As 24 Horas de Le Mans são muito mais do que a maior e mais famosa corrida de automóveis do mundo. Enquanto os carros se digladiam dia e noite na pista, o público (de cerca de 250 mil pessoas) faz um vai e vem entre centenas de barraquinhas que vendem lanches, roupas, miniaturas e lembrancinhas variadas. Tudo ali tem o automóvel como tema e o consumo como meta. É uma bagunça organizada que dá o ar de Disneylândia ao evento.
Para os entusiastas, uma das maiores atrações paralelas à corrida é o Museu das 24 Horas de Le Mans, que reúne 66 carros em exposição permanente, além de promover mostras temporárias com automóveis vindos de outras coleções. Situado na entrada norte do circuito, o museu funciona todos os dias do ano e o ingresso cheio custa € 12 (o equivalente a R$ 70). No fim de semana da grande prova, porém, a visitação é livre para quem pagou para ver a corrida.
Cartaz da primeira porva das 24h de Le Mans, em 1923
Antes mesmo de promover sua famosa prova de 24 horas de duração, a cidadezinha de Le Mans, capital do departamento de Sarthe, a 230 quilômetros de Paris, já era relevante no automobilismo esportivo por ter sediado o Grande Prêmio da França de 1906 - considerado o primeiro GP da História (44 anos antes da criação da Fórmula 1).
Em 1961, o Automobile Club de l'Ouest (ACO), automóvel clube com sede em Le Mans e organizador da prova das 24 Horas desde sempre, decidiu que já era hora de fundar um museu dedicado a tanta história motorizada. O governo local gostou da ideia e apoiou a compra dos primeiros carros para o Musée Automobile de la Sarthe (nome original da instituição). A família de Léon Bollée, pioneiro construtor que tinha fábrica em Le Mans, doou alguns veículos. Montadoras e colecionadores também contribuíram para a formação do acervo.
A atual sede do museu foi inaugurada em 1991. Quem visita seus 6.500 m² pode conhecer de perto nada menos que 15 vencedores das 24 Horas de Le Mans, além de outros carros que participaram da corrida ao longo de seus 101 anos de existência.
Chenard & Walcker U3 (1923), o primeiro vencedor em Le Mans
Vinot Deguingand Torpédo (1923)
Bentley 3L Vanden Plas (1924), o campeão da segunda edição da prova
Chenard & Walcker Tank Z1 (1925)
Estão lá, por exemplo, um Chenard et Walcker U3 Torpédo Sport com chassi e mecânica idênticos ao do campeão da primeira edição da prova, realizada em 1923. Com motor de quatro cilindros, 3 litros e incríveis 100 cv, o carro de André Lagache e René Léonard fez a média de 92 km/h durante a prova.
Bem ao lado está um carro Vinot & Deguingand (marca francesa que existiu de 1898 a 1926). Seu grande tanque de combustível e algumas outras peculiaridades indicam que este é exatamente o mesmo automóvel que chegou em 26º lugar na prova de 1923.
Alguns passos adiante e vemos o Bentley 3L Sport, autêntico exemplar vencedor das 24 Horas de Le Mans de 1924, com a dupla formada pelo sino-canadense John Duff e pelo britânico Frank Clement. Esse mesmo carro já havia feito a volta mais rápida na edição de 1923. Até 1930, os Bentley dominariam a prova, com nada menos que cinco vitórias (24-27-28-29-30).
E Le Mans é famosa pelos protótipos. O primeiro modelo projetado especificamente para a prova das 24 horas foi o francês Chenard et Walcker Z1 Tank Spécial. Com uma carroceria que seguia os preceitos aerodinâmicos conhecidos na época e motorzinho de quatro cilindros, 1,1 litro e 55 cv, o carro chegou em 10º lugar geral na prova de 1925, sagrando-se campeão em sua categoria. Percorreu 1.882 km a uma velocidade média de 78,4 km/h.
Lagonda M45R Rapide (1935)
Dos anos 30, temos um Lagonda M45 R Rapide com carroceria “Le Mans”, vencedor da prova de 1935. Com motor de seis cilindros e 4,5 litros, teve como pilotos Johnny Hindmarsh e Luis Fontes - este, inglês filho de pai brasileiro. Fontes, infelizmente, teve uma vida breve: morreu em 1940, aos 27 anos, pilotando um bombardeiro Vickers Wellington da Real Força Aérea (RAF). Já a marca Lagonda foi independente até 1947, quando foi comprada pela Aston Martin.
