Numa bela manhã, você vem andando por uma calçada de Itu (SP) e vê, dentro de uma garagem, um jipinho que não consegue identificar… Será um Gurgel Xavante? Talvez um Jeg modificado?
Para saciar a curiosidade, você apela à tecnologia: aponta o smartphone para o carro e usa o aplicativo Google Lens para pesquisar o que é aquele jipinho misterioso. O oráculo eletrônico responde prontamente mostrando fotos de um certo “Porsche 597”.
Sua curiosidade, porém, só aumenta. O que é um Porsche 597? Como ele foi parar numa ruazinha do bairro de Vila Nova, em Itu? Estamos aqui para contar essa história, que começa na Alemanha, muitas décadas atrás…
O Porsche 597 Jagdwagen original
Com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, em 1945, o Conselho de Controle Aliado dissolveu a Wehrmacht (as forças armadas no regime nazista) e desmilitarizou a nação. Em 1949, o país foi dividido em dois: a Alemanha Ocidental (na zona de ocupação de Estados Unidos, Reino Unido e França) e a Alemanha Oriental (sob domínio soviético).
A tensão entre os antigos aliados logo cresceu, deixando claro que as duas Alemanhas rapidamente teriam que ganhar meios de se defender, coibindo ameaças de lado a lado. Em 1953, a Alemanha Ocidental, governada pelo chanceler Konrad Adenauer, abriu uma licitação para o fornecimento de veículos para a futura Bundeswehr — as novas forças armadas, que ainda estavam em fase de formação.
Havia a necessidade uma viatura leve, com capacidade para ¼ de tonelada, que substituísse as motos militares com sidecar e os jipes Kübelwagen da Segunda Guerra, já aposentados. Três empresas entraram nessa concorrência: a Auto Union, o grupo Borgward e a Porsche. Em janeiro de 1955, as três companhias apresentaram seus protótipos militares.
O todo-terreno da Auto Union se chamava DKW Munga, tinha motor dois tempos dianteiro, de três cilindros. Mais tarde (1958-1963), esse modelo seria fabricado no Brasil pela Vemag, ganhando o nome DKW Candango.
O grupo Borgward, por sua vez, mostrou o Goliath Jagdwagen Typ 31. Visualmente, era bem semelhante ao rival Munga, e seu motor também era dianteiro, dois tempos — porém com dois cilindros, apenas.
Mas o que nos interessa aqui é o terceiro concorrente: o jipinho Porsche 597 Jagdwagen. Antes de mais nada, uma explicação: “Jagd” é caça em alemão; “Wagen”, carro. “Carro de caça”, portanto. Geralmente esse termo é usado para denominar pequenos 4x4 abertos.
A Porsche já tinha experiência em projetar modelos todo-terreno como o jipe Typ 82 Kübelwagen e o pequeno anfíbio Typ 166 “Schwimmwagen” na Segunda Guerra. Daí que veio a ideia de entrar na concorrência com um modelo aprimorado.
O novo jipinho tinha motor traseiro de quatro cilindros boxer, refrigerado a ar — o mesmo do esportivo Porsche 356, porém modificado para ter menos potência máxima e mais torque em baixa. Nos primeiros protótipos, a cilindrada era 1,5 litro. Depois, 1,6 litro, com 50 cv, que permitia do 597 Jagdwagen atingir a máxima de 100 km/h. A parte elétrica era de 24 volts.
O modelo tinha tração 4x4 — um cardã trazia a força até as rodas dianteiras (no mesmo esquema do antigo Schwimmwagen). O câmbio, com quatro marchas “normais” sincronizadas, incluía ainda uma marcha super-reduzida. Havia também caixas de redução nas rodas traseiras, como nas antigas Kombi e no Kübelwagen. O diferencial tinha bloqueio automático ZF. Como rezava a cartilha da Porsche, a suspensão era independente nas quatro rodas, por barras de torção.
