De Barcelona, Espanha - A cada matéria sobre carros elétricos, os puristas se alvoroçam: "Esse carrinho de golfe nunca vai ter o som de um V8!". Pois saiba que Joon Park, o vice-presidente da Hyundai responsável pela divisão esportiva N, também é um petrolhead. Ao idealizar o Ioniq 5 N, pensou em um carro que reproduzisse reações de um modelo a combustão - não apenas o som de um propulsor a gasolina, como também o comportamento nas curvas e a sensação das mudanças de marcha, com direito até a um conta-giros.
O trabalho foi desenvolvido por uma equipe de 100 engenheiros, seguindo cânones de Albert Biermann, homem que comandou a divisão M da BMW por 30 anos, antes de se transferir para a Hyundai em 2014. Prontos, os protótipos foram acertados no desafiador traçado de Nürburgring Nordschleife, onde o Ioniq 5 N fez o excelente tempo de 7:45.59 - no ranking das voltas rápidas, ficou entre um AMG CLA 45 S e um Gallardo Superleggera.
O resultado prático é um carro divertido e surpreendente. Tanto que, na semana passada, esse Hyundai recebeu o troféu de Esportivo do Ano na votação mundial World Car Awards, superando dois BMW da divisão M (o M2 e o XM). Que ironia, não?
Em um teste na Catalunha, entre cidade, estrada e autódromo, pudemos comprovar que o Ioniq 5 N é um elétrico bem diferente de todos os outros. Nascido nesses tempos de transição tecnológica, tem sons e reações simulados eletronicamente, mas desperta emoções de verdade. Um paradoxo da pós-modernidade sobre quatro rodas. Seus dois motores rendem uma potência total de 650 cv, mas isso nem é o que mais impressiona no modelo.
O primeiro contato foi à noite, numa apresentação com o carro estático. Há quem chame o Ioniq 5 de "crossover" ou "SUV compacto", mas o fato é que o carro está muito mais para um hatch. De perto, parece maior que nas fotos - uma espécie de Golf em escala ligeiramente aumentada. Diz o fabricante que as linhas angulosas foram inspiradas nas do Hyundai Pony (1975–1990), mas vimos ainda mais semelhanças com os lendários Lancia Delta HF, que brilhavam nos ralis dos anos 80.
Imagine um supercarro espaçoso. Com 3 m de entre-eixos e assoalho liso, o Ioniq 5 N é amplo por dentro e tem um porta-malas surpreendente para seus 4,71 m de comprimento. No lugar do frunk (aquele compartimento para bagagens que existe em alguns elétricos), há o módulo de controle coberto por uma tampa plástica. De relance, parece que há um motor a combustão ali.
Em relação ao Ioniq 5 comum - que será lançado no Brasil em setembro - a transformação foi radical. A plataforma E-GMP é basicamente a mesma, mas o monobloco recebeu reforços para aumentar a rigidez torsional. Tanto a bitola dianteira quanto a traseira são mais largas e os arcos dos para-lamas cresceram para que o carro receba enormes pneus Pirelli P-Zero 275/35 R21. Nos arcos traseiros há aberturas para refrigeração dos freios. Completando o conjunto, o carro ganhou uma caixa de direção bem direta e suspensão com braços mais grossos, 2 cm mais baixa que a do Ioniq 5 comum, além de novas molas e amortecedores.
Combinando com os ângulos retos da carroceria, faróis e lanternas têm pequenos retângulos que lembram o mundo do game Minecraft. No para-choque da versão N há pequenas aberturas que criam um efeito de grade retrô, com algo dos carros-conceito Buick XP-300 (1951) e do Lincoln Futura (1955). Os para-choques também mudam, bem como o spoiler traseiro.
Nosso 5 N veio pintado numa cor sólida que lembra o azul Saturno do Fusca Itamar 93/94. Chama-se Performance Blue Matte e seu acabamento fosco é lindo, mas deve dar um trabalhão na hora de retocar. Em resumo: se o Ioniq 5 normal já salta aos olhos por seu estilo inusitado, a versão N é um delírio para quem curte um hot hatch.
Enquanto o Ioniq 5 convencional sai em versões com um motor (traseiro) ou dois motores (um em cada eixo), e potência variando de 170 a 325 cv, seu irmão N vem sempre com dois motores e potência combinada de 609 cv, além do absurdo torque de 75,5 kgfm (já a 1 rpm, lembre-se). Achou pouco? Aperte a tecla do modo N Grin Boost e você terá à disposição um pico de 650 cv e 78,5 kgfm para um "sprint" de até dez segundos.
