Veterano da marinha, o americano Bruce Meyers (1926-2021) velejou um bocado pelo Pacífico após a Segunda Guerra. Acabou virando construtor de barcos de fibra de vidro, um material revolucionário: era leve, fácil de moldar e não enferrujava.

Um dia, na Califórnia, Meyers viu uma turma se divertindo nas dunas com pesados veículos tubulares, tipo gaiola, com motores V8 dianteiros. Veio-lhe a chispa da invenção: uma versão aliviada e com motor traseiro venceria as areias com muito mais facilidade.

A primeira experiência, acreditem, foi feita com uma Kombi de pneus alargados. Deu certo e nosso dublê de engenheiro, artista e surfista usou sua experiência como construtor de barcos para fazer leves carrocerias de fibra de vidro.

Galeria: Bugre e sua história com os bugues

Assim nasceu, em 1964, o primeiro buggy com mecânica de Volkswagen. Era o Meyers Manx, modelo muito leve, capaz de acelerar rápido e superar terrenos difíceis. A ideia logo começou a ser copiada nos Estados Unidos e Europa.

Também na Califórnia, a empresa European Motor Parts Inc (EMPI), fundada por Joe Vittone em 1956 para vender peças de preparação para Volkswagen, fabricava desde 1963 um kit de chapas de aço dobradas para transformar o Fusca em um off-road: era o EMPI Sportster. Na esteira de sucesso do Manx, contudo, a EMPI resolveu que também faria um buggy com carroceria de fibra de vidro: o EMPI Imp (1968), outro grande êxito internacional.

Glaspac 1970
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Glaspac 1970

Glaspac, o pioneiro no Brasil

Chegamos ao Brasil de 1968. A empresa Glaspac pertencia a Donald Pacey, jovem paulista filho de ingleses que produzia peças de fibra de vidro em geral, como carrinhos de sorvete. Um dia, Donald resolveu se unir ao amigo Gerry Cunningham para fazer componentes para carros de corrida. Era obra deles a “bolha” em formato de Volks usada pelo lendário Fusca Bimotor dos irmãos Fittipaldi.

Foi meio por acaso que a dupla Donald-Gerry fez seu primeiro buggy em São Paulo. Na Glaspac havia um Volks 1951 com carroceria original toda podre. Como a mecânica estava em bom estado, os dois amigos decidiram improvisar um brinquedo... Vestiram o chassi com uma roupa de fibra de vidro e tocaram a testar a novidade em terrenos baldios e campinhos de futebol.

A diversão era grande e tinha potencial de virar negócio. Donald e Gerry decidiram, então, fazer uma réplica do Manx MkII americano. Encurtaram em 36cm a plataforma de seu velho Fusca e foram ajudados no projeto pelo desenhista Itajará.

Bruce Meyers e o Manx 1964 - primeiro buggy VW
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Bruce Meyers e o Manx 1964 - primeiro buggy VW

Ao mesmo tempo, o filme “Crown, o magnífico” fazia sucesso nos cinemas. Na pele do milionário Thomas Crown, o ator Steve McQueen pintava o sete a bordo de um buggy com motor de Chevrolet Corvair. Estava lançada a moda — e a Glaspac começou a vender seus kits, quase idênticos aos da Manx.

No Brasil não faltava matéria-prima (Fuscas e derivados), praias e sol: os bugues tinham que ser um sucesso. Era também um meio de transporte condizente com o espírito da juventude da época. Muita gente improvisava. Era o caso do estudante Ângelo Lima, que conhecera o Manx original na Califórnia e, de volta ao Rio, montou seu próprio buggy (o primeiro a rodar na cidade). Ao volante da novidade, fazia incursões pela deserta Região dos Lagos, surfando pelo caminho.

A fórmula foi seguida por dezenas de fábricas bem ou mal estruturadas no país, além de incontáveis fundos de quintais (o número passou de uma centena). Entre outras pioneiras famosas podemos citar a paulista Kadron e as cariocas Woody e Bugre — da qual contaremos a história aqui.

Bugre começou na pista

Francisco Cavalcante (1929-1991) começou sua carreira no mundo do automóvel trabalhando na montagem de picapes e caminhões da General Motors importados dos Estados Unidos. Entre 1955 e 1960, foi responsável técnico da Mopema, maior retífica de motores do Rio. Logo depois, fundou a Servi-Volks, oficina especializada nos carros da marca alemã.

Em 1965, Francisco fez um jipinho com mecânica Volks e, no ano seguinte, se envolveu com automobilismo esportivo. Sua primeira criação para as pistas foi um Fórmula Vê, monoposto com motor de Fusca 1200. Apesar de ter grids cheios e ser muito disputada, a categoria durou pouco.

No fim dos anos 60, Francisco e o sócio Humberto Anastazio mantinham uma oficina na Avenida Itaóca, no bairro carioca de Bonsucesso. Estavam meio enfadados de consertar carros e resolveram fazer algo diferente. Depois de verem fotos dos bugues americanos, acharam que os carrinhos tinham bom potencial em nosso litoral ensolarado e foram à luta.

