Na semana passada, a filial britânica da Kia mostrou um restomod (carro restaurado e modificado) elétrico feito a partir de um subcompacto Pride de 1996. O motivo? Marcar os 80 anos de fundação da fabricante sul-coreana. Mas como assim 80 anos? Pois é, a Kia é muito mais antiga do que supõem os brasileiros, que conheceram a marca já na época da van Besta. Aproveitamos a data redonda para contar um pouco dessa história.
Mas comecemos pela saga do fundador, Kim Chul-Ho, cuja vida foi atropelada por várias guerras, ditaduras e crises, mesclando-se à história recente da Ásia Oriental. Nascido em 1905, Kim cresceu em uma Coreia extremamente pobre, dominada pelo Japão que, simplesmente, anexou o país em 1910. Prédios históricos do antigo império foram demolidos, tesouros nacionais foram rapinados e o idioma local foi proibido. A população que ficava no país era submetida a salários baixos e duras condições laborais. Volta e meia, as forças dominantes massacravam a população civil.
Haksan Kim Cheol-Ho (1905-1973) - o fundador
Sem perspectivas, muitos jovens coreanos emigravam para o Japão. O estudante de literatura chinesa Kim Chul-Ho, que usava o pseudônimo “Haksan”, foi um deles: aos 18 anos, teve que mudar-se para Osaka, onde deu duro no cais do porto e na construção civil, até conseguir trabalho em uma metalúrgica que produzia parafusos.
Graças a um gerente de produção japonês, pôde ingressar numa escola técnica e estudar Engenharia Mecânica. Ao se formar, foi promovido e, além de produzir parafusos, passou a vender bicicletas. Ganhou tanto dinheiro que pôde chamar a família para viver em Osaka.
No começo, a Kyungsung, numa Coreia paupérrima dos anos 40
Em 1930, conseguiu abrir sua própria fábrica de porcas e parafusos, a Samhwa Manufacturing, a partir de uma máquina que havia recebido de seu antigo empregador, como verba rescisória. As coisas iam prosperando até que o Japão invadiu a China e a empresa de Kim foi incorporada à indústria militar, produzindo parafusos e porcas para construção naval.
Em 1941, mesmo ano em que o Japão bombardeou Pearl Harbor e pôs os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, a empresa Samhwa começou a fabricar bicicletas. Após as tropas norte-americanas vencerem as batalhas de Midway (1942) e Guadalcanal (1943), Kim previu a derrota do Japão e retornou à Coreia.
De volta a seu país Natal (que ainda estava sob o jugo japonês), Kim fundou a Kyungsung Precision Industry para fazer peças de bicicletas. Criada em junho de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, essa empresa hoje é considerada o início da Kia Motors.
Bondes e carroças eram o principal meio de transporte na Coreia, que ainda não havia sido dividida. As estradas do país não eram pavimentadas. Após a Segunda Guerra, com o Japão derrotado, a Coreia foi dividida em duas zonas de ocupação: o Norte do país ficou com os soviéticos e o Sul, sob o comando dos Estados Unidos.
Kim — que estava em Seul, Coreia do Sul — conseguiu trazer do arrasado Japão algum maquinário de segunda mão, ampliando a variedade das peças que produzia: quadros, aros, raios, freios…
O passo seguinte seria fabricar bicicletas completas mas, em junho de 1950, estourou a Guerra da Coreia. Logo nas primeiras batalhas, a Kyungsung foi severamente atingida. O empresário teve então que transferir as instalações de Seul (perto da fronteira) para Busan, longe da região de conflito.
Triciclo Kia entrega as bicicletas Samchuly
Somente em 1952 é que Kim conseguiu produzir a Samchuly, primeira bicicleta inteiramente feita no país. Esse nome — que pode ser traduzido como “3000 Milhas” — era uma referência à distância entre os pontos extremos da Península da Coreia, como território unificado. No mesmo ano, a razão social da Kyungsung Precision Industry foi mudada para Kia Industries. Dizem que “Ki-A” era uma alusão a “Emergindo da Ásia”, mas esse “Ki” (기) bem que poderia ser, simplesmente, uma referência ao persistente Kim (김)…
Com um país empobrecido pela guerra e com a infraestrutura de transportes públicos devastada, as bicicletas viraram uma febre e a produção da Samchuly cresceu rapidamente. Sob licença, a Kia também começou a fabricar, em 1961, as Honda Super Cub — as Kia-Honda foram as primeiras motos feitas na Coreia do Sul.