Para bancar o consumo extra de energia, a versão N recebe uma bateria de 84 kWh - contra as de 58 kWh a 77 kWh do Ioniq 5 comum. A refrigeração da bateria do N também é mais elaborada, para evitar perdas de potência por superaquecimento em um track day, por exemplo. A autonomia anunciada é de 448 km (ciclo WLTP), mas não espere chegar perto disso na vida real, até porque você não vai resistir a acelerar esse carro. Ao menos há tecnologia de 800 volts para recargas rápidas. E, diferentemente do Ioniq 5 normal, a versão N traz as simulações de som de motor e de câmbio automatizado de oito marchas - o que faz um mundo de diferença na condução.
A partida foi na movimentada orla de Barcelona com destino ao Parcmotor Castellolí, circuito onde poderíamos explorar todo o potencial do Ioniq 5 N. Teríamos 215 quilômetros pela frente, entre ida, vinda e sinuosos desvios para alongar nossa convivência do carro.
Com muito apoio lateral, os bancos dianteiros são ótimos: seguram bem o corpo sem serem exageradamente apertados ou duros. Sua regulagem é manual, enquanto nos Ioniq 5 normais é elétrica. No meio, há um console gigante como o de uma minivan. A posição de guiar é mais alta que a esperada, e nos lembra que há uma bateria recheando o assoalho.
O motorista também percebe que está em um carro elétrico quando, no trânsito urbano, ativa o modo Eco de condução. Não se ouvem ruídos e é possível usar a função one-pedal. O carro fica até meio lerdo - ninguém imagina que por trás desse comportamento pacato de Nissan Leaf ou BYD Dolphin há uma besta-fera de 650 cv pronta para ser libertada. Você poderia emprestar o carro para sua tia ir ao supermercado.
Graças também aos ajustes eletrônicos da suspensão, o Ioniq 5 N nos modos Eco ou Normal é até cômodo e relaxante na cidade, ao menos no asfalto lisinho das ruas e estradas da região de Barcelona. Tivemos que fazer um certo esforço para buscar valas e desníveis no piso - e a sensação de conforto continuou, mesmo com os larguíssimos pneus 275/35.
Aproveitamos a calmaria que precede a tempestade para curtir o volante forrado com couro furadinho ótimo no tato e no diâmetro (tem um quê de anos 80, apesar de suas várias teclas e comandos). Com duas telas, o painel é 100% digital e permite uma infinidade de configurações.
Ponha nos modos Sport ou N e você verá um conta-giros no painel. Pois é… Na ânsia de simular as impressões de um carro com motor a combustão, puseram um conta-giros digital com as faixas vermelhas começando em 6.700 rpm ou 7.700 rpm, dependendo do modo de condução. Mas qual é a relação disso com motores elétricos que giram a 21.000 rpm? "Reproduzimos as escalas do conta-giros dos Hyundai Elantra N e i30 N com motor a combustão, estabelecendo uma proporção com a rotação máxima dos motores elétricos", explica Joon Park, o entusiasmado pai da criança.
JooN (com "N" maiúsculo, com gosta de dizer) conta que o som de motor - reproduzido por oito alto-falantes na cabine e dois voltados para o lado de fora - também foi sampleado do 2.0 turbo, a gasolina, de 280 cv, que equipa o Elantra N e o i30 N. O som de motor a combustão pode ser ligado ou desligado pelo motorista. Há outras duas variações: ruído de caça a jato ou som do protótipo de corridas virtual Hyundai N 2025 Vision Gran Turismo, dos jogos de PlayStation. Já temos uma geração de gamers projetando carros e coisas assim começam a acontecer.
Fato é que todo mundo acaba escolhendo o ronquinho do 2.0 Turbo, bem convincente, a partir de sua "marcha lenta" encorpada. Já havíamos guiado outros carros elétricos com sons virtuais, como o Porsche Taycan, mas, depois de poucos quilômetros, cansávamos da brincadeira e desligávamos o ruído. No Ioniq 5 N, porém, é diferente: a gente não enjoa do som de motor a combustão e sente até vibrações.
Outra sacada da Hyundai foi projetar o modo N e-shift, com aletas atrás do volante, simulando um câmbio de oito marchas com dupla embreagem. A ideia básica é apimentar a relação homem-máquina. E funciona! Em vez das engrenagens de uma caixa de câmbio, o que temos no Ioniq 5 N é um software que administra a entrega de torque e potência, bem como a carga da regeneração de energia.
