Quem avisa, amigo é: se você curte automobilismo e carro antigo, corra até o cinema e não deixe de ver "Ferrari". É sua chance de se sentir imerso na fatídica Mille Miglia de 1957, última edição da prova italiana que percorria 1.597 km de ruas e estradas, em um bate e volta entre Brescia e Roma. Deixar para assistir esse filme na TV, via streaming, não terá nem metade da graça...
A história contada pelo veterano diretor Michael Mann, com roteiro baseado em um trecho da biografia "Ferrari, o homem por trás das máquinas", do jornalista automotivo Bock Yates, mostra um período dos mais conturbados na vida do Commendatore. Dez anos após fundar sua própria fábrica de carros esporte, Enzo Ferrari (vivido no filme por Adam Driver) já tinha conseguido fazer três campeões de Fórmula 1, mas sua empresa estava às portas da falência e precisava desesperadamente de injeção de capital.
Enzo Ferrari (Adam Driver) e seus pilotos
Não bastasse, sua arqui-inimiga Maserati estava ali ao lado, em Modena, sempre à espreita. Fundada em 1914, a marca do tridente não se deixaria vencer facilmente: contratara o projetista Gioacchino Colombo (ex-Ferrari), tinha o vitorioso monoposto 250F e o maior piloto de todos os tempos - Juan Manuel Fangio - além de Stirling Moss. Para provas de estrada, podia dar-se ao luxo de escolher entre as Maserati 350S e 450S.
Os problemas do Commendatore não acabavam por aí. Seu filho Alfredo "Dino" Ferrari havia morrido em 1956, aos 24 anos de idade, depois de definhar com uma distrofia muscular progressiva. Enzo tinha outro filho, o pré-adolescente Piero - mas este era mantido em relativo segredo, fruto de uma relação extraconjugal.
Quando Dino morreu, o longo casamento de Enzo Ferrari com Laura Garello (interpretada por Penélope Cruz) desandou de vez. A essa altura, o Commendatore já dedicava mais amor e atenção "à outra", Lina Lardi (Shailene Woodley), mãe de Piero.
Além das réplicas, carros originais fizeram figuração
Contudo era Laura, a esposa oficial, quem ainda cuidava das contas na firma. Cofundadora da empresa, a Sra. Ferrari detinha metade das ações. O próprio Enzo a reconhecia como um "ponto de referência".
Era preciso voltar a ganhar corridas para vender carros de rua e, com isso, continuar bancando o departamento esportivo, razão de ser da Ferrari. Mas a Jaguar, com seu motor XK de seis cilindros, havia sido a campeã das 24 Horas de Le Mans nada menos que cinco vezes desde 1951, contra apenas uma vitória da casa de Maranello. Na pressão por bons resultados, a Ferrari se tornara uma máquina de moer pilotos. Literalmente.
Como se vê, as coisas não estavam fáceis para Enzo Ferrari em 1957, e isso rendeu um belo filme. Mas o que mais impressiona a quem gosta de automóveis é a qualidade de produção dos carros de cena. Quando as luzes se acendem, após 2h10m de exibição, e o espectador sai do cinema pensando: será que arriscaram carros originais, que custam de 30 a 50 milhões de dólares, nas cenas de velocidade?
As cenas de ação foram gravadas na estrada, em alta velocidade
Mann quis contrapor as imagens sombrias e lentas da vida pessoal de Enzo Ferrari (às vésperas de completar 60 anos de idade) ao ritmo frenético das corridas. Mais que isso, o diretor se esforçou para pôr o espectador no banco do carro. A ideia não era usar recursos como a tela verde do Chroma Key ou câmeras aceleradas, e sim filmar os carros correndo de verdade, acima dos 160 km/h.
Uns poucos carros de corrida mostrados em cena são reais da época. É o caso da Maserati 250F com que o piloto Jean Behra bate um recorde na pista, logo no começo do filme. Emprestado por Nick Mason, automaníaco e baterista do Pink Floyd, o valioso 250F foi guiado em cena por Derek Hill, que já competiu em categorias como a Fórmula 3000 (Derek, além do mais, é filho de Phil Hill, piloto americano que foi campeão da F-1 em 1961 pela Ferrari).
A ideia do diretor Michael Mann foi pôr o espectador dentro dos carros
Nessa sequência, o que se vê é praticamente a reprodução em cores de um documentário de 1957, onde Fangio fazia uma lenha com a 250F (e duas câmeras a bordo) no Aerautodromo di Modena. Nota-se o esmero da produção de Mann até em detalhes como o asfalto cheio de remendos e cercado de mato dos antigos circuitos.
