Tooele, Utah - Cercado por duas cordilheiras lindamente cobertas de neve e uma planície árida do deserto, uma pista de corrida tecnicamente exigente é polvilhada por meia dúzia de brilhantes exemplares de um dos supercarros mais aguardados dos últimos anos. Só que isso não é meramente um supercarro. É o Ford GT. Como a terceira geração de uma linhagem que pinga sentimentalismo e transborda história, muito poucos carros inspiram este tipo de respeito apenas por seu nome, como acontece com o GT. É uma máquina sedutora e, por um momento, me sinto como um adolescente encantado por formas femininas pela primeira vez. Mas há trabalho a fazer neste semiparaíso.
Com 250 carros programados para ser produzidos anualmente pelos próximos quatro anos, apenas uns poucos privilegiados - selecionados pela Ford - terão o privilégio de pagar mais de US$ 450 mil por um deles. E apenas um: a Ford não quer nenhum cliente com mais de uma unidade de sua obra-prima. Margens de lucro dificilmente são algo a considerar neste caso. Para ser bem sucedido, as linhas que o GT deve mover são a sistólica e a diastólica em vez da financeira. Isso significa que ele tem que permanecer fiel ao original sem ser uma reinterpretação banal. E que deve ser devastadoramente rápido, sob pena de nenhuma de suas outras qualidades fazer nenhuma diferença.
Por mais atraente que seja o Ford GT, a razão de ser do carro está em linha com a de seu avô GT40: vencer as 24 Horas de Le Mans. Ponto final. Para esse fim, o carro de corrida (que cumpriu o propósito de sua vida em Le Mans em 2016) e o de rua são incrivelmente semelhantes. Ao contrário de praticamente todos os outros veículos de produção de hoje, este foi concebido literalmente desde o primeiro dia para ser, em primeiro lugar, um carro de corrida.
Os críticos de sempre desmerecerão o GT por seu V6 em vez do tradicional motor V8, mas não é disso que este carro trata. Cada milímetro de sua bela carroçaria é altamente funcional, de acordo com o melhor da tradição dos bólidos de corrida. Os painéis são tão firmemente envolvidos em torno dos componentes mecânicos que, sem o EcoBoost V6 biturbo 3.5, a forma do GT seria radicalmente diferente. Não haveria aquelas entradas de ar laterais que abrigam os intercoolers nem os reforços aéreos que abrigam seus dutos. Como são usados também para a rigidez estrutural e para direcionar o fluxo do ar para a asa traseira, eles são muito mais do que apenas um elemento distintivo de estilo do carro. Um V8 teria arruinado este Ford GT, por mais que seu som fosse glorioso.
Entrar no GT é mais fácil do que na maioria dos carros de corrida e mais difícil do que em um supercarro típico. Ele traz uma gaiola de aço, aprovada oficialmente pela FIA para corridas, e você nunca a perceberia só de olhar ou mesmo de se sentar no carro. Isso simplesmente não é possível na maioria dos veículos. No caminho para fora do GT, o batente de porta extralargo fornece uma área de descanso adequada a quem não tem as habilidades evasivas em dia. Por razões de natureza legal e de segurança, os assentos são fixos para evitar que pintores de rodapé fiquem muito à frente, o que os faria se sentar muito perto do extremo dessa gaiola. Em vez disso, há uma correia de nylon localizada no nível do joelho: puxe-a e todo o painel de pedais - incluindo o apoio para o pé - deslizará em direção ao motorista.
Pressionar o brilhante botão de partida vermelho desencadeia uma sinfonia que serve como lembrete de que este carro foi construído não apenas para prestar homenagem à sua herança, mas para continuar a missão de seus antepassados. Uma vez que ele grita para a vida - e é definitivamente um grito - os 656 cv e 76,1 kgfm do EcoBoost V6 tornam o carro de produção mais forte do que qualquer um dos integrantes do quarteto da Chip Ganassi Racing. Tanto nos EUA quanto na Europa, graças a regulamentos de corrida.
Giro um seletor no volante de N (normal), passando por S (esporte), para T, de Track, o modo de corrida. O carro pede confirmação de que eu realmente quero isso - ãh, sim! - antes que um atuador hidráulico comprima as molas helicoidais montadas internamente até que elas não se movam mais. O chassi desce 50 milímetros em menos de um segundo. O resultado é que a suspensão é agora "rebaixada" pela resistência de uma única barra de torção. Trata-se de um truque muito legal, possível apenas pelo ajuste quase infinito dos amortecedores de última geração DSSV (isto é, Dynamic Suspension Spool Valve, ou suspensão dinâmica por distribuidor). Ela é tão notável por sua simplicidade elegante quanto por sua funcionalidade revolucionária.
O Ford GT não é apenas intimamente ligado aos carros de corrida GTE e GTLM. Ele está para eles como Clark Kent para o Superhomem. Colocado em uma pista de corrida, ele é incrivelmente rápido. Precisei de uma volta e meia antes de poder pisar fundo no acelerador nas curtas retas. Aperte o pedal do freio e a asa traseira ativa do GT se abre para criar um freio aerodinâmico vertical. Pise suavemente no acelerador novamente e ela assume uma configuração forte de sustentação negativa que vê até um Gurney flap surgir por um minuto em sua extremidade final.
Ao fazer isso, duas aletas na frente do carro se fecham, forçando o ar a passar pelas icônicas entradas de ar que abrigam os radiadores. Ou por debaixo do carro, onde o assoalho é moldado para criar um vácuo sob o eixo dianteiro antes de dirigir o ar para fora por meio de um grande respiradouro atrás das rodas dianteiras.