"Poderíamos até ter usado um câmbio de verdade em vez do software, mas isso deixaria o carro mais pesado e mais lento", revela Joon. Em uso normal, o carro mal dá pinta do canhão que é. Mas vamos para a autoestrada e a coisa muda: 130, 140, 150 km/h, jogamos "marcha" pra cima e ele ainda dá um salto à frente. É facílimo ser multado com esse carro.
Há uma infinidade de ajustes, mas basta pôr em modo Sport que os comandos ficam na medida certa: nem muito pesados, nem exageradamente leves, mas sempre com respostas rápidas. Sabe um Golf GTI? Numa estradinha sinuosa que serpenteia pela montanha de Montserrat, temos a perfeita cópia das sensações de um carro com motor a combustão, com direito a tranquinhos nas "passagens de marcha" e muitos pipocos de "escape" (haja aspas...) nas reduções. Para a próxima geração, deveriam inventar um perfume de mistura rica para a experiência ficar completa.
A diferença para um carro a gasolina de verdade é o torque monumental que os motores elétricos entregam, a qualquer momento, na subida da serra. Sem falar que ultrapassamos dezenas de ciclistas morro acima sem a culpa de emitir monóxido de carbono pelo caminho. É o melhor de dois mundos.
Chegamos ao circuito Parcmotor Castellolí. Com 4.150 metros e 11 curvas, sua pista de corridas é cheia de aclives, declives e tem até uma ponte. Começamos no retão testando o launch control: pé esquerdo firme no freio, pé direito trancado no acelerador, liberamos o freio e, em menos de 4 segundos, estamos a 100 km/h. A Hyundai informa a marca de 3,4 s mas, na empolgação, deixamos cortar giro em primeira. Sim: temos um carro elétrico que corta giro…
Segundo a ficha técnica, a máxima é limitada em 260 km/h. Nas voltas rápidas, chega-se a 180 km/h com incrível rapidez. O ronco que sai dos alto-falantes e o câmbio simulado dão referências e facilitam a pilotagem em relação aos elétricos comuns, criando uma conexão muito mais interativa com o carro. E o bom é que você pode “errar marcha” sem correr o risco de danificar o motor.
Já guiamos elétricos fortes como o Jaguar I-Pace, o Audi e-tron GT e o Mustang Mach-E GT em circuitos e sempre ficou a impressão de que esses carros são muito pesados para condução em pista, sobrecarregando freios, suspensão e torturando pneus. Nas retas, a aceleração desses modelos é linear e brutal mas, após algumas voltas, a sensação não é prazerosa e acabamos mareados.
No Ioniq 5 N ocorre o contrário. O carro pesa 2,2 toneladas mas parece levíssimo, especialmente no autódromo. Não balança, a rolagem da carroceria é bem contida, as massas são bem administradas e os freios (com discos de 400 mm na frente e 360 mm atrás) mantêm sua eficiência. Com esse acerto caprichado, tração integral e um monte de borracha no chão, é só frear, reduzir, apontar pra curva e ser feliz. Em vez de náusea, temos um sorriso no rosto. É como se estivéssemos guiando um bom hot hatch com motor a combustão.
A tarde no Parcmotor Castellolí teve ainda uma demonstração de drift, algo inusitado em um carro elétrico com tração integral. Uma das configurações, porém, permite pôr 90% da tração nas rodas traseiras e ter uma entrega mais progressiva do torque, simulando uma embreagem. O motor traseiro vai atrelado a um diferencial de deslizamento limitado. Com tanta força disponível, até aquela sua tia do supermercado consegue pôr o Ioniq 5 N de lado.
Hora de voltar pela Autovía del Nordeste (A-2), onde fomos brincando com um BMW Série 5 e um Mazda MX-5 cupê como um gato que se diverte com baratas. Só chegando à área urbana de Barcelona é que apontamos a tecla para desativar o modo bomba atômica - e voltamos silenciosamente ao hotel, acompanhados apenas pelo ruído de rolagem dos pneus.
Em setembro, o Ioniq 5 normal será lançado no Brasil, mas ainda não se sabe se sua versão esportiva chegará ao nosso mercado. Na Europa, o preço do Ioniq 5 N está na casa dos 75 mil a 80 mil euros, dependendo do país - é o valor aproximado de um BMW iX, modelo que no Brasil sai por R$ 700 mil. Ou seja: se um dia for vendido aqui, o 5 N deverá custar bem mais que os Toyota GR Corolla (R$ 417 mil) e Honda Civic Type R (R$ 430 mil).
Feito por gente que realmente gosta de automóveis, o Ioniq 5 N é perfeito para superar preconceitos contra carros elétricos. E, certamente, será copiado pela concorrência nos próximos anos.
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