Conversa, conversa e mais conversa. É com base em amplas discussões que a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) pretende formular seu novo plano de desenvolvimento de longo prazo, o Rota 2030. Ele substituirá o Inovar-Auto com foco em mais pilares do que apenas o de eficiência energética. Aliás, se o programa conseguir avançar sobre todos os 9 em que quer se escorar, pode soltar foguete. Com isso, ele tornaria não só a indústria nacional mais competitiva, mas também poderia colocar o Brasil nos eixos, ainda que de modo colateral.
Os 9 pilares são os seguintes:
Estes pilares pretendem dar à indústria brasileira competitividade no mercado internacional. Sem ela, e com novos acordos comerciais surgindo a cada momento, como o que o Mercosul pretende ter com a União Europeia, o risco é que não faça mais sentido ter fábricas no Brasil. Algo que já aconteceu na Austrália, por exemplo. Com isso, nosso mercado seria abastecido por produtos importados mesmo das empresas hoje com unidades fabris por aqui. Resumindo a novela, quem não for capaz de produzir de modo competitivo em um mercado globalizado está condenado a desaparecer. Pelo menos como produtor.
A Anfavea se concentra em 3 deles como os fundamentais: eficiência energética, pesquisa e desenvolvimento e segurança. Eles são aqueles nos quais a entidade pode interferir mais diretamente. E que dependem da ação de suas próprias associadas para acontecer. Todos os demais precisam do governo para ir para a frente.
No caso da recuperação da base de fornecedores, ela depende de financiamento (provavelmente público, pelo que a Anfavea diz). Inspeção veicular, relações trabalhistas e tributação dependem de mudanças na legislação. A questão logística só avança com novas leis e investimento em infraestrutura. Não é por acaso que as discussões mais importantes do programa são com o Estado brasileiro.
"Nós nunca fomos o país mais competitivo do mundo, mas pioramos. E a abertura de nosso mercado é iminente, com todos os acordos comerciais que estão em discussão. Entre as reformas que defendemos, a mais importante é a trabalhista. Que nem precisa ser tão extensa. Para nós, o fundamental é que o acordado valha sobre o legislado. Tudo em prol de segurança jurídica, de previsibilidade", disse Antonio Megale, presidente da Anfavea.
O executivo lembra de casos em que sindicatos propuseram acordos, aprovados pelas fabricantes, mas o Ministério Público recorreu contra eles na Justiça e os acordos foram anulados, com punições às empresas que os implementaram. "E foram punidas por algo que não fazia diferença para elas, mas que eram do interesse dos empregados."
No que se refere à necessária reforma tributária, Megale também defende que haja, no mínimo, uma simplificação. "Temos mais gente envolvida com o recolhimento de impostos do que com a engenharia dos produtos, em muitos casos. Isso não é sustentável." Outro grande problema para a indústria brasileira é a logística. "Temos uma desafasagem extraordinária neste campo. Somos 70% piores do que os países mais competitivos em logística", diz o presidente da Anfavea.
Para que o Rota 2030 esteja definido a tempo de entrar em vigor em 2018, a Anfavea, o governo e várias outras entidades, como a Abeifa e o Sindipeças, se reúnem semanalmente em Brasília para discutir o projeto. Isso porque existe um período de 90 dias que deve ser respeitado entre a publicação da lei e sua entrada em vigor. "Tudo tem de estar definido até o final de agosto", diz Megale.
Mas como é conversar com um governo tão frágil, com o primeiro presidente formalmente denunciado pelo MPF da história? Para uma entidade que pede, mais do que tudo, previsibilidade, a situação é um bocado melindrosa, mas Megale lembra que a alternativa a isso é simplesmente não fazer nada. E ficar parado não é uma opção para a indústria automotiva brasileira.
Apesar de prometido pelo Inovar-Auto, o foco em segurança não existiu no programa anterior. Caberá ao Rota 2030 endereçar a questão. Segundo o presidente da Anfavea, as metas não devem ser relacionadas à adoção de equipamentos. Como os airbags e ABS que as resoluções 311 e 312, respectivamente, obrigaram os automóveis vendidos no Brasil a trazer de 2014 em diante. "É preciso estabelecer metas de performance, não de equipamentos", diz o executivo.
