A China é fraca em atrações para quem curte carros antigos. Os automóveis particulares só começaram a chegar às massas na década de 90 e a renovação da frota tem sido bem rápida desde então. Daí que é praticamente impossível encontrar no trânsito algum modelo do passado. Mesmo carros de produção local como o VW Santana e o Buick Sail (nosso Corsinha Classic), que dominavam a paisagem chinesa há 15 ou 20 anos, já desapareceram das grandes metrópoles.
A legislação local dificulta a existência de modelos antigos. Uma lei de 2013 diz que carros com mais de 600 mil quilômetros rodados devem ser, simplesmente, descartados no ferro-velho. Outra: automóveis com mais de 15 anos de fabricação devem passar por inspeção duas vezes por ano, para que se verifique se estão dentro das normas de emissões.
De olhos sempre atentos, porém, esbarramos em uma inusitada surpresa a 75 quilômetros de Shenzhen, no Seven Star Bay Yacht Club, onde a BYD demonstrava suas novidades a um grupo de jornalistas latino-americanos. No canto do estacionamento, um curioso veículo verde oliva jazia com ar triste e abandonado, entre UTVs e carretinhas para barcos.
O jipinho estava largado ao lado de carretas de barcos
O interior é muito simples, típico de veículos militares
Modelo levava quatro soldados ou 500kg de carga
De longe, imaginamos que era um Steyr-Puch Pinzgauer, veículo militar do qual conhecemos um exemplar no Rio de Janeiro. De perto, porém, vimos que se tratava de um modelo ainda mais antigo e raro: o Steyr-Puch Haflinger, com suas soluções técnicas pra lá de originais.
Um pequeno fora-de-estrada austríaco fabricado há mais de 50 anos e esquecido em um iate clube da Baía de Daya, no Mar da China Meridional, é algo tão inusitado que pede uma matéria.
Puch 500 - modelo da Fiat italiana ganhou motor austríaco
Erich Ledwinka a bordo de sua criação
Na década de 1950, a fábrica austríaca Steyr-Daimler-Puch (SDP) produzia caminhões, ônibus e tratores a diesel, além de montar carros de passeio Fiat sob licença. Também tinha planos de construir um carrinho popular, cujo motor boxer traseiro de dois cilindros e quatro tempos seria projetado por Erich Ledwinka (1904-1992).
Tatra V570 (1933)
Erich era filho do lendário Hans Ledwinka (1878-1967). Juntos, pai e filho haviam projetado, em 1933, o Tatra V570 - protótipo de carro popular aerodinâmico que já reunia quase todas as soluções técnicas que seriam adotadas mais tarde no Volkswagen de Ferdinand Porsche. Na época, porém, a administração da Tatra preferiu abortar o projeto do compacto V570 e usar seus conceitos mecânicos em modelos maiores e mais caros, os T77, T87 e T97, também desenhados pelos Ledwinka.
Mais tarde, a família Ringhoffer, que foi dona da Tatra até 1945, passaria anos processando a Volkswagen por infringir patentes ao projetar o chassi do Fusca, chegando a um acordo de indenização em 1964. Contudo, ao ser chamado a depor como testemunha, Hans Ledwinka jamais acusou Ferdinand Porsche de plágio. O fato é que esses dois gênios autodidatas da engenharia automotiva viviam o mesmo zeitgeist, o espírito da época. Como reconheceu o próprio Ledwinka, “às vezes Porsche olhava por cima do meu ombro e às vezes eu olhava por cima do ombro dele”.
Ferdinand Porsche e Hans Ledwinka eram amigos da mesma geração, ambos nascidos no Império Austro Húngaro. Compartiam conceitos de engenharia inspirados pelas diretrizes do mestre Edmund Rumpler: motor traseiro, carrocerias aerodinâmicas e suspensão por semieixos oscilantes. Paul Jaray, pioneiro da aerodinâmica automotiva, também fazia parte da patota.
O motor é traseiro, de dois cilindros, refrigerado a ar
Hora de avançar até os anos 1950, quando a Steyr-Daimler-Puch planejava fazer seu carro popular. Encarregado do projeto, Erich Ledwinka voltou a adotar a solução dos dois cilindros boxer, como no Tatra V570. Agora, porém, o motorzinho tinha câmaras hemisféricas, virabrequim forjado e outros componentes internos de alta qualidade. Era uma joia mecânica - visualmente, parecia um motor de Porsche 356 Carrera cortado ao meio ou, talvez, um motor de motocicleta BMW com ventoinha de Gol BX…
O motor traseiro de dois cilindros refrigerado a ar
No fim, contudo, a Steyr-Daimler-Puch desistiu de fazer seu popular 100% novo. Em vez disso, decidiu produzir na Áustria, sob licença, a recém-lançada Fiat Nuova 500 (1957) - mas equipada com o motorzinho boxer “ardido” projetado por Ledwinka, além de uma transmissão de fabricação própria. Nascia assim o Puch 500, que superava a Nuova 500 original italiana tanto em desempenho quanto em suavidade de funcionamento.
