Carros elétricos no Brasil, uma história mais que centenária

Muitos antes de a Gurgel lançar o Itaipu, automóveis, caminhões e ônibus "a bateria" já rodavam por aqui

015 - Gurgel E-400 (1975) 015 - Gurgel E-400 (1975)

Vamos lá, sabichões: qual foi o primeiro carro elétrico no Brasil? Os pequeninos protótipos Gurgel Itaipu E-150, de 1974? Ou seriam os veículos comerciais Gurgel Itaipu E-400 e E-500, produzidos em pequena série (87 unidades) entre 1981 e 1983? Que nada... A história dos automóveis elétricos no Brasil começa muitas décadas antes disso.

As primeiras chispas

Os primeiros carros elétricos apareceram por aqui no comecinho do século XX. Sempre foram minoria: em 1912 havia apenas 11 automóveis elétricos em uso no Rio de Janeiro, quando a frota total da cidade (então capital federal) já era de 2.412 veículos.

Caminhão elétrico Commercial Truck Company (1907)

Os caminhões de serviço da Light, por exemplo, vinham da fábrica norte-americana Commercial Truck Company e tinham um motor elétrico por roda - arranjo bem moderno para a época. Até hoje, um desses caminhões está preservado na sede da empresa, no centro do Rio.

Entre julho de 1918 e dezembro de 1927, circularam pela Avenida Rio Branco, a principal artéria do Rio, sete ônibus elétricos tocados unicamente pela eletricidade acumulada em baterias - sem "chifres", nem rede aérea de energia.

Ônibus elétrico Brill em operação no Rio (1918)
Ônibus elétrico Brill em operação no Rio (1919)

Com chassi e trem de força fabricados pela J. G. Brill Company (mesma empresa que fornecia os bondes para a cidade), esses veículos tinham construção toda em metal e eram operados pela Light. Levavam até 30 passageiros pelos dois quilômetros entre a Praça Mauá ao Passeio Público - um itinerário onde não havia trilhos de bondes. Silenciosos, sem cheiros ou fumaça, os novos ônibus causaram ótima impressão, sendo descritos nos jornais da época como "amplos, elegantes, confortáveis e bem iluminados".

Garage Ita, no bairro do Flamengo (1919)

Qualquer criança consegue guiá-lo!

Havia por aqui até revendas especializadas em automóveis elétricos, como a Ita Garage, no bairro do Flamengo. A casa era representante da Detroit Electric (a mais famosa marca desse tipo de carro), e também da Milburn, uma empresa surgida no tempo das carruagens, que se converteu à produção de carros elétricos nos anos 1910 e foi extinta ao ser comprada pela General Motors, em 1923.

Detroit Electric (1922)

Numa estatística de automóveis emplacados no Rio em 1921, estão listadas nada menos do que seis marcas de carros e caminhões elétricos: Commercial Truck, Walker, Milburn, Atlantic, Detroit e Rolland.

"O automóvel elétrico é exclusivamente um carro para a cidade (...). O fator economia é considerável, porque quando o carro para, a energia também suspende automaticamente. Somente três movimentos são necessários para que o carro saia da imobilidade e alcance grande velocidade, enquanto um automóvel a gasolina exige 15 movimentos diferentes. Portanto, este carro pode ser guiado com mais facilidade e segurança por uma senhora ou uma criança", relatou a revista Careta, numa reportagem sobre os automóveis Milburn, em 21 de fevereiro de 1920.

Milburn Electric Model 27 (1918)
Milburn Electric - a recarga (1918)
Milburn Electric - chassi e motor (1918)
Milburn Electric - as baterias (1918)

A Ita Garage oferecia até o serviço de buscar o carro elétrico à noite, recarregar suas baterias durante a madrugada e devolvê-lo na casa do cliente pela manhã. As baterias tinham quatro anos de garantia. Segundo os anúncios, os Milburn da época tinham 120 km de autonomia, rodando à média de 40 km/h. Mas, apesar de silenciosos, simples de manter e fáceis de operar, os elétricos nunca conseguiram fazer frente aos modelos a gasolina - especialmente depois da popularização do motor de arranque.

Anúncios apresentando os serviços da Ita Garage, em 1920
Garage Ita, no bairro do Flamengo (1919)

Daí que os elétricos sumiram de cena no decorrer da década de 20 e só foram lembrados, brevemente, nos anos da Segunda Guerra Mundial, por causa do racionamento de combustível. Conta-se que, em Petrópolis, um Packard foi convertido em automóvel elétrico - mas não conseguimos maiores detalhes. Certamente seu criador não gostava do gasogênio.

Lorencini e o carro elétrico feito em Jundiaí (1965)

Made in Jundiaí

Um salto no tempo e chegamos a 1965. Ninguém falava em emissões de carbono ou efeito estufa. A gasolina era vendida a troco de bala e não se imaginava que viriam duas crises do petróleo na década seguinte. Mesmo assim, um inventor resolveu fazer, numa oficina de Jundiaí, a 65 km da capital paulista, o primeiro carro elétrico brasileiro que temos notícia.

Mauricio Lorencini era um mecânico autodidata. Nasceu em 1924 e, durante a Segunda Guerra, criou um motor movido a água e a ar-comprimido (prontamente adaptado em um caminhão). Também projetou baterias à prova de descarga inesperada: eram divididas em três ou mais elementos, montados em caixas separadas e que podiam ser substituídos, de forma independente, em caso de avaria. Produzida em série nos anos 50, a invenção tinha um slogan ótimo —“Livre-se do mau elemento” — mas não chegou a revolucionar a indústria de acumuladores. Em 1960, Lorencini já havia patenteado 78 projetos.

Daí que, o inventor resolveu montar “o carro do futuro”, movido a eletricidade. Elaborou o projeto e, para transformá-lo em realidade, contou com o talento do mecânico Tertuliano Padovani. O automóvel tinha chassi e rodas de Ford Modelo A 1929, mas com um motor elétrico ligado ao câmbio (Lorencini falava que, no futuro, dispensaria a transmissão convencional instalando um motor elétrico em cada roda traseira). Para reduzir o peso, o protótipo não trazia qualquer tipo de carroceria.

Dom Agnelo Rossi, cardeal de SP, no carro elétrico de Lorencini (1965)

Equipado com baterias convencionais, de chumbo-ácido, o carro podia alcançar os 70km/h, subir ladeiras de 45° e tinha até um motorzinho estacionário a gasolina para recargas de emergência (e você achando que isso é novidade do BMW i3...). Para ser leve, dispensava carroceria.

"O carro elétrico será fabricado em série e seu aperfeiçoamento atingirá tal perfeição que serão desnecessários a embreagem, caixa de mudanças e diferencial", prometeu o inventor ao jornal carioca Diário de Notícias.

O protótipo foi levado de Jundiaí ao Rio para participar da “Corrida de Calhambeques” promovida pelo Automóvel Club do Brasil. Era um passeio de carros antigos, da Cinelândia à Tijuca, festejando o término da construção do Viaduto dos Marinheiros. O então governador Carlos Lacerda, aliás, inaugurou a obra a bordo do automóvel elétrico dirigido por Lorencini.

O criador desejava produzir o veículo em série e afirmava ter recusado a oferta de Cr$ 20 milhões pela patente. Mas o fim da história foi triste: Lorencini nunca conseguiu ganhar dinheiro com suas invenções e o carro do futuro terminou seus dias desmontado e enferrujado em Jundiaí.

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