A indústria automotiva japonesa levou 50 anos para atingir os mesmos patamares da ocidental. A coreana, uns 30 anos. Dizia-se que a chinesa levaria menos de 20 para acompanhar o resto da turma, mas a verdade é que a China é hoje um grande mosaico das fases de desenvolvimento da indústria. Com empresas que já começaram de onde as ocidentais estão, fabricantes no meio do caminho e marcas que preferem trilhar todos passos desde os primórdios. Por estratégia. É um ambiente comparável ao que um paleontólogo teria se pudesse observar todas as eras geológicas em um mesmo ambiente, com organismos unicelulares, dinossauros e seres humanos disputando os mesmos recursos. E o design, curiosamente, é o elemento que mais bem permite avaliar estes estágios, como mostrou uma recente visita que fizemos à China.
A viagem tinha por objetivo a cobertura do Salão de Xangai. Mas incluiu uma visita à sede da Lifan, em Chongqing, e uma avaliação de vários de seus produtos.
Não foi preciso mais do que uma batida de olhos sobre a frota reunida no pátio da sede da empresa. É evidente que a marca não tem uma linha de estilo para seus modelos. O 330 lembra o Mini. A minivan M7 é a cara da Ford S-Max. O X80 tem traços de Q5 e de Hyundai Santa Fe. Quem parece ter um pouco mais de personalidade, e é bonito, é o sedã 830.
Aproveitamos uma reunião com os principais executivos mundiais da marca, logo em seguida, para esclarecer o caso. Para nossa surpresa, eles não têm a menor intenção de dar à Lifan uma identidade de marca. Tanto que ela abandonará o emblema dos três "Ls" para trazer seu nome por escrito nos veículo, a única forma inequívoca de mostrar quem os fabrica. A intenção aparente é dar à empresa agilidade para copiar o que estiver fazendo sucesso no mercado. A um preço mais baixo.
A estratégia vai além do estilo. Só agora a Lifan começa a pensar no uso de plataformas comuns, por exemplo. Cada modelo tem uma estrutura própria, pensada apenas para ele. Curiosamente, esse seria um fator de aumento de custo em qualquer outra parte do mundo, tornando o desenvolvimento proibitivo. A primeira plataforma comum que a empresa adotará será a AS161, que dará origem a 4 novos produtos, entre eles a terceira geração do X60.
Para isso, a empresa contratou o engenheiro Shen Haojie, com experiência em empresas como Nissan e PSA, para desenvolver não só a nova plataforma, mas também um novo modelo de pesquisa e desenvolvimento para a Lifan. Um minimamente parecido com o que empresas mais antigas, como a Nissan e a PSA, adotam há décadas. Preocupações com um estilo único e particular não estão nem no final da lista. Elas simplesmente não existem.
A Lifan tem apenas 25 anos como empresa, dos quais apenas 12 dedicados à produção de automóveis. Mas a idade não é desculpa para a adoção desta estratégia, como mostra a experiência da Qoros. Fundada em 2007, ela apresentou seu primeiro produto em 2013, o Qoros 3. E o modelo já nasceu com uma forte identidade de marca, criada pelo designer Gert Hildebrand, chefe de estilo da marca desde sua criação. Ele é pai do Opel Kadett E, o que foi fabricado no Brasil, da terceira geração do VW Golf e dos Mini Countryman, Clubman e Coupé de primeira geração.
E não é apenas em estilo que a Qoros se destaca. Logo que foi lançado, o Qoros 3 se tornou o carro mais seguro avaliado pelo Euro NCAP, uma certificação importantíssima para quem vê modelos chineses como inerentemente inseguros ou mal feitos. Mas a empresa resolveu se dedicar primeiro a seu mercado nativo, o maior do mundo, antes de tentar a conquista da Europa. Sábia decisão. "Em 2016, a Qoros cresceu 45% em relação a 2015 em vendas no varejo e 70% no geral, muito acima da média dos demais fabricantes", diz Carolyn Yang, porta-voz da Qoros.
Um dos motivos para os bons resultados é o fato de Hildebrand responder diretamente ao CEO da Qoros, uma estrutura decisória semelhante à que a Kia adotou para dar liberdade a Peter Schreyer. E que tornou a marca coreana facilmente reconhecível em todos os mercados em que atua.
