anos de idade, pilotavam o GT Malzoni número 7. Mesmo com o mais fraco dos Malzoni inscritos, os garotos lideravam a prova de longa duração com grande margem para o segundo colocado, a mítica carretera Chevrolet V8 dos experientes Camillo Christófaro e Eduardo Celidônio.
Após 14 horas de corrida e faltando poucas voltas para o final, um dos três cilindros do motor DKW começou a falhar. Nos boxes, foi feita a troca da vela com problema e, mesmo assim, a falha voltou. Com apenas dois cilindros, Balder conseguiu receber a bandeirada em terceiro, mas como campeão moral da corrida. A equipe oficial da Vemag havia sido extinta recentemente e, mesmo assim, os Malzoni (reunidos na Equipe Brasil, chefiada por Crispim) terminaram em segundo, terceiro e quarto lugares nas Mil Milhas de 66, frente a carros importados muito mais potentes. “Ninguém no mundo fez o que fizemos com os DKW nas pistas”, orgulhava-se Lettry.
O Puma GT 1967 usava mecânica do DKW-Vemag (ao fundo)
Morre o GT Malzoni e nasce o Puma DKW
O rápido sucesso nas pistas levou Rino a criar a empresa Lumimari — nome formado pelas iniciais dos sócios Luis Roberto da Costa, Milton Masteguin, Mário César de Camargo Filho e Rino Malzoni. Entre carros de rua e de corrida, estima-se que tenham sido fabricados de 43 a 45 exemplares do GT Malzoni (por muito tempo falou-se em 35 carros).
Foi tanta atividade que os moldes do GT Malzoni ficaram gastos, precisando ser trocados. Então, o piloto e projetista Anísio Campos (1933-2019) foi convocado para retocar as linhas do cupê. Visualmente, a novidade mais evidente era a frente mais baixa, com para-choques em posição diferente, ladeando a grade. Toda a traseira era nova e as lanternas, antes redondas, passaram a ser compridas.
Com o fim da DKW-Vemag, o Puma ganhou mecânica VW (1968)
Com o nome Puma, o novo modelo foi capa de revista e estreou no Salão do Automóvel de São Paulo de 1966. Como o Malzoni, tinha chassi DKW — só que em vez de ser voltado para corridas, o Puma era vendido somente como esportivo de rua, com acabamento caprichado.
De DKW a VW
No ano seguinte, contudo, a Volkswagen comprou a Vemag, encerrando a produção dos carros de passeio com motor dois tempos. Após 135 carros Puma com motor DKW serem fabricados, o fornecimento de componentes mecânicos foi encerrado. Era preciso encontrar outra solução rapidamente.
O próprio Rino Malzoni construiu, num galpão de Araraquara, o protótipo de um Puma inteiramente novo — agora com componentes Volkswagen. A plataforma vinha do Karmann-Ghia 1500. Ou seja: o motor saía da dianteira e passava a ser traseiro, refrigerado a ar. Isso exigiu uma completa reformulação do esportivo.
Lançado em 1968, o novo Puma GT tinha suas linhas inspiradas nas do então recém-lançado Lamborghini Miura (modelo italiano que hoje é considerado um dos esportivos mais belos de todos os tempos). A esta altura, a empresa Lumimari já havia sido rebatizada de Puma Veículos e Motores, com fábrica na capital paulista. Com o fim da Vemag, Jorge Lettry passou oficialmente a fazer parte da empresa, cuidando do acerto dinâmico e da promoção dos carros.
Apesar de custar caro, suas vendas no Brasil deslancharam. Não demorou e o modelo ganhou motor VW 1600, sendo rebatizado de Puma GTE. Com o uso da confiável base Volkswagen, o Puma ficou ainda mais rápido. E o melhor: seus componentes podiam ser encontrados com facilidade em qualquer parte do mundo.
O renomado jornalista americano Karl Ludvigsen ficou entusiasmado com o esportivo e fez reportagens em que chamava o Puma GT de “Brazilian Corvette” e também o comparava — favoravelmente — ao Porsche 914. Pronto: estava feita a imagem do carro no exterior. Por muito tempo, as exportações foram um grande reforço de caixa para a empresa.
Rino, que bancou uma boa parte da criação da fábrica, acabou saindo da Puma em 1974, após desavenças com outros sócios. O êxito do Puma no Brasil e no exterior durou até o início dos anos 80, mas isso já é assunto para outra história…
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