Park Chung-hee, presidente que governou a Coreia do Sul com mão de ferro a partir de 1962, estava numa cruzada pelo crescimento industrial do país e promulgou a Lei de Proteção e Promoção da Indústria Automobilística. O propósito era estimular o crescimento das incipientes marcas nacionais e a produção local de componentes, evitando que fabricantes estrangeiras atuassem diretamente no país.
Produção das bicicletas Samchuly - uma das primeiras atividades da Kia
Kim Chul-Ho e seu filho mais velho, Kim Sang-Moon, souberam aproveitar o momento desenvolvimentista. Em 1962, um acordo com a japonesa Toyo Kogyo permitiu produzir localmente a picape-triciclo Mazda K360, que recebeu o nome Kia T600. Logo vieram modelos maiores, como os Kia Master T1500 e T2000, caminhões de três rodas também de origem Mazda.
Em 1973, lançaram a Kia Brisa B-1000, uma picapinha convencional (de quatro rodas) derivada da linha Mazda Familia. Era um balão de ensaio para fabricar o primeiro carro de passeio da marca sul-coreana.
Quando Kim Chul-Ho morreu, em 1973, aos 68 anos, as bases para a produção de automóveis Kia já estavam plantadas. A estreia foi com o Kia Brisa (1974), versão sul-coreana do sedanzinho japonês Mazda Familia. Com quatro portas, 3,83 m de comprimento e motor de 1 litro e 62 cv, o modelo fez enorme sucesso, especialmente como táxi. O índice de nacionalização rapidamente chegou a 90%.
O Kia Brisa tinha motor 1000 de 62 cv
Ao mesmo tempo, a Hyundai — então concorrente da Kia — desenvolvia um modelo próprio: o Pony, com carroceria desenhada por Giorgetto Giugiaro e mecânica de origem Mitsubishi. A Sinjin (futura Daewoo) fazia o Chevrolet 1700, derivado do australiano Holden Torana. Já a Asia Motors fabricava uma versão local do Fiat 124 quando passou a ser controlada pela Kia, em 1976 (a marca Asia, contudo, foi mantida). É interessante notar que, enquanto a Coreia do Sul dava seus primeiros passos na produção de carros de passeio com marcas locais, o Brasil já tinha uma indústria bem estabelecida, porém com marcas estrangeiras.
A Kia também importou o sedã de luxo Peugeot 604 V6 especialmente para cabeças coroadas do governo, e chegou a montar o Fiat 132 na Coreia do Sul, graças à longa relação da Asia Motors com a fabricante italiana. No outro extremo, a Kia recebeu das forças armadas a incumbência de produzir a picape militar Kaiser Jeep M715 — rebatizada como K311 ou KM450, a versão sul-coreana está em produção até hoje.
Kia Bongo Town - proibida de fazer carros, Kia concentrou seu foco no caminhãzinho Bongo e nas vans
Em 1979, porém, o ditador Park Chung Hee foi assassinado em um golpe de estado. O novo general no poder era Chun Doo-hwan, que decidiu “racionalizar a indústria automobilística”. A Kia (talvez por suas ótimas relações com o governo anterior) foi proibida de fabricar carros de passeio e picapes leves, daí que os Brisa tiveram que sair de linha em 1981. A proibição não atingiu a Hyundai, que passou a nadar de braçada tanto no mercado sul-coreano quanto nas exportações. Com as restrições, a Kia também teve que deixar de produzir motocicletas — sua antiga fábrica deu origem à Daelim.
A parte boa é que a Kia passou a ter direito exclusivo de fabricar caminhões de 1 a 5 toneladas e pôde focar suas atenções nos veículos comerciais. Com a nacionalização do caminhãozinho Bongo (em mais uma parceria com a Mazda), a empresa lançou uma versão Minibus. Em 1986, foi apresentada a van Besta. Estava criado um novo e lucrativo nicho de mercado na Coreia do Sul.
A Besta foi outro grande sucesso da marca - aqui, a primeira geração
Com o estabelecimento da democracia no país e o fim das restrições na produção, a Kia voltou ao mercado de carros de passeio, lançando em 1987 o compacto mundial Pride, desenvolvido em colaboração com Mazda e Ford. No mesmo ano, em outubro, lançou o Concord, um sedã de médio porte, com tração dianteira, baseado no Mazda Capella.
