Imagine uma semana em que são realizados os mais prestigiados e luxuosos eventos relacionados ao mundo do carro antigo — todos acontecendo quase que simultaneamente em um raio de 25 quilômetros. Trata-se da Monterey Car Week, que reúne anualmente mais de 80 mil colecionadores e entusiastas de automóveis históricos na Península de Monterey, na Califórnia.
A edição de 2024 foi realizada entre os dias 9 e 18 de agosto. Sua abundante programação incluiu 11 leilões, dezenas de festas exclusivas, emocionantes corridas de carros históricos e revelações de novos modelos ultraluxuosos ou superesportivos.
O ponto culminante da semana é o Concours d'Elegance de Pebble Beach, uma premiação realizada desde 1950 e que, atualmente, reúne os clássicos mais caros, raros e belos do planeta. Participaram da edição deste ano nada menos que 214 automóveis, pertencentes a colecionadores de 16 países.
O troféu de “Best of Show” foi conferido a um Bugatti Type 59 Sports de 1934 com marcas visíveis da passagem do tempo. Foi a primeira vez que um carro inscrito na categoria “Prewar Preservation” (para exemplares jamais restaurados) levou o prêmio principal do Concours d'Elegance.
Best of Show - o Bugatti Type 59 Sports, de 1934
Isso representa uma cambalhota nos parâmetros de avaliação de um concurso que sempre premiou carros over restored — ou seja, que foram desmontados até o chassi e super restaurados em um padrão acima do original de fábrica, abusando dos parafusos de inox, rodas cromadas, blocos de motores polidos e pinturas tipo espelho.
Quando o colecionismo de automóveis antigos começou, a grande ambição era restaurar os carros ao estado de zero-quilômetro, muitas vezes dando ao acabamento um capricho extra que jamais seria possível na linha de produção. Dos anos 2000 para cá, contudo, automóveis intocados ganharam valor. Podem ser os ambicionados barn finds (“achados em celeiros”) ou, simplesmente, carros que foram cuidadosamente preservados por uma família ao longo das décadas, sem grandes modificações.
O Bugatti Type 59 levado a Pebble Beach por Fritz Burkard, da The Pearl Collection (de Zug, na Suíça), ostenta sua história em cada centímetro da carroceria. É a pintura descascada por pedriscos da pista, o azul original por baixo da tinta preta aplicada há mais de 80 anos, o verniz esmaecido do painel e a antiga forração de couro. Uma verdadeira cápsula do tempo, com sua pátina inigualável. Só se é original uma vez — e seria um crime contra a memória restaurar um carro assim. Ah, claro: a mecânica funciona perfeitamente.
Um dos últimos modelos de corrida da Bugatti nos anos 30, o Type 59 nasceu como carro de Grand Prix projetado por Ettore Bugatti e Jean Bugatti, pai e filho. Foram produzidos apenas oito exemplares entre 1934 e 1936 (anos mais tarde, outros dois carros seriam montados usando componentes originais).
Tem motor DOHC de oito cilindros em linha e 3,3 litros. Originalmente, trazia carburadores Zenith de corpo duplo e era sobrealimentado por um compressor Roots. Assim equipado, rendia 252 cv. Seu chassi é uma versão modificada do que era usado nos Bugatti Type 54, aliviado (com vários furos) e com os calços do motor em posição mais baixa, para melhorar o centro de gravidade.
O exemplar premiado em Pebble Beach tem um currículo impressionante. Primeiro Type 59 construído, o carro foi o vencedor do Grande Prémio da Bélgica em 1934, pilotado pelo francês René Dreyfus, e chegou em terceiro lugar no GP de Mônaco do mesmo ano. Na temporada de 1937, com Jean-Pierre Wimille, esse mesmo Bugatti venceu o Grande Prêmio de Pau, bem como os GPs da Argélia e do Marne.
Depois disso, Ettore Bugatti removeu o compressor e converteu o carro em um sport-protótipo biposto. A nova carroceria trazia para-lamas ao estilo motociclístico e duas pequenas portas. O rei Leopoldo III, da Bélgica, comprou o automóvel e o repintou de preto com faixa amarela, cores oficiais de seu país. E é assim que o carro está até hoje, original e sem restauração. Em 2020, o Bugatti T59 foi arrematado em um leilão por 10 milhões de euros (R$ 62 milhões, pelo câmbio atual).
Sandra Button, presidente do Concours d'Elegance, destaca: "Este Bugatti histórico, o primeiro Type 59 construído, é um raro carro de corrida da equipe de fábrica e registrou múltiplas vitórias em GPs nas mãos de grandes nomes do automobilismo. Tem ainda laços com a realeza. Talvez o mais importante seja o fato de que o carro ainda exibe toda a sua história, tendo sido preservado com a pintura que recebeu quando foi adquirido pelo rei Leopoldo da Bélgica."
O entusiasmado proprietário Fritz Burkard declarou: "Estou tão feliz pelo carro, tão feliz pela Bugatti. Este carro é incrível. Tem tanta história — um dos Bugattis mais bem-sucedidos da história — e ganhar com este carro significa muito para mim. É a primeira vez que um suíço vence, primeira vez que um colecionador europeu vence, primeira vez que um carro preservado vence. É importante que a preservação também seja reconhecida, porque um carro só pode ser original uma vez. E é maravilhoso dirigi-lo."
Com essa vitória, Bugatti e Mercedes-Benz estão empatadas com o maior número de prêmios de "Best of Show" em Pebble Beach: dez vitórias cada. Este ano, a disputa pelo troféu "Best of Show" contou com fortes concorrentes, como o elegante Talbot-Lago T26 Grand Sport Saoutchik Fastback Coupé de 1948, apresentado por Robert Kudela da República Tcheca; o clássico Packard 1108 Twelve LeBaron Sport Phaeton de 1934, exibido por Harry Yeaggy de Cincinnati, Ohio; e o surpreendente Lancia Stratos HF Zero Bertone Coupe de 1970, levado por Phillip Sarofim de Beverly Hills, Califórnia.
Finalista - Talbot-Lago T26 Grand Sport Saoutchik Fastback Coupé, de 1948
O concurso começou na quinta-feira, dia 15, quando a maioria dos inscritos participou do 26º Pebble Beach Tour d’Elegance, que percorre 110 quilômetros de deslumbrantes estradas costeiras. Os carros inscritos que completam o itinerário têm vantagem em caso de empate na competição de elegância. Não basta ser bonito - é preciso andar bem.
Uma mostra especial reuniu dez Land Rover usados originalmente pela rainha Elizabeth II, que adorava dirigir os 4x4 da marca. Do Série I 1954 ao Range Rover 2009, os exemplares foram trazidos da Inglaterra pela Land Rover Classic, divisão dedicada a preservar a história e restaurar os modelos da fabricante britânica.
Mostra especial dos Land Rover usados pela rainha Elizabeth II
O Concours d'Elegance arrecadou mais de US$ 3 milhões para caridade este ano. Por meio da Pebble Beach Company Foundation, parceira filantrópica do evento, esses fundos beneficiarão quase cem organizações sem fins lucrativos focadas na educação de mais de 10 mil crianças no Condado de Monterey.
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