Ao que tudo indica este 2023 e o próximo 2024 serão o terceiro e quarto anos seguidos de baixo crescimento da indústria de veículos no Brasil, muito abaixo do necessário para sustentar o tamanho do setor. Trata-se de gigante que pode produzir mais de 4 milhões de unidades/ano, mas que vive em mercado anão que atualmente sustenta não muito mais do que a metade desta capacidade.
Somando vendas domésticas e exportações o volume parado na casa de 2,3 milhões de veículos produzidos este ano, e 2,4 milhões projetados para 2024, são insuficientes para tantos participantes: treze fabricantes que produzem dezoito marcas de automóveis e comerciais leves, com vinte fábricas de veículos e oito de motores, além de sete plantas de caminhões e seis de ônibus de sete montadoras focadas em veículos pesados.
A pergunta é: por quanto tempo mais a indústria com este tamanho consegue viver com volumes tão abaixo da capacidade instalada? A resposta é: depende de quem e como. Algumas empresas encontraram fórmulas para conviver com volumes menores e rentáveis, o que garante sobrevivência futura mesmo com produção reduzida, enquanto outras têm maior dificuldade para fechar essa equação e tendem a reduzir custos e operações, ou simplesmente desistir de produzir aqui – como já fez a Ford em 2021.
Mas a conclusão é que, em resumo, não há espaço suficiente para todos, o que leva a esperar por movimentos de consolidação, como fechamentos de fábricas ou redução do ritmo, com as inevitáveis demissões de pessoal.
Quem teve melhor leitura para entender as demandas do mercado e teve como garantir recursos para seguir investindo nos produtos mais rentáveis – mesmo em tempos bicudos de pandemia –, bem como conseguiu superar a falta de semicondutores em 2022 com maior competência, hoje está em melhor situação.
É o caso flagrante da Stellantis, que mesmo sem ocupar toda sua capacidade de produção no País vende muitos produtos rentáveis e com cinco marcas domina quase um terço das vendas de automóveis e comerciais leves no Brasil.
Pela Stellantis a Fiat abocanha sozinha 22% do mercado, quase sete pontos porcentuais à frente das concorrentes mais próximas: Volkswagen e GM, que vê se revezando na segunda e terceira colocações do ranking nacional, este ano quase empatadas com cerca de 15% de participação.
Com volumes menores mas competência parecida para investir em produtos rentáveis e tomar espaços vazios do mercado, Toyota e Hyundai não mostram crescimentos expressivos de vendas mas conseguiram manter suas fábricas no País produzindo mais próximas da capacidade máxima e da lucratividade. Estão respectivamente na quarta e quinta posições das marcas de veículos mais vendidas do País, com 9% e 8% de participação.
Já quem teve menos recursos para investir em produtos e perdeu muita produção por falta de semicondutores no ano passado está em pior situação. É o caso mais flagrante da GM que no intervalo de apenas três anos caiu da primeira para a terceira posição do ranking nacional de vendas – isto depois de descer ao sexto lugar, em alguns meses de 2022, quando precisou paralisar a fábrica de Gravataí, RS, por falta de componentes durante mais de quatro meses. Hoje a fabricante briga de perto pelo segundo posto com a Volkswagen.
Apesar do bom crescimento acima da média do mercado este ano, em torno de 15% sobre 2022, o impacto da baixa de rentabilidade do negócio combinado com excesso de capacidade da GM no País pode ser sentido sem anestesia na necessidade iminente de reduzir os custos da operação. É o que faz a emopresa com as recentes demissões de 1,2 mil empregados de três fábricas paulistas, segundo contabilizam os sindicatos.
Outro indicativo da decadência do negócio da GM no Brasil é a recente descoberta da jornalista Soraia Pedrozo, de AutoData, de que a empresa sequer se credenciou a utilizar os benefícios do programa IncentivAuto, negociado por ela mesma com o governo de São Paulo em 2019, que em troca de investimentos de R$ 10 bilhões nas unidades localizadas no Estado poderia obter descontos de 25% no ICMS aplicado sobre novos projetos de carros, caso do SUV Tracker com produção iniciada em 2020 e da picape nova Montana lançada no fim de 2022.
Como a empresa nem se credenciou ao programa que incentivou a criar – sob a ameaça, na época, de não investir mais nas fábricas paulistas – é justo deduzir que os investimentos anunciados também não tenham sido cumpridos integralmente.
Sem os incentivos restou à empresa aumentar os preços da sua linha de produtos, o que contribui para reduzir vendas, e tentar cortar custos com as demissões.
Embora aparentemente em melhor situação a Volkswagen também teve desempenho abaixo do necessário nos últimos anos para sustentar suas operações no País. Depois do lançamento do Nivus em 2020 – em plena pandemia mas já previsto antes dela – a empresa fez algumas renovações e lançou, em 2022, seu novo modelo de entrada, o Polo Track, que ainda não conseguiu ocupar totalmente o espeço deixado pelo ex-líder Gol.
A vantagem da Volkswagen foi ter feito cortes de custos ainda em 2020 e 2021 que recolocaram a empresa no caminho da rentabilidade. Ainda que às custas de perda de mercado, a reestruturação colocou o balanço no azul e permitiu a aprovação de novo plano de investimento de R$ 7 bilhões até 2026 para financiar novos produtos.
A situação melhor para uns do que para outros só comprova que o mercado brasileiro e da América do Sul é pequeno demais para uma indústria grande demais. Do ponto de vista global o setor automotivo brasileiro representa menos de 3% dos 84 milhões de veículos que devem ser produzidos no mundo em 2023.
Apesar da ociosidade das fábricas na casa dos 50% da capacidade total de 4 milhões de veículos/ano há mais gente chegando para adicionar algo em torno de 300 mil unidades/ano à produção potencial do País. Por falta de lugar melhor para ir, devido a barreiras tributárias e culturais impostas por países ricos, as chinesas GWM e BYD vieram tentar a sorte no Brasil e compraram plantas industriais, respectivamente, da Mercedes-Benz e da Ford, que desistiram de suas operações industriais aqui.
As duas chinesas prometem investir alguns bilhões de reais para produzir carros elétricos e híbridos, com toneladas de componentes importados das matrizes na China. É a chamada neoindustrialização que tarda a chegar ao parque nacional de fornecedores, este já chamado de gigante de pés de barro, que não para de pé com sua base quebradiça.
O fato é que está muito difícil voltar a crescer para acomodar todos os volumes e interesses dos numerosos fabricantes instalados aqui. Enquanto isso falta senso de urgência na proposição da nova política industrial brasileira, da qual muito se fala e pouco se coloca em prática.
É urgente salvar o pouco de indústria que resta no PIB, sob o risco de fechar fábricas, reduzir a produção e perpetuar o País como nação de segunda classe lastreada em commodities agrícolas e minerais, onde habita um desengonçado anão gigante industrial de pés de barro.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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