Esse ponto é de importância fundamental na questão de competitividade. Quando o Chevrolet Onix foi reprovado nos testes da Latin NCAP, a GM alegou que seu campeão de vendas atendia à legislação brasileira. Verdade: as únicas normas vigentes em relação a crash-test são as estabelecidas pela resolução 221, que exigem que os carros cumpram as normas ABNT NBR 15300, que tratam de impactos frontais e traseiros. Não de laterais.
A norma ABNT que trata de impactos laterais, a NBR 16204, entra em vigor apenas em 16 de agosto de 2018. Para que ela comece a ser exigida, porém, terá de constar de alguma resolução do Contran.
A considerar que a 221 foi publicada em 2007 e colocou prazo de 5 anos para começar a fazer efeito, espere por carros brasileiros com normas para impactos laterais apenas em 2023. Senão mais adiante. Vale ressaltar que essa norma se refere a regras de segurança estabelecidas pelas ONU no final dos anos 1990. Um atraso de um quarto de século em um dos países que mais matam no trânsito em todo o mundo.
Se a lei brasileira não exige desempenho biomecânico como deveria, os países que podem comprar nossos carros fazem isso. Já tivemos até um caso famoso relacionado a essa questão: em maio de 2010, o Chile deixou de importar o Peugeot 207 brasileiro. Preferiu vender em suas terras o 206+ fabricado na França. Como registrou na época o site Autoo, a alegação era que o modelo francês tinha construção melhor.
Quem anda ajudando a alertar para essa defasagem em segurança nos modelos brasileiros é o Latin NCAP. Que tem uma relação conflituosa com a Anfavea. Reforçando o discurso de algumas fabricantes, a Anfavea diz que a entidade nunca a avisou sobre mudanças em seus protocolos, o que deixaria as montadoras de calças curtas para ir bem nos testes. Alejandro Furas, secretário-geral do programa, argumenta que as alterações são comunicadas com pelo menos 2 anos de antecedência. Às vezes mais. Quem está falando a verdade? Boa pergunta.
Como acontece em toda discussão do tipo, o efeito colateral do Rota 2030 até pode ser um país mais ágil, mas não nos enganemos: farinha pouca, meu pirão primeiro. E a Anfavea defende os interesses de suas associadas, com estímulos tributários para o atingimento de metas. Algo que é criticado duramente por Letícia Costa, sócia-diretora da Prada Assessoria e especialista no mercado automotivo brasileiro. Em um webinar promovido pela revista Automotive Business, ela disse que essa é uma questão meramente legal. "Na Europa e em qualquer outro país, as metas de eficiência energética são impostas (por lei) e as montadoras cumprem sem receber de volta qualquer incentivo ou desconto”, disse ela no vídeo abaixo.
Para Letícia, o que o Rota 2030 realmente deveria prever é a eletrificação da frota nacional. “A China já adotou o carro elétrico e outros grandes mercados, como a Alemanha, também desenharam legislação para priorizar estes modelos nos próximos anos. Assim, em 2030, teremos um grande mercado global de modelos com a tecnologia e o Brasil não vai participar dele”, afirma a executiva. Nós mesmos já mostramos isso aqui: a França, por exemplo, pretende banir as vendas de modelos a combustão até 2040.
Letícia também aponta para outros caminhos, como o estímulo ao aumento da eletrônica embarcada e ao desenvolvimento de softwares. E bate firme no Inovar-Auto, que teria sido, para ela, um programa de proteção de mercado disfarçado de política industrial. Tanto que foi punido pela OMC (Organização Mundial do Comércio). "O país precisa ter visão mais clara de como e onde pode, efetivamente, competir em uma indústria que passará por mudanças profundas nos próximos anos”, disse em seu webinar. Algo com que Megale concorda inteiramente.
"Teremos fortes transformações em produto, hábito, propulsão, propriedade, conectividade e autonomia", diz o presidente da Anfavea. Como se vê, não é apenas um governo em frangalhos que coloca todo o plano em terreno movediço. É, mais do que isso, a conjuntura atual da indústria automotiva. Se o programa não apontar para a direção correta das mudanças, e do modo certo, estaremos novamente à deriva. Ainda mais do que hoje.
Fotos: arquivo Motor1.com
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