Na semana passada, falamos aqui do Charron, Girardot & Voigt (C.G.V.), o primeiro carro presidencial brasileiro, adquirido em 1907, no mandato de Affonso Pena. Agora contaremos um pouco da história de seus sucessores nas garagens da Presidência da República, tanto nos tempos do Rio capital, quanto em Brasília.
Conforme revelamos no último texto, o C.G.V. teve vida curta no Palácio do Catete. Depois de um acidente, em dezembro de 1908, o mais provável é que nosso primeiro automóvel presidencial tenha sido cortado e transformado no pequeno caminhão que fez a mudança de milhares de livros para o atual edifício da Biblioteca Nacional, inaugurado em 1910.
"(...) Para o transporte de todos os objetos só foi utilizado o caminhão automóvel (Charron, Girardot & Voigt) que foi adquirido para tal fim e fez 1.132 viagens redondas", contabilizou o relatório da biblioteca naquele ano.
No mandato do marechal Hermes da Fonseca na Presidência (1910-1914), o C.G.V. já havia dado lugar a um modelo mais moderno, mas que não conseguimos identificar nas poucas fotos em que aparece. Em 1914, quando o mineiro Wenceslau Braz assumiu o cargo de chefe do Executivo, um Renault Type CB (como aquele que foi a pique junto com o Titanic) já ocupava o posto de automóvel presidencial, mas os desfiles solenes ainda eram feitos em carruagens abertas.
Segundo o pesquisador Antônio Sérgio Ribeiro, que esmiúça o assunto há 30 anos, o primeiro presidente a ter uma posse motorizada foi Arthur Bernardes, em 1922. O carro usado no desfile era um Packard 1919 landaulet. Quando o governo de Bernardes chegou ao fim, em novembro de 1926, o carro oficial já era um Lincoln novinho em folha. Começava aí a tradição de usar automóveis Lincoln, que seria mantida por Washington Luís e Getúlio Vargas.
Washington Luís (“governar é abrir estradas”) usou o Lincoln 1926 tanto no dia de sua posse quanto na inauguração da Rio-Petrópolis (1928). No desfile de Sete de Setembro de 1929, ele já estava a bordo de outro Lincoln, recém-saído da fábrica.
Um Lincoln, em especial, ficou famoso: era a limusine KB conversível de sete lugares e motor V12, modelo 1934, usada nos desfiles do estádio de São Januário, nos tempos do Estado Novo.
Esse mesmo Lincoln de Getúlio foi usado na posse do Marechal Dutra, em 1946. Seu fim foi melancólico: em 1947, o carro foi transferido ao Ministério da Guerra, onde ficou encostado até ser vendido, em 1952. Em meados dos anos 60, o carro pertencia a um mecânico do subúrbio carioca da Penha. Precisando de dinheiro, ele torrou o outrora suntuoso automóvel presidencial.
Segundo o pesquisador Antônio Sérgio Ribeiro, o carro passou pelas mãos de um colecionador paulista, que o revendeu a um americano, no começo dos anos 70. Reza a lenda que, ao ser desembarcado nos EUA, o Lincoln despencou do guindaste - e nunca mais se soube dele. Um Lincoln KB parecido, também usado nos tempos do Estado Novo mas modelo 1935, hoje está sob um telheiro, no Museu do Ingá, em Niterói, à espera de uma restauração que nunca chega.
Nos anos Dutra, a placa com o brasão da República e o número 83 foi retirada do Lincoln e transferida para uma limusine Cadillac, com carroceria Derham conversível, ano 1947.
Conta-se que este Cadillac, com câmbio automático, deu chabu ao tentar subir a rampa do Palácio Tiradentes, na cerimônia de posse do segundo governo de Getúlio, em 1951.
Deve ter começado aí a ideia de substituir o Cadillac na frota do Catete. Em agosto de 1951, a Presidência da República fez uma concorrência para encomendar dois carros para serem usados em solenidades. Pedia-se um conversível e uma limusine fechada. Ambos deveriam ser pretos, com estribos e para-choques reforçados para levar os homens da guarda pessoal de Getúlio Vargas.