Talvez seja por isso que uma das sócias da Qoros, a Chery, tenha decidido seguir um caminho parecido. Mas a marca alega motivos mais relevantes para mudar de estratégia, originalmente a mesma em que a Lifan ainda insiste. Segundo a assessoria de imprensa da marca na China, o fato de o mercado chinês ter se tornado o mais importante do mundo invalidou o modelo "vendas, velocidade e escala".
Isso porque todos os fabricantes mundiais estão centrando esforços em crescer por lá. E fazem isso reduzindo preços e entrando em uma seara que era muito própria das empresas locais: o de modelos mais acessíveis. A primeira vantagem é ter uma linha própria de estilo, que as poupa de ser motivo de piada entre os chineses, como acontece com as marcas locais que pirateiam o estilo de outras empresas. O exemplo mais famoso disso é a Landwind e seu Evoque genérico, o X7. Com a invasão de seu território por VW, GM, Ford e companhia, só restou às chinesas jogar o mesmo jogo.
O estalo veio em 2010, quando a Chery conseguiu vendas de 682 mil unidades, um recorde histórico. Era preciso ter uma forte identidade de marca para ir mais longe. E a empresa adotou uma estratégia de três fases para chegar lá.
A fase 1, encerrada em 2016, previa tornar a Chery uma das maiores fabricantes da China, com mudanças no sistema de construção de carros e aumento na qualidade dos produtos. Com a fase 2, prevista para terminar em 2020, o plano é transformar a Chery na maior fabricante chinesa de automóveis. Para chegar lá, fará investimento em design, qualidade e desenvolvimento internacional de seus modelos. De 2020 em diante, a meta é tornar a Chery um "global player", não só presente, mas também forte em diversos mercados do mundo.
É para isso que a empresa contratou o que chama de "Dream Team" de design. Sergio Loureiro, Hakan Saraçoğlu e James Hope são o triunvirato que a empresa trouxe a suas fileiras para mudar o estilo de seus automóveis.
Loureiro (da Silva), um filho de portugueses nascido em Luxemburgo, saiu da Opel para se juntar à Chery, mas já havia passado por Mercedes-Benz, BMW, PSA e pela Busscar, no Brasil, onde começou carreira desenhando ônibus. Saraçoğlu era designer-chefe da Porsche, sendo um dos pais de Cayman, Boxster e do 918 Spyder. Hope trabalhou na Ford, DaimlerChrysler e Opel, tendo no currículo modelos como o Ford GT90 Concept e o Mustang 2004.
O primeiro fruto do trabalho deste timaço foi o Arrizo5, mostrado no Salão do Automóvel e resultado do que a marca chama de Strategy 2.0 (a fase de 2017 a 2020). Segundo a empresa, a contratação tripla teve o objetivo de alimentar o espírito de trabalho em equipe (trazendo talentos reconhecidos para o time), de estimular tolerância cultural e, mais do que tudo isso, de complementaridade. "Cada um destes designers tem pontos fortes, características e estilos. Ao deliberadamente dividirmos os deveres de cada um, e apresentar ideias e pensamentos criativos, desenvolvemos modelos Chery alinhados com os tempos atuais e ao gosto de clientes mais jovens", disse a empresa ao Motor1.
A Chery ainda está no processo de mudança, mas já se orgulha de ter um índice 3MISIPTV (3 months of vehicle failure rate, ou taxa de falhas em veículos com 3 meses) de apenas 25. A média das demais fabricantes chinesas estaria em 50 e há fabricantes influentes nos EUA e na Europa com 30 de pontuação. A melhora, portanto, não foi apenas do ponto de vista do design, mas também de processos produtivos e de qualidade. Quando as fases de sua estratégia chegarem ao fim, ela pretende estar onde hoje se encontra a Qoros e boa parte dos fabricantes ocidentais. E algumas décadas à frente da Lifan.
Se a indústria chinesa levará 20, 30 ou 50 anos para chegar ao estágio das fabricantes ocidentais, coreanas e japonesas é um mistério que só o tempo responderá adequadamente. O que podemos dizer, sem sombra de dúvida, é que algumas fabricantes da China caminham a passos largos rumo a 2020. As demais podem perder o passo e chegar, talvez, aos anos 1950.
Fotos: divulgação
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