DKW, Goliath e Porsche - os três jipes que participaram da concorrência
Outra característica semelhante à do velho “Schwimm” era a construção monobloco, formando uma espécie de banheira, com entre-eixos curtinho, de apenas 2,06 metros (contra 2,40 m do Fusca e do Kübelwagen).
O projeto era obra do genial Erwin Komenda, engenheiro-chefe da Porsche, criador das carrocerias do Fusca e do 356. Bem altas, as laterais do jipe eram construídas como grandes tubos de seção quadrada bem vedados, servindo como flutuadores em trechos alagados. Os primeiros protótipos incluíam até hélice para transpor lagos e riachos, mas o equipamento foi suprimido nos exemplares que vieram depois.
Em janeiro de 1956, Juscelino Kubitschek, presidente eleito do Brasil, fez um giro pela Europa. Além de estreitar contatos com chefes de estado, buscava atrair novas fábricas ao país.
Na Alemanha, JK teve a chance de fazer uma trilha a bordo do Porsche 597, nas instalações da Mannesmann, em Duisburg-Huckingen. Na mesma viagem, o presidente eleito também conheceu o DKW Munga, na fábrica da Auto Union, em Düsseldorf.
O papo entre o político brasileiro e os executivos das fábricas alemãs foi promissor. Juscelino declarou que existiram “boas possibilidades” de se fabricar jipes, automóveis e caminhões no Brasil com a ajuda de capital europeu.
Apenas um mês depois, Albert Prinzing, diretor administrativo da Porsche, chegou ao Rio de Janeiro para uma audiência com JK, recém-empossado como presidente da República. O objetivo era discutir a produção do jipe 597 no Brasil.
Vale dizer que a marca alemã já tinha uma boa entrada por aqui graças a seus tratores, que eram importados pelo Instituto Brasileiro do Café e vendidos a preço de custo aos agricultores. Aliás, em fevereiro de 1958, foi fundada a Porsche-Diesel do Brasil, por iniciativa da Mannesmann, com o objetivo de produzir motores estacionários e tratores agrícolas no estado de São Paulo. O projeto, porém, jamais saiu do papel e, em 1963, a divisão Porsche-Diesel foi extinta na Alemanha.
O jipinho da Porsche tinha muitas qualidades, mas a comissão que cuidava da concorrência também achou defeitos no projeto. O uso de motor traseiro reduzia o espaço útil e a capacidade de carga. O tanque de combustível na dianteira também foi considerado inadequado ao uso militar, bem como o comportamento do modelo em alta velocidade.
No fim, o DKW Munga foi o vencedor da concorrência do ministério da defesa alemão. O Porsche 597 Jagdwagen, assim como o Goliath Typ 51, não foram encomendados em massa pela Bundeswehr, pois os custos de produção eram altos. Foram pedidos 5 mil DKW Munga, contra somente 50 exemplares do Porsche 597 e outros 50 do Goliath.
Ao todo, foram feitos aproximadamente 100 exemplares do Porsche 597. Além das 50 unidades para uso militar, entre 1955 e 1958, foram produzidos 49 jipes para o mercado civil. Outras fontes (incluindo o fabricante) falam em apenas 71 unidades, no total.
Depois de torrar muito dinheiro ao longo de 5 anos em uma concorrência perdida, a Porsche não se animou a manter a produção para o uso civil. Era melhor se concentrar nas competições e na exportação de esportivos para os Estados Unidos. O projeto 597 foi abortado tanto na Alemanha quanto no Brasil. Ainda em 1958, o rival Munga começou a ser fabricado por aqui como “jipe DKW-Vemag” — mais tarde rebatizado de Candango, em homenagem aos operários que construíram Brasília.
Hoje, os Porsche 597 remanescentes são raríssimos. Em 2022, um exemplar original foi leiloado em Pebble Beach por US$ 665 mil (o equivalente a R$ 3,8 milhões pelo câmbio atual).