Simca 5 Gordini Le Mans (1937)
Outro exemplar da década de 30 no museu é o protótipo Simca 5 construído por Amédée Gordini (cujo nome se tornaria famoso no Brasil dos anos 60 por causa do Renault Gordini). No início de sua carreira, o preparador tinha preferência por modelos da Fiat - e os primeiros Simca nada mais eram que Fiat fabricados na França. Foi como chefe do departamento de corridas da Simca que Gordini fez um biposto esportivo com motorzinho de 568 cm³ e 30 cv. Pesando apenas 460 quilos, obteve ótimos resultados nas edições de 1937 a 1939.
A classe para carros com menos de 1.000 cm³ também incluía modelos esportivos de produção em série, como o britânico Singer Nine. A média de 89,8 km/h foi suficiente para uma vitória na sua categoria, em 1935.
DB Tank (1949)
Renault 4CV (1950)
A Segunda Guerra Mundial interrompeu a realização da prova em Le Mans entre 1940 e 1948. Como representantes do pós-guerra, o museu tem os protótipos da D.B. (Deutsch-Bonnet), marca francesa que se notabilizou por fazer esportivos leves e muito aerodinâmicos, equipados com pequenos motores Panhard, bicilíndricos e refrigerados a ar.
Falando em motores pequenos, houve quem disputasse as 24 Horas ao volante dos Renault 4CV (vulgo “Rabo Quente”), que mal podiam manter 100 km/h com seu 4-em-linha de 747 cm³ e modestíssimos 21 cv. Imagine-os na mesma pista que um Mercedes-Benz 300 SL, que passava dos 250 km/h na grande reta de Hunaudières…
Ferrari 166MM (1949)
Em 1949, com a barchetta 166 MM V12 pilotada por Luigi Chinetti, a Ferrari obteve a primeira de suas (dez) vitórias nas 24 Horas de Le Mans. No mesmo ano, a marca italiana conquistou o 1º lugar na Mille Miglia e nas 24 Horas de Spa, entrando definitivamente no mapa dos grandes nomes do automobilismo.
Na década de 50, contudo, o circuito francês seria dominado pela Jaguar, que venceu cinco edições das 24 Horas de Le Mans entre 1951 e 1957, aproveitando seu motor XK de seis cilindros em linha, em carros como o C-Type e o D-Type.
Foi em Le Mans que o talentoso piloto brasileiro Christian “Bino” Heins morreu guiando um Alpine M63, na prova de 1963. Ele liderava em sua categoria quando encontrou no meio da pista os destroços de dois carros acidentados. No museu temos um protótipo Alpine A210 de 1966/1967.
Ford GT40 (1967)
A partir de 1963, o industrial Henry Ford II decidiu criar seu próprio departamento de corridas — e a meta maior seria vencer a Ferrari nas provas de longa duração. Parecia apenas o desatino de um ianque mimado: desde 1960, a Ferrari conquistara o primeiro lugar em todas as edições das 24 Horas de Le Mans.
A pedido da Ford, a preparadora britânica Lola criou o GT40 MkI, mas o carro mostrou-se instável e pouco confiável na sua primeira corrida em Le Mans, em 1964. A solução foi convocar Carroll Shelby, dono da Shelby American Inc., já uma famosa equipe de competição.
Na prova de Le Mans em 1965, contudo, houve outro retumbante fracasso: nenhum dos seis GT40 inscritos chegou ao final. Mais uma vez, as Ferrari V12 conquistaram as três primeiras posições.
Em 1966, 1967, 1968 e 1969, contudo, os GT40 dominaram a prova, com quatro vitórias consecutivas. Depois, foi o Porsche 917 quem assumiu o cetro das provas de longa duração.
Matra-Simca 670 B (1974)
Peugeot 905 (1992-1993)
Logo em seguida veio o tricampeonato dos Matra-Simca MS670 (1972-1973-1974), sempre com Henri Pescarolo ao volante. É um carro lindo e enorme, com V12 de 490 cv, que alcançava 350 km/h nos 5,5 km do retão de Hunaudières. Muita gente se lembrará de sua pintura azul celeste representando as cores oficiais da França, bem como dos cigarros Gitanes. Outro francês vitorioso no museu é o Peugeot 905 Evo 1B, que ganhou nas edições de 1992 e 1993.