Na concorrência, entraram a GM (com Cadillac), a Ford (com Lincoln), e a importadora Bramocar, representando a Rolls-Royce. A marca inglesa levou a melhor e, em fevereiro de 1952, o
major Ene Garcez dos Reis, chefe de Pessoal da Presidência, autorizou a importação. Os dois Silver Wraith com carrocerias Mulliner saíram a preço de fábrica, e a Bramocar ganhou apenas uma comissão da própria Rolls-Royce.
Na nota fiscal do conversível (chassi LALW 29) estão descritos os equipamentos do carro: descanso de braço com espaço para guardar escova de roupas e espelho, velocímetro na traseira, suportes de bandeira e chassi reforçado. O automóvel foi vendido por Cr$ 413.348. Era o preço de um apartamento de dois quartos em Botafogo, bairro de classe média da Zona Sul carioca. Como referência, um Chevrolet de quatro portas (na época, o carro mais comum nas ruas) saía por cerca de Cr$ 180 mil. Já a limusine fechada (chassi LALW 27) foi vendida por Cr$ 322.660.
A limusine fechada foi paga por um grupo de empresários liderado por Euvaldo Lodi (que era deputado e presidente da Confederação Nacional da Indústria) e registrada no nome de Getúlio Vargas. Depois do suicídio, em agosto de 1954, a família do presidente vendeu o carro fechado ao empresário Victor Costa, dono de emissoras de rádio. Hoje, esse Silver Wraith fechado pertence a um colecionador de São Paulo e, volta e meia, é levado a encontros como os de Lindóia e Araxá.
Já o conversível mostrou ser um belo investimento: está perto de completar 70 anos de bons serviços - mais da metade do período republicano no Brasil! - e não deve aposentar-se tão cedo. Apartidário, foi usado nas posses de Café Filho, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Batista Figueiredo, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro. Também levou chefes de estado estrangeiros como o presidente francês Charles de Gaulle (em 1964) e a rainha da Inglaterra, Elizabeth II (em 1968). Aliás, muita gente pensa, até hoje, que o Silver Wraith conversível foi um presente da rainha. Pura lenda...
No Palácio do Catete, havia ainda algumas limusines Lincoln Cosmopolitan 1950, que serviram ao governo JK e viram seu ocaso com a mudança da capital para Brasília.
Nos anos 60, a indústria nacional passou a ter seus representantes no poder: as soturnas limusines Willys Itamaraty Executivo foram usadas nas posses de Costa e Silva, Médici e Geisel. No dia a dia, os generais-presidentes andavam de Ford Galaxie. Depois vieram os Ford Landau, muito usados por Figueiredo e Sarney.
Collor — que chamava os carros nacionais de carroças — aposentou os Landau e, no dia a dia, usava um Lincoln Town Car emprestado pela Ford. Mas logo veio o impeachment e, ao assumir a Presidência da República, Itamar Franco (um fã de Fusca...) continuou a usar os Opala dos tempos em que era vice. O Town Car foi a leilão mas ninguém quis arrematá-lo.
Chegamos ao governo FHC e seus Chevrolet Omega. No início, o presidente usava a versão nacional. Depois, vieram os Omega australianos, produzidos pela divisão Holden. O carro do presidente tinha três modificações em relação aos de série: era blindado, tinha um radiocomunicador e, claro, trazia suportes para as bandeiras nos para-lamas.
A essa altura, os carros presidenciais já não eram comprados, mas sim cedidos por fabricantes em regime de comodato - afinal, estavam sempre diante das câmeras, gerando propaganda quase grátis. Além dos Omega, vieram diferentes gerações de Ford Fusion (mexicanos), nos anos Lula, e Ford Edge (canadenses), nos anos Dilma. Nas paradas de Sete de Setembro, Michel Temer foi o único que não quis desfilar ao sol no Rolls-Royce aberto, preferindo um discreto Omega australiano blindado.
Em agosto de 2020, o Gabinete de Segurança Institucional, responsável pela segurança do presidente Jair Bolsonaro, abriu uma concorrência para renovar a frota do Planalto. Assim, foram comprados 14 Ford Fusion na versão Titanium 2.0 turbo - todos pretos e com blindagem de nível III-A, que resiste a disparos de pistolas e submetralhadoras. Quase na mesma época, o Fusion deixou de ser produzido no México e nos EUA. Em janeiro passado, a Ford anunciou o fim de suas operações industriais no Brasil. Agora é esperar pelo próximo modelo a tomar posse em Brasília.
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