As réplicas são visualmente perfeitas
A parte mais impressionante foi produzir réplicas exatas dos carros de competição dos anos 50. Foi preciso construir modelos confiáveis e seguros, capazes de andar a 220 ou 230 km/h. Além disso, era indispensável desenvolver suportes de câmeras capazes de aguentar muita força G e vibrações. A tarefa coube ao coordenador de dublês Robert Nagle e ao supervisor de veículos de cena Neil Layton.
Ao todo, foram feitas nove réplicas: sete dos carros que participam das cenas da Mille Miglia (três Ferrari 335 S, duas Ferrari 315 S e duas Maserati 450S) e duas de monopostos de F-1 (Ferrari 801).
As carrocerias foram feitas de alumínio ou fibra de vidro sobre chassis modernos do Caterham Seven 620
Como base para os carros da Mille Miglia foram usados chassis de Caterham Seven 620 - que é uma versão atual do clássico Lotus Seven equipada com motor Ford Duratec de quatro cilindros e 2 litros, com compressor volumétrico.
A potência final é de 310 cv, excepcional para um carro que pesa apenas 572 quilos. Com câmbio de seis marchas e eixo traseiro De Dion, o Caterham 620 original é capaz de acelerar de 0 a 100 km/h na casa dos 3,5 segundos, alcançando máxima de 240km/h.
As Ferrari e Maserati originais dos anos 50 foram escaneadas de maneira que suas formas e todos os acabamentos pudessem ser reproduzidos com perfeição. Ainda na Inglaterra, alguns dos chassis de Caterham tiveram seus entre-eixos alterados para se adequarem às medidas das máquinas italianas.
A réplica da Maserati 450S de Moss e Jenkinson
Daí, os chassis foram enviados para a Itália para se transformarem em carros de corrida dos anos 50. As réplicas das Maserati 450S, por exemplo, tiveram suas carrocerias construídas à moda antiga, com martelinho e alumínio, pela tradicional Carrozzeria Campana, de Modena.
Alguns foram vestidos com fibra de vidro, barateando e acelerando o processo. Nas cenas de acidentes e esbarrões, porém, foram usados apenas os carros com carroceria de metal, para que os amassados ficassem mais realistas.
Segundo Nagle, esses Caterham à italiana ficaram rápidos e divertidíssimos de guiar - pudera, já que receberam pneus diagonais com desenhos “de época”.
O ator e piloto Patrick Dempsey interpreta Piero Taruffi
Para pilotar tanto os carros originais quanto as réplicas, foram contratados 15 dublês de primeira linha, entre eles o sueco Samuel Hubinette, campeão da Formula Drift, e Ben Collins, vulgo "The Stig". Sim... Ele mesmo!
Um dos artistas em cena dispensou dublês e estava como pinto no lixo: Patrick Dempsey, que além de ator é piloto e dono de equipe de endurance. Perfeito no papel do corredor Piero Taruffi, Dempsey em pessoa guiou a réplica da linda Ferrari 315 S Spider, carroceria Scaglietti, em todas as cenas passadas na Mille Miglia.
O brasileiro Gabriel Leone interpreta o piloto Alfonso de Portago
No elenco também está o brasileiro Gabriel Leone em um papel de destaque na trama: o piloto espanhol Alfonso de Portago - ou Marquês de Portago - um bon vivant milionário viciado em adrenalina e velocidade. Leone, aliás, está se especializando em papéis automobilísticos. É ele quem interpreta Ayrton Senna em uma minissérie da Netflix, a ser lançada em breve.
Mesmo os atores que eram substituídos por dublês nas cenas de ação fizeram treinamento intensivo com carros da Caterham, praticando pontos de frenagem e aprendendo a guiar rápido, mas mantendo-se sempre no quadro da câmera. Para captar as imagens, foram usados também drones de alta velocidade e um helicóptero.
As cenas de montanha foram filmadas no Gran Sasso d'Italia, a 140km de Roma
Entre automóveis e caminhões originais ou réplicas, foram usados nada menos que 393 carros de cena - incluindo aí o Peugeot 403 de de uso particular de Enzo Ferrari. Sim: entre o fim dos anos 50 e 1974, Il Commendatore andava de Peugeot no dia a dia (teve ainda 404, 504 sedã e 504 coupé, todos desenhados na Pininfarina), além conduzir esporadicamente um Mini Cooper que lhe fora presenteado pelo projetista Alec Issigonis em pessoa.
Todo esse esforço para dar realidade às cenas teria sido em vão se as réplicas de Ferrari e Maserati soassem como um Ford Duratec de quatro cilindros. Daí que um time de sonoplastas e engenheiros de som se encarregou de buscar gravações de carros de corrida antigos, com motores 6-em-linha, V8 e V12 aspirados, para compor a maravilhosa “trilha sonora”. O resultado é emocionante - tanto que já bateu uma vontade danada de voltar ao cinema para ver o filme novamente.
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