Neste 22 de junho, Dia Mundial do Fusca, vamos contar uma história do mar que tem muito a ver com nossas ruas e estradas.
Uma nota do jornal "A Gazeta" (SP), de 27 de setembro de 1950, registrou a chegada do primeiro lote de Volkswagen oficialmente exportado para o Brasil. Os carros haviam desembarcado no porto de Santos no dia 11 daquele mês, marcando o início da Era Fusca - e da Era Kombi - no país.
Felizmente, o jornal teve o cuidado de citar o nome do navio que trouxe os automóveis, ainda que com a grafia incorreta: "Defland". Pesquisa daqui, procura dali, encontramos informações sobre a embarcação.
O navio se chamava Delfland (com L a mais do que havia sido escrito no jornal paulista) - mais precisamente, SS Delfland, da companhia de navegação Lloyd Real Holandês - ou, no idioma original, Koninklijke Hollandsche Lloyd (KHL). A empresa existiu entre 1899 e 1981 e tinha como foco o transporte de cargas e passageiros entre a Europa e a América do Sul.
O Delfland fora construído no estaleiro John Readhead & Sons Ltd., às margens do Rio Tyne, em South Shields, Inglaterra. Seu nome original era Empire Ruskin, e foi lançado ao mar em julho de 1942, por encomenda do Ministry of War Transport. Era um entre centenas de navios mercantes britânicos feitos durante a Segunda Guerra, os chamados Empire ships (Navios do Império).
Um ano depois, o Empire Ruskin foi alocado ao governo holandês no exílio, que estava abrigado em Londres por conta da ocupação alemã. Rebatizado como Van der Capelle, o cargueiro passou a ser operado pela companhia Holland-Amerika Lijn, no esforço de guerra dos Aliados.
Escapou dos torpedos alemães e chegou inteiro ao fim da guerra. Em 1946, passou à frota do Lloyd Real Holandês, ganhando o nome SS Delfland em referência ao município de Midden-Delfland, nos Países Baixos.
E é aqui que entramos nessa história. O Lloyd Real Holandês tinha linhas bem regulares para o Brasil. As rotas tinham início nos portos de Hamburgo e Bremen (na Alemanha) ou Amsterdã e Rotterdã (nos Países Baixos) e se estendiam até Montevidéu (no Uruguai) e Buenos Aires (na Argentina).
Assim, entre a segunda metade dos anos 40 e meados da década de 50, pelo menos quatro cargueiros da companhia passavam pelos portos do Rio de Janeiro e de Santos a cada mês - dois deles a caminho do Rio da Prata e dois já retornando para a Europa. Entre outros produtos, traziam toneladas de batatas holandesas e máquinas. E, da América do Sul, levavam café, algodão, couro, minério de ferro e manganês.
Em 1949, a Companhia Distribuidora Geral Brasmotor, responsável pela importação e montagem no Brasil dos produtos do grupo Chrysler Corporation (com as marcas Chrysler, Plymouth, DeSoto, Dodge e caminhões Fargo), foi escolhida para ser a representante da Volkswagen no país. Não foi fácil: nada menos que 168 empresas nacionais haviam se candidatado a essa função.
Sob a administração vigorosa de Heinrich Nordhoff, a VW precisava exportar e queria ganhar o mundo. Nos Estados Unidos, a companhia alemã fizera um acordo de distribuição com a própria Chrysler e, agora, encontrava uma solução semelhante no Brasil.
No início de 1950, Walter Krause, jovem diretor de serviços técnicos da Brasmotor, foi à Alemanha fazer um estágio na fábrica de Wolfsburg a fim de familiarizar-se com os aspectos mecânicos dos Volkswagen. A chegada dos besouros era iminente.
O primeiro embarque, previsto inicialmente para julho de 1950, só ocorreu em agosto. E, por uma simples questão de escala, coube ao SS Delfland trazer o lote inaugural de Volkswagen ao Brasil.
Com 133 metros de comprimento e 17 metros de boca (largura), o cargueiro de bandeira holandesa tinha porte bruto DWT de 10.300 toneladas - ou seja: era o tanto que conseguia levar de cargas, mais tripulantes, água, mantimentos e combustível. Com motor a vapor de tripla expansão (três cilindros) e 2.510 hp, alimentado com óleo cru, o SS Delfland tinha velocidade de cruzeiro de 11 nós - ou 20,37 km/h.
Navio é como escada rolante: devagar e sempre. Em seu ritmo lento, o cargueiro levou 26 dias na travessia do Atlântico entre os portos de Hamburgo e Rio de Janeiro - para comparação, hoje um navio roll-on/roll-off (de transportar veículos) faz o mesmo percurso na metade do tempo.
No Rio, o Delfland atracou em frente ao Armazém 2 do Cais da Gamboa. Mas os Volkswagen não foram baixados na então capital federal: em 10 de setembro, depois de descarregar mercadorias da Europa e receber outras para Buenos Aires, o navio zarpou novamente. Daí foram mais 18 horas até o Porto de Santos, onde os carros finalmente foram desembarcados, juntamente com 263.637 quilos de batatas holandesas para semente.
Em Santos, os dez Fuscas e duas Kombis ficaram armazenados à espera do desembaraço aduaneiro. Somente em 17 de novembro de 1950 é que o primeiro Volkswagen seria vendido no Brasil, pela Sabrico (a pioneira concessionária da marca), em São Paulo, ao sr. Rodolfo Maerz. No dia seguinte, todos os veículos do lote já tinham novos donos - enquanto isso, outros Fuscas e Kombis cruzavam o Atlântico a caminho do Brasil.
Nas remessas seguintes, os Volkswagen chegariam mais e mais desmontados. Primeiro, com aros de madeira no lugar dos pneus, o primeiro componente nacionalizado. Em janeiro de 1951, apenas quatro meses depois de o lote inicial chegar a Santos, os Fuscas e Kombis já vinham completamente desarmados dentro de caixotes de madeira, em kits CKD (completely knocked-down). Um anúncio da Brasmotor prometia que os carros logo passariam a ser feitos "pelo trabalhador brasileiro".
Até meados dos anos 50, o SS Delfland ainda faria muitas viagens ao Brasil pelo Lloyd Real Holandês. Na de janeiro de 1951, por exemplo, trouxe nada menos do que um carrilhão belga com 47 sinos - conjunto de 6.887 quilos que até hoje faz música no Santuário de Vila Formosa, em São Paulo.
Em 1959, contudo, o cargueiro foi vendido à companhia turca de navegação Cerrahogullari e rebatizado de M Esref. A essa altura, os motores a diesel estavam entrando para valer no transporte marítimo e os navios a vapor tornaram-se anacrônicos. Em 1968, 26 anos após ter sido lançado ao mar, o cargueiro que trouxe os primeiros Fuscas ao Brasil encontrou seu triste destino: virou sucata em Istambul.
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