Em apenas duas décadas deste século a China criou não só o maior mercado mundial de veículos, com mais de 20 milhões de unidades vendidas por ano, mas está iniciando um novo ciclo histórico com mudança de mãos na liderança desta indústria.
Com ampla vantagem na produção de carros elétricos a perspectiva é que, em mais uma década, os fabricantes chineses vão tomar espaço significativo das tradicionais marcas globais para dominar um terço das vendas no mundo.
Segundo um recente relatório do banco suíço UBS, publicado no fim de agosto e divulgado pela Bloomberg em 5 de setembro, o plano da China para catapultar sua indústria automotiva não encontra precedentes históricos e está funcionando melhor do que um relógio fabricado no país sede da instituição – ou um similar chinês.
A instituição prevê abalos sísmicos no setor com a formação da onda – mais para tsunami – de carros elétricos chineses que, até 2030, devem fazer os fabricantes tradicionais globais perderem um quinto de sua participação nas vendas mundiais de veículos. O UBS projeta que o market share global dos chineses vai saltar dos já altos 20% para 33% até 2030, enquanto neste mesmo período o domínio das marcas ocidentais cairá de 81% para 58%.
No momento a principal força dos fabricantes chineses está dentro de casa, no seu imenso mercado doméstico, sem vendas relevantes em mercados importantes como Estados Unidos [o segundo maior do mundo], Japão, Coreia ou Índia.
Já na Europa as importações de modelos elétricos chineses estão crescendo, competindo com fabricantes tradicionais locais, como Volkswagen, Mercedes-Benz e BMW, reeditando uma espécie de invasão bárbara que pode pôr fim ao império que estas construíram nos últimos cem anos.
Tal ameaça é levada a sério e já motivou a União Europeia a estudar adotar sobretaxações sobre esses veículos, alegando que a China mantém preços artificialmente muito baixos com a aplicação de subsídios estatais.
É pouco provável que estes países permitam maior penetração de carros chineses em seus domínios, mas esta é uma questão delicada, dado que antes de invadir esses mercados com suas marcas próprias, como BYD, Chery e GWM, a China atraiu para seu território, por meio de sociedades em meio a meio com estatais chinesas, quase todos os fabricantes ocidentais, que até recentemente lideravam as vendas e ganhavam muito dinheiro no formidável mercado chinês.
A estratégia da China, primeiro, no fim dos anos 1990, atraiu os fabricantes ocidentais e japoneses para aprender com eles, rapidamente, como fazer veículos de última geração, enquanto em paralelo estimulou a criação de uma cadeia produtiva própria voltada à produção de carros elétricos e híbridos, dando às montadoras chinesas, tanto estatais como independentes, sensível vantagem tecnológica combinada com baixos custos que hoje começa a ganhar o mundo.
Fato é que mercados que não impõem nenhum tipo de barreira aos chineses estão sendo facilmente dominados. No início deste mês a Anfavea, que reúne os fabricantes instalados no Brasil – os mesmos que estão perdendo terreno para marcas chinesas no mundo todo –, apresentou um estudo mostrando que em sete países da América Latina [Argentina, México, Chile, Colômbia, Peru, Paraguai e Uruguai] os carros importados da China superaram os produzidos no Brasil e responderam por 21,2% das vendas nestes mercados em 2022, uma expansão notável contra os 4,6% de dez anos atrás.
Mesmo no mercado brasileiro a penetração é crescente desde que caiu, em 2015, a proteção do imposto de importação de 35%, reduzido a zero para carros elétricos e a 2% ou 4% para híbridos.
Após a isenção do imposto todos os importadores focaram em trazer ao País modelos eletrificados, mas este ano os chineses já ensaiam tomar a dianteira neste segmento: em agosto marcas de veículos importados como BYD e GWM foram mais vendidas por aqui do que Volvo, Mercedes-Benz e Land Rover.
Dizer que os veículos chineses vendem mais porque são mais baratos e recebem subsídios do governo chinês é uma meia verdade. Mais correto é reconhecer que a China enxergou o futuro à frente dos países ocidentais e se preparou com eficiência, planejou sua indústria para dominar completamente a disrupção trazida à indústria pelos carros elétricos, criando uma cadeia de produção com custos imbatíveis – incluindo os maiores fabricantes mundiais de baterias, liderados pela CATL, que hoje atendem a cerca de 80% da demanda mundial.
O mesmo estudo do UBS endossa que carros chineses são mais acessíveis porque são mais baratos de se produzir. Os analistas do banco calculam que um modelo elétrico da BYD tem custo médio de produção cerca de 25% menor do que qualquer similar europeu ou norte-americano. O cupê-sedã Seal, recentemente lançado também no Brasil, é 15% mais barato para ser produzido do que um Tesla Model 3 fabricando na própria China.
E por quê? O domínio da cadeia de produção com custos baixos faz toda diferença a favor dos chineses. Voltando ao exemplo do Seal, a BYD produz dentro de casa 75% de seus componentes – o porcentual equivale ao dobro dos concorrentes –, incluindo baterias desenvolvidas com tecnologia própria, e só 10% do conteúdo do carro é importado de fora da China.
A evolução da BYD é um dos mais vistosos exemplos do desempenho meteórico de toda a indústria automotiva chinesa. Fundada em 1995 – há menos de trinta anos, portanto – a empresa já tem 600 mil funcionários, incluindo 90 mil engenheiros. Trabalham na companhia cinco vezes mais pessoas do que na festejada Tesla – que aliás perdeu para a BYD o posto de maior fabricante de carros elétricos do mundo.
Com o domínio da cadeia de produção, legislação que obriga a eletrificação e mercado cativo de milhões de unidades por ano – dois a cada cinco carros vendidos na China são elétricos e esta proporção está aumentando – está cada vez mais difícil conter a escalada dos chineses para fora de seu próprio país, enquanto os fabricantes ocidentais correm atrás da demanda para converter a produção de suas fábricas chinesas para produzir modelos a bateria.
Para se ter ideia, há dez anos, as joint ventures – associação de empresas chinesas, como FAW e SAIC, com fabricantes ocidentais como Volkswagen e General Motors – dominavam cerca de 80% das vendas de veículos na China, enquanto uma dúzia de marcas 100% chinesas como Chery, Changan ou BYD mal dividiam 20% do mercado. Pois hoje essa proporção virou, por causa especialmente dos modelos a bateria.
Os modelos Volkswagen produzidos na China lideram as vendas no país nas últimas duas décadas, com participação que variou do pico de 17% a 10% nos últimos meses, mas no início deste ano foram ultrapassados exatamente pela... BYD, que no segundo trimestre vendeu 600 mil híbridos e elétricos e abocanhou 11,2% das vendas.
Com este desempenho a BYD também fica muito à frente considerando somente o mercado de carros elétricos da China. Em segundo lugar a Tesla vendeu, no país, 157 mil unidades no segundo trimestre, ou quase quatro vezes menos do que a montadora chinesa.
O declínio dos fabricantes ocidentais e de seus carros a combustão – e lançamentos de elétricos em ritmo mais lento do que os chineses – acontece ao mesmo tempo em que a China produz automóveis eletrificados com nível de sofisticação cada vez maior e custos acessíveis, com total domínio da cadeia de fornecimento. A guerra pela liderança mundial está recomeçando com novos atores que, há trinta anos, nem sabiam muito bem como fazer um carro.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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