Réplica do Porsche 597 Jagdwagen fabricada em Itu Por Alexandre Penatti
E ITU NESSA HISTÓRIA?
Alexandre Penatti começou a fazer kits para montagem de baja bugs em 2005. Já que trabalhava com fibra de vidro, criou a Fibrario, em Itu, e passou a fabricar também carrocerias de buggy. Um dia, por volta de 2008, viu fotos de um jipe Kübelwagen da Segunda Guerra Mundial e decidiu criar uma réplica. Apareceram clientes e Penatti foi aprimorando o serviço a cada Kübel que produzia, usando chapas dobradas (só os para-lamas eram de fibra).
Veio a pandemia, a empresa teve que demitir funcionários e sair do galpão onde funcionava. A partir daí, Penatti passou a construir as réplicas de Kübelwagen absolutamente sozinho, numa pequena garagem que herdou (era a oficina onde seu pai consertava aparelhos eletrônicos).
“Já fabriquei 71 Kübelwagen. Os dez primeiros eram cheios de variações. Hoje, cada um sai melhor que o anterior”, afirma o fabricante.
Réplica do Porsche 597 Jagdwagen fabricada em Itu Por Alexandre Penatti
Uma dessas réplicas de Kübel foi comprada por um colecionador de Volkswagen que pretende montar um museu particular de “aircooled” em Santa Catarina. Penatti então mostrou as fotos do raríssimo Porsche 597 ao cliente e propôs fazer um jipinho parecido. É o carro que conhecemos de perto em Itu.
Na internet, Penatti achou mais imagens, bem como as dimensões do 597 Jagdwagen, e começou o serviço. Como no carro original, o jipe de Itu tem estrutura monobloco e entre-eixos 34 cm mais curto que o do Fusca. Um subchassi tubular permitiu montar as suspensões do VW.
Com curvadora, dobradeira e calandra, os painéis de metal ganharam forma dentro da garagem-fábrica. Os relevos estruturais para aumentar a resistência da carroceria foram feitos um a um, na prensa. Também deu muito trabalho fazer o capô traseiro, com suas aberturas para refrigeração do motor.
Réplica do Porsche 597 Jagdwagen fabricada em Itu Por Alexandre Penatti
“Passei uma semana sem dormir, pensando em como fazer. Acabei criando uma ferramenta só pra isso”, conta Penatti.
O tanque foi instalado no lugar onde ficava uma das caixas de ferramentas do carro original.Até o volante e as armações da capota foram feitas por Penatti. Para arrematar, o carro foi pintado de verde azeitona fosco. Motor e câmbio são do Fuscão 1500 — por questões práticas e econômicas, a tração é apenas nas rodas traseiras.
O resultado é um jipinho compacto, leve de guiar, extremamente simples e que atrai olhares por onde passa. Apesar do entre-eixos encurtado, há lugar para quatro ocupantes (o assento traseiro vai sobre a caixa de marchas).
Ainda há pontos a terminar ou aprimorar. Falta, por exemplo, melhorar o escape — o carro está com silencioso original de Fusca, lá embaixo, enquanto o original tinha uma “marmita” alta, com saída na face superior do para-lama. Afinal, o 597 original seria um anfíbio!
“Levei 7 meses para fazer esse primeiro exemplar. Se encomendarem outro, sairá mais rápido, pois já terei os gabaritos”, calcula o construtor, que cobra R$ 85 mil para fazer o jipinho.
Já os Kübelwagen “made in Itu” ficam prontos em 5 ou 6 meses de trabalho e saem por R$ 80 mil. E Penatti já pensa na próxima réplica:
“Quero fazer o Hormiga, um dos VW mais raros do mundo”, anuncia o construtor, referindo-se ao EA489, um pequeno caminhão produzido no México, com motor refrigerado a ar e tração dianteira, como no Gol “Batedeira”.
A fábrica de um homem só não pode parar.
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