No primeiro ano de novo normal após a pandemia, sem tantos problemas de logística e falta de componentes que provocaram queda de produção em 2021 e 2022, o mercado brasileiro de veículos leves seguiu travado em 2023. Desta vez o que faltou foram os consumidores de varejo, acuados por renda baixa, preços altos e juros nas alturas que inviabilizam os financiamentos. E todos os indicativos apontam para cenário parecido em 2024.
Segundo projeta a associação dos fabricantes, a Anfavea, 2023 deve fechar com o emplacamento de pouco mais de 2,1 milhões de automóveis e comerciais leves, o que resulta em crescimento de cerca de 10% sobre 2022.
Foi até muito. O ano foi salvo por compras crescentes de locadoras e pelo efêmero programa do governo, que durante dois meses, junho e julho, gastou R$ 800 milhões para patrocinar descontos de R$ 2 mil a R$ 8 mil para carros até R$ 120 mil. Não fossem estes dois fatores o crescimento do mercado em 2023 teria ficado abaixo dos 5%.
A Anfavea já divulgou, na semana passada, suas projeções para 2024: para o mercado de veículos leves espera por uma expansão tímida de 6,6%. Em se confirmando os 2,1 milhões de emplacamentos em 2023, significa que o incremento previsto será de 200 mil unidades, para o total de 2,3 milhões de emplacamentos de automóveis e comerciais leves.
Com exportações paradas em menos de 400 mil unidades e importações avançando – foram responsáveis por 16% do mercado em 2023 com 348,4 mil emplacamentos projetados – a Anfavea prevê a produção 2,3 milhões de veículos leves em 2024, com expansão de 3,3%, ou apenas a metade do desempenho previsto para o total de vendas domésticas no ano que vem.
Ou seja, a indústria automotiva no País entrará em seu quarto ano de estagnação, produzindo apenas a metade dos veículos que pode fabricar.
E como esta situação pode ser sustentável por mais tempo? Simples: focando na venda de produtos mais rentáveis. Assim é possível seguir produzindo e vendendo menos, mas lucrando mais por unidade vendida.
A pandemia e seus efeitos aprofundaram transformações que já vinham acontecendo no mercado automotivo nacional. Com preço médio de venda na casa dos R$ 140 mil – resultado da soma dos preços públicos dividida pelo número total de veículos vendidos – um carro zero-quilômetro virou um produto acessível exclusivamente para uma pequena parcela mais abastada da população.
Não à toa no intervalo de apenas cinco anos os SUVs, mais caros, avançaram de uma fatia de 20% para mais de 40% das vendas de carros no País, porcentual que pode se juntar com a participação de 18% das picapes, classificadas como comerciais leves, mas que em muitos casos fazem as vezes de SUVs e carros de passageiros.
Enquanto isso os hatches compactos, situados nas faixas de preços mais baixas, desceram dos mais de 40% de participação há alguns anos para menos de 25% agora.
Interessante notar que os hatches avançaram para mais de 28% das vendas em julho, justamente no auge do programa do governo que direcionou os maiores descontos para os modelos mais baratos. Esta variação demonstra que existe demanda de consumidores por veículos menos caros no País, mas eles pouco interessam à rentabilidade das montadoras, que limitaram bastante o desenvolvimento de produtos para faixas menores de preços.
Com os preços subindo ano a ano as vendas de varejo, da concessionária para o cliente, caíram à metade do que eram há dez anos, enquanto o faturamento direto da fábrica ao consumidor final se manteve em nível parecido e assim ganhou mais participação no resultado final. Hoje as vendas diretas representam quase metade, 48%, do mercado nacional de veículos leves.
As locadoras aumentaram sua fatia nas compras, nos últimos quatro anos a frota delas cresceu de 1 milhão para 1,5 milhão de veículos, em 2023 absorveram 27% das vendas de carros e comerciais leves, embaladas principalmente pela administração de frotas de empresas, locação para motoristas de aplicativos – resultado de desemprego e precarização crescente das relações de trabalho no País – e expansão das assinaturas de veículos, as locações por prazos mais longos de um a três anos.
Se as locadoras respondem por 55% das vendas diretas, os 45% restantes, cerca de 468 mil veículos este ano, são compras de varejo disfarçadas pelo faturamento direto da montadora. O mecanismo tem sido cada vez mais usado como alternativa para segurar os preços com os chamados descontos de fábrica, que livram os concessionários dos custos de carregamento de estoques pagos antes da efetivação da venda dos produtos.
A transformação do faturamento direto em venda de varejo é mais um sintoma da transformação do mercado causada pela alta dos preços acima da capacidade de compra de grande parte dos consumidores.
O único mecanismo para aliviar o peso dos preços altos seria o financiamento em suaves prestações, o que também não existe mais no País há uma década.
Apesar da queda da inflação os juros continuam excessivamente elevados: os planos de CDC, crédito direto ao consumidor, modalidade mais utilizada no financiamento de carros, chegaram a cobrar taxa média de 30% ao ano no fim de 2022, agora o custo baixou para 26% ao ano e a tendência é cair a 23% ao ano até o fim de 2024. Ou seja, está ficando mais barato mas continua muito caro financiar um veículo cada vez mais caro.
Enquanto este quadro não mudar o mercado brasileiro de veículos novos tende a ficar como está: pequeno, parado e muito caro para garantir rentabilidade com baixos volumes de produção.
Esta coluna fará uma parada técnica e volta a ser publicada no formato atual, a cada duas semanas, a partir da segunda quinzena de janeiro. Pela leitura e pela oportunidade, gostaria de agradecer aos leitores e aos veículos de informação que publicam o Observatório Automotivo, desejando a todos um ano novo feliz e repleto de realizações.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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