O nome da empresa não poderia ser mais feliz: Bugre. Era bem brasileiro, lembrava os bravos indígenas e, ao mesmo tempo, tinha uma sonoridade semelhante à da palavra inglesa buggy. Até hoje, muita gente simplesmente associa o genérico buggy à marca Bugre.

O primeiro protótipo fez um tremendo sucesso pelas ruas e, em 1970, começou a produção em série de carrocerias: três a cada semana. Quem quisesse curtir a onda, fazia a encomenda e levava um Fusca até a Avenida Itaóca. Em 5 dias, o velho Volks era transformado em um Bugre novinho em folha. Havia ainda a possibilidade de comprar o carro com mecânica zero-quilômetro,

O primeiro modelo produzido por Cavalcante era, praticamente, uma réplica do Glaspac que, por sua vez, copiava o americano Manx. Os Bugre usavam rodas de cinco furos (da Kombi) alargadas e lanternas traseiras do primeiro Ford Corcel. A luz de placa vinha de sobras de estoque dos ingleses Morris da década de 50.

A plataforma do Volks era encurtada em 30 centímetros com um corte em V. Assim, aumentava-se a área com solda, bem como a resistência. O acabamento era o mais simples possível, com bancos em concha e um mínimo de forrações. 

Um Bugre II original hoje tem status de carro de coleção
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Um Bugre II original hoje tem status de carro de coleção

Bugre II, o ícone

Um ano depois do Bugre I, foi criado o modelo SS, com mais jeito de carro esportivo do que de veículo todo-terreno. As novidades não paravam. No fim de 1971 veio o Bugre II. Sua carroceria tinha um desenho original e cheio de personalidade — hoje é considerada a mais clássica carroceria da marca.

A década de 70 marcou o auge deste tipo de veículo. Era comum ver um monte de jovens saindo da praia, aboletados em um único buggy. E, ao longo dos anos, a fábrica de Bonsucesso continuou lançando novos modelos: os Bugre III, IV e V, além do esportivo M150 e do jipinho FC-15.

Até o início dos anos 80, novas marcas apareceram no cenário. Entre as mais famosas estavam Baby, Emis, Terral e BRM. Depois disso, a moda esfriou na região Sudeste — e o Nordeste se tornou o maior produtor desse tipo de veículo, com fábricas como a Fyber a Selvagem.

Os bugues brasileiros chegaram a ser exportados para países tão diversos quanto Marrocos, Colômbia, Senegal, Cabo Verde, Bélgica, Qatar, Portugal e Espanha.

Paulo Cavalcante e um Bugre VII Street (Foto - Jason Vogel)
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Paulo Cavalcante e um Bugre VII Street (Foto - Jason Vogel)

Ainda na ativa

A onda passou, mas a pioneira Bugre se mantém viva, 54 anos após sua criação. Tocada por Paulo Cavalcante, filho do fundador, a fábrica foi transferida da Avenida Itaóca para a estrada Via Lagos, no município fluminense de Rio Bonito, bem no meio do caminho entre a capital e Búzios. A produção é pequena, mas ininterrupta.

O modelo mais recente é o Bugre VII, lançado em 2008. A velha técnica de usar plataformas Volkswagen encurtadas está superada: o Bugre moderno tem chassi próprio, com longarinas em “U” e assoalhos de fibra de vidro. Os motores boxer refrigerados a ar deram lugar ao EA111 de 1,6 litro usado nos Gol, Saveiro e Fox. 

Nesses 16 anos, o modelo vem passando por pequenas mas constantes atualizações. A mais recente é a BVII/RD, com radiador dianteiro (o zero-quilômetro custa R$ 83 mil), mas a versão com radiador lateral traseiro continua em linha (R$ 79.500). A produção hoje é bem pequena: em torno de 24 carros por ano. Nos melhores meses, chega a fabricar 4 exemplares.

Os Bugres fabricados atualmente são o VII-D e VII-RD
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Os Bugres fabricados atualmente são o VII-D e VII-RD

Um dado curioso é apontado por Paulo: hoje, a maioria dos compradores já passou dos 50 anos. Eram jovens da época em que os bugues eram símbolo de liberdade. O ponto de encontro também mudou: se antes era comum ver os despojados carrinhos no Castelinho, em Ipanema, atualmente é mais fácil encontrá-los na Região dos Lagos fluminense. 

“Hoje também é muito comum que o Bugre tenha uso rural, mais do que na areia. Alguns compradores são também donos de picapes e usam o Bugre como segundo carro da família”, revela Paulo. Daí que os antigos pneus dune buggy deram lugar a modelos de uso misto como o Dunlop Grandtrek AT3.

Além de produzir o atual Bugre VII, a empresa restaura os modelos de décadas passadas — todos os moldes antigos estão preservados na fábrica de Rio Bonito, bem como a carroceria 001, laminada em 1970.

De uns tempos para cá, os clássicos Bugre II, Glaspac e Kadron passaram a ser cultuados como carros antigos e restaurados à maneira original (com rodas de cinco furos e forrações simples) ou como street, baixinhos e com um super acabamento. Passados 60 anos desde o primeiro Manx, os bugues continuam a ter fãs.

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