Bentley Speed 8, o vencedor da prova de 2003
De meados da década de 90 até 2017, quem deu as cartas no Circuito de la Sarthe foram os alemães, com seguidas vitórias da Porsche e dos lendários Audi R8 e R10. Em 2003, contudo, um nome do passado levou a melhor: depois de 73 anos, a Bentley voltou a vencer as 24 Horas de Le Mans. Agora pertencente ao Grupo Volkswagen, a marca levou para a pista o Speed 8, um protótipo que tinha muito a ver com os Audi R8 - a começar pelo motor V8 biturbo de 3,6 litros. A essa altura, a velocidade média na prova já era de 214 km/h.
Delahaye Type 85, caminhão-tanque das primeiras corridas (1924)
Os bólidos que disputaram as 24 horas de Le Mans não são a única atração do museu. Temos carros de serviço semelhantes aos usados nas primeiras edições da prova, como um caminhão-tanque Delahaye 1924.
Renault KY de bombeiros como o que dava apoio nas primeiras provas (1923)
Também há um caminhão de bombeiros Renault KY 1923 - que chama a atenção por sua pintura dos “Bomberos Voluntarios de La Boca”, com placas de Buenos Aires… A história é curiosa: em 1961, já fora do serviço ativo na Argentina, esse caminhão foi embarcado para a Itália e fez um giro pelos quartéis de bombeiros daquele país. Depois de seu périplo de 3.300 km pela Itália, o caminhão foi levado à França e doado à Renault. A fabricante, por sua vez, o repassou ao recém-criado museu de Le Mans, em 1962 - afinal, autobombas iguais eram usadas pelos bombeiros franceses nas corridas dos anos 20.
Citroën HY que promovia os faróis Marchal em Le Mans, nos anos 60 (1964)
Outro veículo curioso é um furgão Citroën HY (“Tub”) cheio de faróis e buzinas. Nos anos 60, esse estranho exemplar era presença certa no circuito, durante as 24 Horas de Le Mans, como carro-propaganda da fábrica de faróis Marchal. Afinal, nada como uma corrida noturna para chamar a atenção para os faróis.
Krieger elétrico A155 (1908)
O acervo inclui ainda raridades mecânicas que nada têm a ver com a competição. É o caso, por exemplo, do pequeno ônibus elétrico francês Kriéger A155, de 1908. Com um motor em cada roda da frente, foi um dos primeiros veículos com tração dianteira. Alguns exemplares foram adaptados como ambulâncias na Primeira Guerra Mundial.
Socema-Grégoire a turbina (1952)
E o que dizer do Socema Grégoire, um carro movido a turbina fabricado em 1952? Projetado pelo engenheiro francês Jean-Albert Grégoire para a fábrica de motores de aviação Socema, o protótipo tem carroceria de alumínio com o excepcional Cx de 0,19. Teoricamente, alcançava os 200 km/h - havia, porém, um pequeno problema: seus freios não eram suficientes para detê-lo.
Mototri Contal como a que disputou o Pequim-Paris, em 1907
Entre as relíquias usadas para percorrer grandes distâncias, o museu tem um Mototri Contal, triciclo idêntico ao que participou da prova Pequim-Paris de 1907. O exemplar inscrito, porém, teve que ser abandonado no Deserto de Gobi, entre a China e a Mongólia.
Citroën 2CV que deu a volta ao mundo (1959)
Mais êxito teve o Citroën 2CV da dupla Jean-Claude Baudot e Jacques Séguéla: entre 1958 e 1959, eles deram a volta ao mundo nesse carrinho com motor de 425 cm³ e 12 cv. Já haviam cruzado a Europa e parte da África, sendo perseguidos por elefantes e rinocerontes, quando chegaram de navio ao Rio de Janeiro. Aqui eles disseram ter encontrado seu maior desafio até então: superar a burocracia brasileira para liberar o carro no porto... Mas conseguiram - tanto que seu Citroën hoje é uma das peças do Museu das 24 Horas de Le Mans.
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