Saindo de um grampo, mantenho o pé direito fincado firmemente embaixo. Impulsionado pela raiva, o gemido do EcoBoost V6 é decididamente mais Boost do que Eco. Fico em êxtase por apenas um segundo antes de ter de engatar a 4ª marcha, o que acontece instantaneamente. O motor repete sua escalada gloriosa pela escala do conta-giros, mas, quando engato a 5ª, isso nem me passa pela cabeça. O foco está em encontrar o ponto de frenagem que se aproxima rapidamente. Enquanto piso no pedal esquerdo, a asa traseira faz sua mágica e a transmissão reduz as marchas tão rapidamente, acionando o acelerador a cada vez, que ele realmente se parece mais com um monoposto do que com um esportivo normal.
A direção hidráulica "raiz" é uma comunicadora perfeitamente direta e capaz. No meio das curvas, o carro é sublime em seu equilíbrio, facilmente ajustável com o acelerador ou com o freio. É um carro tão fácil de conduzir que ele pode fazer um piloto médio se sentir como o próprio Ayrton Senna, mas também é perfeito para um ninja do volante procurar os limites (muito, muito) altos de aderência. O GT não quebra as leis da física; ele simplesmente as usa como seu playground pessoal.
Conduzido com restrição em estradas públicas, o carro é quase um enigma. As entradas de ar laterais para os intercoolers, diante das rodas traseiras, se insinuam orgulhosamente nos espelhos retrovisores, dando a impressão de que o carro é muito mais largo do que realmente é. Com a asa acionada, grande parte da visão pela vigia é obstruída, mas a visibilidade para trás não se torna um problema, já que você pode enxergar pelos grandes canais aerodinâmicos entre os intercoolers e o compacto V6.
Entrando em uma estradinha sinuosa de subida de serra, estou imediatamente ciente de que há cascalho espalhado pelo pavimento. O ruído de seixos ricocheteando sob a carroceria não é absorvido por nenhum tipo de tratamento acústico e reverbera pelo habitáculo. Tenho certeza de que é exatamente o tipo de ruído de que alguns vão reclamar, mas é música em um puro-sangue. Isolamento contra tais sons iria adicionar peso aos 1.385 kg do carro e eliminar a vantagem de sua estrutura de fibra de carbono. Ainda assim, em um dia de 9ºC, a cabine é um forno. Culpa não das quatro saídas de ar montadas na própria porta do carro, mas do calor que o motor central emite e que se infiltra completamente no interior do GT. É um lembrete sutil de que, para tudo o que este GT faz tão bem, ser um gran turismo não está em sua descrição de funções.
Descendo a mesma estradinha, coloquei a transmissão em modo automático, só para ver como é. A novidade desaparece depois de apenas duas curvas e volto a controlar as trocas sozinho. Mais tarde, um dos engenheiros da Ford não fica surpreso e me explica que eles não gastaram muito esforço calibrando o computador para trocas automáticas. Muito poucos dos compradores deverão usar o GT neste modo.
Uma dúzia de botões, ao lado de duas chaves, dois seletores, duas borboletas e um conjunto de luzes de LED, adornam o volante. Estou mais interessado no seletor à esquerda, que controla os modos de direção. No modo N (normal), a direção afiada é um pouco embotada para dirigir pela cidade, mas, em uma estrada pública, S (esporte) é o modo ideal.
Passe do limite de 120 km/h e a asa traseira sobe, transformando-se numa letra escarlate metafórica que anuncia que você acabou de ultrapassar o limite de velocidade (uma breve mudança para o modo normal é suficiente para retraí-la). O sistema antilag avançado do EcoBoost mantém os turbos "cheios" e prontos, resultando não apenas em uma resposta fantástica do acelerador, mas também em um som glorioso e viciante que soa a cada vez que você levanta o pé do acelerador. Pelos próximos quilômetros, meu pé direito se transforma em uma criança obcecada, brincando distraidamente com seu novo fazedor de barulho. Ronco do escapamento. Pssss. Ronco do escapamento. Pssss.
Os homens da lei de Utah estão bem cientes de que um bando de jornalistas está dirigindo o monstro de 350 km/h da Ford e, não mais do que de repente, vejo um policial de butuca depois de uma curva. Não ouso ultrapassar a velocidade máxima permitida nem em 1 km/h sequer, principalmente nas estradinhas secundárias, em um carro que se destaca tanto quanto este. Dirigir em rodovias não me ensina absolutamente nada sobre o pacote de desempenho estratosférico deste carro, mas sim tudo que preciso saber sobre o que o GT significa para uma pessoa comum. Literalmente cada motorista e passageiro de cada carro que eu vejo tem seus olhos colados, à caça por detalhes, seguindo o novo Ford enquanto eu passo por eles. Meu tempo de estrada evapora muito depressa.
Quando volto à pista, fico pensando no que o GT realmente é. Seu desenho é um casamento entre forma e função que grita sobre o passado e o futuro do alto desempenho. Em seu habitat de pista, o carro é um nirvana da direção, com suas sensações orgânicas como resultado direto de proezas complexas de engenharia. Nas ruas, a falta de compromissos, sem nenhum tipo de culpa, lhe confere uma natureza visceral crua que nunca deixa você esquecer o propósito deste monstro. Neste sentido, ele já é um vencedor em competições internacionais. No fim das contas, o Ford GT é exatamente tudo o que precisa ser. Sem um grama a mais.
Fotos: divulgação
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