O primeiro Kia Pride (1987-2000) merece um capítulo especial, já que teve grande relevância mundial mas jamais foi vendido oficialmente em nosso mercado, sendo desconhecido dos brasileiros.
Em meados dos anos 80, a Mazda (que tinha 24,5% de suas ações nas mãos da Ford) projetou um subcompacto urbano produzido e vendido no Japão com os nomes Ford Festiva e Mazda 121. Não demorou e a parceria se estendeu à Coreia do Sul, onde o modelo passou a ser fabricado com o nome Kia Pride (“Orgulho”), tornando-se o pequeno mais vendido do país.
O primeiro Kia Pride fez sucesso mundial
Com acabamento simples, 3,43 metros de comprimento e motor de 1,1 litro (ou 1.3, dependendo da versão), o hatch foi exportado para dezenas de países. Até 1993, Estados Unidos e Canadá receberam 350 mil Ford Festiva de primeira geração fabricados na Coreia do Sul. Foi o primeiro carro para muitos jovens recém-habilitados. Foi graças aos Pride e Festiva que os norte-americanos conheceram a Kia — que depois partiu para voos próprios, como marca independente.
A Autolatina chegou a cogitar a produção do Ford Festiva por aqui, mas quem veio foi o europeu Fiesta, em 1995. No mesmo ano, a Kia chegou a exibir um Pride no Brasil Motor Show, salão realizado no Anhembi (São Paulo). A ideia de vender o carro no país, contudo, foi torpedeada por um aumento radical da alíquota de importação, da noite para o dia. José Luiz Gandini, representante da marca sul-coreana no Brasil, desistiu de trazer o Pride.
Saipa 151 - picape iraniana
Ainda nos anos 90, a Kia fez um acordo com a fabricante iraniana Saipa, que até hoje produz a 151, picapinha derivada do modelo. Com diferentes nomes, os Festiva/Pride/121 foram feitos ainda na China, em Taiwan, no Egito, na Tunísia, no Iraque, nas Filipinas e na Venezuela. Na linha Kia, o Pride cresceu e evoluiu, dando origem ao Rio.
A rápida expansão da indústria automobilística sul-coreana, entre o fim dos anos 80 e o início dos anos 90, esteve associada a um excessivo endividamento das empresas automobilísticas. Aproximadamente 50% da produção era destinada à exportação (como vimos por aqui na época da chegada em massa de Kia Besta, Asia Towner, Asia Topic, Hyundai Excel e Daewoo Espero).
Em sua fase de maior crescimento, o grupo Kia, ironicamente, meteu-se em negócios furados no setor imobiliário e de siderurgia, perdeu rentabilidade e acumulou uma dívida de US$ 10,7 bilhões. Uma crise cambial complicou as coisas e o conglomerado pediu concordata em 1997. O CEO renunciou ao cargo e passou dois anos na cadeia.
Novo tempos - Kia EV5
Para não deixar a empresa cair em mãos estrangeiras, o governo sul-coreano permitiu que a divisão Kia Motors fosse leiloada — e o maior lance veio da concorrente Hyundai. Nascia assim o conglomerado Hyundai-Kia.
Um detalhe curioso: até sua falência, em 1997, o grupo Kia ainda incluía a fábrica de bicicletas Samchuly, que deu origem a tudo. Essa empresa ainda existe, de forma independente, e é comandada por Kim Seok-Hwan, neto do fundador Kim Chul-Ho.
Em 2023, o Hyundai Motor Group produziu 7,3 milhões de veículos, ficando em terceiro lugar no ranking mundial dos fabricantes (atrás dos grupos Volkswagen e Toyota). Desse total, 3.087.384 são carros e comerciais leves Kia. Nada mal para uma marca que passou por tantas reviravoltas em 80 anos de existência.
RECOMENDADO PARA VOCÊ
Kia Tasman: projeção revela variante SUV para brigar com Toyota SW4
Jaguar revela novo logotipo e sinaliza como será 'recomeço elétrico'
Antes da Tasman, Kia diz que quase fez picape grande rival da F-150
Black Friday GM: Onix e Tracker têm R$ 13 mil de desconto e taxa 0%
Kia Sportage 2026 renova visual e abandona câmbio de dupla embreagem
"Vinte porcento das pessoas que experimentam a Amarok a compram"
Kia aprova visual ousado da nova picape Tasman