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Carros duas portas, peruas, câmbio manual – Mais do que tudo, salvem o direito às opções

Campanhas para salvar câmbios manuais, peruas ou carros de duas portas só serão efetivas em um contexto em que carros realmente sejam meios de transporte e não opções de investimento

O direito à escolha

Não faz muito tempo que, quando eu trabalhava em revistas, sugeri lançarmos uma campanha para salvar as peruas. Eu tinha uma Ford Escort SW 1998 azul e não havia opções legais para trocá-la por outra. As peruas, também chamadas de carrinhas, station wagons e mesmo de camionetes, dependendo de onde você estiver, estavam sumindo do mercado. A Toyota Fielder já tinha virado história, a Renault Mégane Grand Tour dava seus últimos suspiros e as outras peruas eram todas compactas, pequenas demais para mim e para minha família. A campanha não deu em nada, como você deve perceber diante de nosso mercado atual. Fiquei pensando nisso e me lembrei de todas as opções que desapareceram de nosso mercado. E das que ameaçam sumir.

O direito à escolha

Antigamente, brasileiro não comprava carros de quatro portas, só de duas. Até táxis eram de duas portas, muitos deles sem o banco dianteiro do passageiro, para facilitar o acesso aos bancos de trás. Da chegada dos importados para cá, o que não se encontra mais são carros de duas portas. E esse é apenas um exemplo de como as coisas por aqui mudam do preto para o branco subitamente, com efeito de manada. Às vezes literalmente, como no caso da cor preta, preterida pela branca de uns anos para cá. Quem tinha carro branco, antigamente, não conseguia vendê-lo ou acabava vendendo mal. Hoje, tem fabricante cobrando adicional de preço em branco sólido.

O direito à escolha

Você certamente se lembrará de mais uma série de modas e "tendências" quando o assunto é compra de carro. Como quando surgiram as minivans e elas eram apontadas como o melhor filão do mercado. Quase todas as fabricantes trouxeram ou criaram minivans até o surgimento dos SUVs. E as minivans desapareceram do mesmo modo como surgiram, restando uma ou outra por aqui. Muita gente não sente a menor saudade delas, mas não é disso que este texto trata e sim do direito a opções. Direito esse que o comportamento de manada sempre nos nega.

E nega por uma série de fatores. O primeiro deles é que carro é muito caro no Brasil. Há quem diga que é ignorância falar algo do tipo e cita que automóveis europeus teriam preços equivalentes aos dos brasileiros. É verdade, mas o contexto invalida o argumento.

Europeus ganham em euros, uma média de 2.000 por mês. E um hatch médio, por lá, custa cerca de 20.000 euros, o equivalente, no Brasil, a R$ 74 mil. Que tem um salário médio de R$ 1.853, segundo o último dado do IBGE. Tente comprar no Brasil um hatch médio novo por R$ 20 mil... E com o mesmo nível de equipamento de um vendido na Europa: seis airbags, controle de tração e de estabilidade, central multimídia e por aí afora. Pois é. 

O segundo fator é que o Brasil é um dos poucos países em que carros bem antigos, que em qualquer lugar do mundo seriam com sorte vendidos como sucata, ainda retêm muito do que se chama de valor residual. Se o carro usado é caro, ele faz concorrência com modelos novos e permite que seus preços continuem altos. Quem vai comprar um seminovo se o novo custa quase o mesmo? Nos EUA, um modelo campeão de valorização com três anos de uso terá perdido pelo menos 40% de seu valor. No Brasil, não é difícil encontrar carros que perderam menos de 20% de seu preço durante o mesmo período.

Perder mais dinheiro ou gastar menos?

Nossos carros deveriam desvalorizar mais? Seria o caminho natural se eles não fossem tão caros. Sendo caros, a frequência de troca é mais lenta. O preço alto faz com que quem vende tenha pena de entregar por pouco dinheiro. Prefere ficar com o carro até gastá-lo completamente. Por isso a idade de nossa frota é alta. E qualquer iniciativa para sua renovação fracassa.

O direito à escolha

Diante deste quadro, quando alguém compra um modelo novo, quer ter certeza de que perderá o mínimo de dinheiro possível. E escolhe o que será mais fácil de revender, não o que realmente gostaria de dirigir. Quantas pessoas não abrem mão de um sedã médio manual porque é o automático que vende nessa faixa de preço? Quantas não cedem ao apelo dos SUVs porque ficam com medo de comprar uma perua e "casar com ela", como se costuma dizer com revendas difíceis?

Com isso, os segmentos que resistem são aqueles que têm vendas que justifiquem o investimento em novos produtos. Que fabricante de carro no Brasil hoje investiria para desenvolver uma perua em vez de um SUV? Ou uma minivan? Quantos terão coragem de oferecer um carro laranja, amarelo ovo, verde limão e por aí agora, se ninguém compra? Eles não conseguem fugir do prata e do preto. Percebeu a cilada em que nos metemos?

A arapuca

O Brasil é um mercado grande, mas mesmo assim temos muito menos opções de carroceria do que países com mercados menores do que o nosso. Se fôssemos grandes como os EUA ou a China, arrisco dizer que estaríamos na mesma arapuca, com pouca gente disposta a arriscar perder dinheiro na aquisição do carro novo. Se o consumidor não se dá o direito de renovar, pior ainda os fabricantes. São contínuas apostas no seguro, de ambos os lados. Afinal de contas, a aposta é muito alta.

Manadas existem por um senso de proteção. Em bandos, presas fáceis ficam menos sujeitas aos predadores. Está mais do que na hora de o consumidor brasileiro deixar de se sentir tão ameaçado que não consegue nem sequer comprar aquilo que realmente deseja. Isso depende de conseguirmos tornar os preços dos carros mais adequados a nossa realidade de mercado. E de salvar nosso direito a uma escolha verdadeira, não as que atualmente nos são impostas.

Fotos: divulgação

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