Steyr-Puch Haflinger, o todo-terreno austríaco
Steyr-Puch Haflinger militar
Um Haflinger em manobras militares na Suíça nos anos 60
Foi por essa época que a Steyr-Daimler-Puch recebeu do exército da Áustria o pedido de uma viatura leve que pudesse substituir os Jeep Willys nas trilhas alpinas. O encarregado de desenvolver o novo todo-terreno foi, mais uma vez, Erich Ledwinka.
Assim ele projetou o Haflinger, cujo nome fazia referência a uma raça de cavalos pequenos e musculosos típica da Áustria. O jipinho reunia vários dos conceitos básicos dos Tatra dos anos 1930: ali estavam o motor traseiro refrigerado a ar, o chassi tubular central e a suspensão independente nas quatro rodas, com semieixos oscilantes.
O motorzinho era o bicilíndrico do Steyr 500, mas com capacidade aumentada de 493 cm³ para 643 cm³. Suas versões mais potentes rendiam 27 cv, e a velocidade máxima não passava dos 75 km/h, na melhor das hipóteses - mas o que importava era a força para superar obstáculos.
O Haflinger tinha tração nas quatro rodas: do câmbio de cinco marchas, montado na traseira, saía um cardã para o eixo dianteiro. Três alavancas entre os bancos acionavam o 4x4 e possibilitavam bloquear os dois diferenciais individualmente.
Suspensão independente com molas helicoidais e semieixos
O curso de suspensão e leveza eram dois destaques do modelo
Em cada roda havia uma caixa de redução, como nos VW Kübelwagen da Segunda Guerra e nas antigas Kombis. Esse sistema de engrenagens permitia ainda que a ponta de cada semieixo ficasse acima do centro do cubo das rodas, aumentando o vão livre e o curso da suspensão, que tinha molas helicoidais. Por mais acidentada que fosse a trilha, os quatro pneus estavam quase sempre em contato com o chão.
Capota e portas de lona são a única proteção contra as intempéries
Chassi por tubo central e tração 4x4
A aposta era na leveza para que o Haflinger tivesse agilidade nas trilhas. A carroceria, digamos assim, se resumia a um painel frontal - dali para trás, o que havia era uma plataforma para os bancos e tudo o mais que fosse necessário transportar. De ponta a ponta, o veículo media 3,5 metros. Seu peso em ordem de marcha era de meros 700 quilos (100 kg menos que um Fusca), mas o pequeno 4x4 podia levar dois ou quatro soldados e meia tonelada de carga. No inverno, a proteção contra as intempéries era apenas uma capota de lona e painéis laterais desmontáveis. Os ângulos de ataque e saída eram excepcionais, enquanto o centro de gravidade baixo permitia passar por pistas com grande inclinação lateral.
Na Marinha Britânica o modelo era usado como trator de helicópteros
A rainha Elizabeth II a bordo de um Haflinger na Áustria (1969)
Produzido a partir de 1959, o pequeno Haflinger foi adotado não só pelas forças armadas da Áustria como também da Suíça, da Austrália e do antigo Zaire (hoje República Democrática do Congo). Na Marinha Real Britânica, o Haflinger era usado como trator para puxar aeronaves em porta-aviões - alguns estiveram na Guerra das Malvinas!
Em 1971, a Steyr-Daimler-Puch lançou o Pinzgauer, também projetado por Erich Ledwinka. Com motor dianteiro, porte bem maior, melhor desempenho no asfalto e a opção de tração 6x6, o novo modelo rapidamente ofuscou seu antecessor. Assim, a produção do pequenino Haflinger foi encerrada em 1975, após 16.647 unidades fabricadas.
Hoje, o jipinho austríaco é disputado por civis na Europa, onde um exemplar em bom estado está custando na faixa dos 20 mil euros. O que encontramos na China ainda está bem completo, mas com fortes marcas do abandono, exposto ao sol, à chuva e à maresia. O suporte da placa com o endereço eletrônico de uma seguradora austríaca indica que não faz muitos anos que o veículo foi importado da Europa - só não conseguimos descobrir se o jipinho chegou à China para puxar barcos na marina ou, simplesmente, como objeto de coleção. Fato é que não já tem os cuidados e a reverência que merecia por sua raridade e seu projeto tão genial.
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