Moskvitch-402: um soviético que quase virou brasileiro
Sedã viria em plena Guerra Fria... e a "invasão" começaria pelos quartéis!
Antes, muito antes de os primeiros Lada desembarcarem aqui, um automóvel soviético tentou conquistar os brasileiros - em especial, os militares, em plena época da Guerra Fria! E mais: produzido no frio de Moscou, o pequeno Moskvitch-402 por pouco não ganhou uma versão fabricada no calor do Rio de Janeiro. A promessa é de que seria o mais barato dos carros nacionais.
Essa história começa em 1957, quando Eleutério Tito Lemos do Canto, coronel reformado do Exército, professor de Física do Colégio Militar, engenheiro e advogado, montou a empresa Torgbrás para importar produtos e tecnologias do Leste da Europa - principalmente da União Soviética. "Torg" vinha de "Torgovlya" (comércio em russo) e "bras" de Brasil.
A representação, que também tinha como sócios os russos Valerian Odinstoff e Klimenty Odinstoff (filho e pai), abrangia não só bens de consumo (rádios, máquinas fotográficas, aparelhos de TV etc), como também sondas e refinarias de petróleo, metalúrgicas completas, sputniks e outros bichos.
Da Rússia com amor
Rompidas desde 1947, no governo Dutra, as relações Brasil-URSS estavam em vias de ser reatadas. Longe de ser "coisa de comunista", essa aproximação era apoiada pelo Ministério da Fazenda de Juscelino Kubitschek e por grandes produtores de café e cacau.
O coronel Tito do Canto teve então a ideia de importar nada menos que 10 mil (!) Moskvitch modelo 402, e oferecê-los a preços bem baixos, em 30 módicas prestações e com muitas facilidades, aos sócios do Clube Militar e a outros clientes em potencial, como os jornalistas filiados à Associação Brasileira de Imprensa (ABI). O carrinho soviético chegaria aqui por 80% do preço de um Volkswagen.
Seria um esquema de vendas diretas de automóveis a militares semelhante ao que já fora feito com os Morris Oxford e Mercedes-Benz 170D, no início da década de 50.
Produzido pela estatal MZMA, em Moscou, o Moskvitch-402 (1956-1958) era um pequeno sedã de quatro portas com motor cabeça chata de quatro cilindros, 1.220cm³ e 35cv, mais tarde trocado por um OHV. Com 4,05m de comprimento, o modelo estava na categoria dos Ford Taunus 12M e Fiat 1100 da época. Tinha câmbio de três marchas com alavanca na coluna e - que moderno! - rádio, acendedor de cigarros, desembaçador e parte elétrica de 12 volts... Na URSS havia até uma versão 4x4.
'Automóvel a preço de lambreta'
Em pleno degelo pós-stalinista, interessava ao líder soviético Nikita Khrushchev aumentar o comércio internacional de seu país. Como o Lada ainda não existia, coube ao Moskvitch ser o ponta de lança das exportações de automóveis da URSS: o carrinho fez sucesso em países escandinavos, foi montado na Bélgica e também vendido na França, na Inglaterra, no Canadá e até nos Estados Unidos! Versões tropicalizadas do Moskvitch já eram oferecidas nos mercados da Argentina do Uruguai quando se falou em trazê-lo ao Brasil.
"Automóvel a preço de lambreta", exagerou a imprensa da época. Logo começaram a ser publicadas acusações de que os soviéticos estariam fazendo dumping e prejudicariam a nascente indústria automobilística nacional.
As autoridades brasileiras, então, barraram o negócio, alegando que não havia cobertura cambial ou divisas para a importação dos carros. Vivíamos, afinal, os anos JK e marcas estrangeiras começavam a produzir veículos aqui.
A fábrica que não veio
O coronel Tito do Canto não se deu por vencido: como não poderia trazer os Moskvitch-402 prontos, propôs a importação de uma fábrica inteira. As instalações completas seriam compradas na URSS (na base de financiamento de longo prazo, com juros baratíssimos) e remontadas no Rio de Janeiro.
Segundo o coronel, os soviéticos pretendiam ajudar na industrialização do Brasil e não na "exploração colonial" do país. Alguns jornais, especialmente os de linha editorial mais anticomunista, iniciaram então uma agressiva campanha contra a Torgbrás.
Carros russos não fazem ninguém comunista
O coronel Tito do Canto, por sua vez, afirmava que a Torgbrás era uma empresa de capital totalmente nacional e não se interessava por questões políticas, mas apenas pelos aspectos comerciais do negócio e no desenvolvimento do Brasil: "Carros russos não fazem ninguém comunista", dizia.
"Vamos fabricar automóveis para o Brasil, automóveis 100% brasileiros, com matéria-prima nacional e em condições de preço mais acessíveis que os carros americanos. Isso eu garanto, porque nenhuma dessas fábricas que estão se instalando por aí e se dizem brasileiras realmente o são. Os seus lucros vão para o exterior", afirmou o coronel numa entrevista ao Jornal do Brasil, em dezembro de 1957.
Fato é que, a essa altura, dezembro de 1957, o Grupo Executivo da Indústria Automobilística (GEIA) deixou de aceitar propostas para a instalação de novas fábricas de veículos no Brasil. Com pouco capital para investir, o criador da Torgbrás não avançou nos planos de produzir o Moskvitch no Rio.
Laços reatados com a URSS
Em 1958, conforme havia previsto o coronel Tito do Canto, o Brasil reatou oficialmente os laços comerciais com a URSS. Três anos depois, com João Goulart recém-empossado na Presidência da República, foi a vez de restabelecer as relações diplomáticas entre os dois países.
Em maio de 1962, uma exposição da indústria soviética no Pavilhão de São Cristóvão, Rio de Janeiro, apresentou o Moskvitch-407 - sucessor do 402 e já com motor OHV de 45 cv no lugar do velho "cabeça chata". Além do sedã normal, vieram suas versões sedã com tração 4x4 (410N) e station wagon (423).
Ônibus, caminhões de lixo, ambulâncias, motos e motonetas produzidos na URSS também foram mostrados, mas o que mais chamou a atenção do público carioca foram o sedã médio-grande GAZ M21 Volga, que daria um rival para o Aero-Willys, e a limusine GAZ-13 Chaika, com sete lugares e um pujante V8 de 5,5 litros e 193 cv.
Galeria: Moskvitch 402: o carro soviético que quase virou brasileiro
Mesmo o regime militar pós-1964 manteve uma crescente interação com a grande potência comunista. A equipe econômica do marechal e presidente Castello Branco considerava importante ampliar as trocas com o bloco soviético e, em 1967, o Brasil já era o principal parceiro comercial da URSS na América Latina (afora Cuba). No mesmo ano, foi realizada em São Paulo uma exposição de produtos soviéticos, que incluiu automóveis e veículos 4x4.
Em 1968, o lendário jornalista Expedito Marazzi, chegou a testar para a revista Quatro Rodas um Moskvitch-408, usado por diplomatas soviéticos no Rio. O texto elogiava as características modernas do sedã compacto, que já estava uma geração à frente do modelo 402. Somente em 1990, porém, é que os carros russos chegaram ao nosso mercado, com a Lada.
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