Tem sido quase unânime ouvir de executivos e engenheiros da indústria automotiva que o Brasil não precisa correr atrás da eletrificação de seus veículos, porque é o país com a mais confortável e privilegiada condição de reduzir rapidamente emissões de gases de efeito estufa de sua frota de veículos simplesmente fazendo o que já faz há mais de quarenta anos: usando o etanol.
Esta é, no entanto, uma meia verdade. A metade verdadeira do raciocínio é que, de fato, o biocombustível é uma alternativa eficaz, viável e muito mais barata do que a eletrificação para descarbonizar as emissões dos veículos, porque o etanol amplamente conhecido, produzido e distribuído por aqui é quase neutro em CO2, de 80% a 90% de suas emissões podem ser reabsorvidas pelas plantações de sua principal matéria-prima, a cana-de-açúcar.
A parte dessa história que falta com a verdade é que para ser uma solução efetiva o etanol precisa, de fato, ser utilizado em todo seu potencial, coisa que hoje não acontece. Isso porque o biocombustível representa apenas 45% do consumo de combustíveis da frota estimada de 34 milhões de veículos flex em circulação no País – e seria bem menos que isso se não fosse obrigatória a mistura de 27% de etanol anidro na gasolina consumida no Brasil.
Segundo dados da ANP, Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis, em 2021 foram consumidos no Brasil 17 bilhões de litros de etanol hidratado, o E100, e mais que o dobro disso, 39,3 bilhões de litros, de gasolina C, que tem 27% de etanol anidro, o equivalente a cerca de 10,5 bilhões de litros. Ou seja: a opção preferencial por aqui segue sendo o combustível fóssil, ainda que seja o alcoolizado E27.
Hoje 82% dos carros vendidos no País têm motorização flex e, desde 2003, as vendas destes modelos já somam quase 40 milhões de automóveis e comerciais leves, o que criou a frota circulante atual em torno de 34 milhões de veículos que rodam com etanol ou gasolina em qualquer proporção de mistura. Apesar disto a maioria destes carros só queima gasolina C E27 em seus motores porque o preço do etanol não é financeiramente compensador na esmagadora maioria dos estados brasileiros.
Como o etanol tem consumo, em média, 30% maior do que um veículo similar a gasolina, para ser competitivo o biocombustível precisa custar, no máximo, 70% do preço do combustível fóssil. Atualmente isso ocorre em poucos estados.
Segundo o acompanhamento semanal da ANP, do dia 9 ao 15 de outubro, em 1.690 postos espalhados pelo País, o preço médio do etanol hidratado ficou acima de 70% do valor da gasolina em 22 dos 25 estados pesquisados, sendo que em dez superou 80% e em quatro passou de 90%. A situação mais bizarra ocorreu no Rio Grande do Sul, onde o litro do etanol custava 98,3%, ou quase o mesmo, que a gasolina C comum.
No período apenas Goiás (67,4%), Mato Grosso (62,2%) e Paraíba (68,9%) tinha postos que vendem etanol abaixo de 70% do valor da gasolina, enquanto São Paulo (71%), Distrito Federal (70,8%) e Bahia (70,5%) ficaram mais próximos do limite de competitividade do etanol hidratado.
Para dizer o mínimo é uma situação contraditória: enquanto o biocombustível brasileiro recebe efusivos elogios por ser uma solução viável para a descarbonização, está pronto para ser usado para isso sem necessidade de qualquer grande mudança tecnológica nos carros, é amplamente distribuído e está acessível em todo o País, na prática o etanol é simplesmente desqualificado pela exótica política econômica e tributária brasileira, que em vez de estimular o uso de etanol isenta de impostos carros elétricos e híbridos importados e extremamente caros.
Enquanto consumidores brasileiros pagam caro para encher o tanque de seus carros com o combustível mais inadequado para o meio ambiente, a gasolina, alguns afortunados pagam centenas de milhares de reais para importar elétricos, que têm quase nenhum impacto ambiental positivo mas são isentos ou pagam alíquotas muito baixas de imposto de importação, não geram empregos no País nem arrecadação tributária.
Se quiser, de fato, que o etanol seja uma solução descarbonizante do transporte o País precisa, antes de mais nada, tomar esse rumo com mais assertividade, criando estímulos reais para aumentar o uso do biocombustível que hoje tem praticamente a mesma carga tributária da gasolina, sem vantagem competitiva.
Para tornar o etanol uma solução viável de fato ao menos quatro pilares deveriam ser construídos:
Em face de sua eficiência ambiental o etanol merece até mais incentivos do que a eletrificação, os números comprovam isso. Segundo cálculos da Unica, União da Indústria da Cana, considerando o ciclo completo do poço à roda – inclui o plantio e colheita da cana, seu processamento, transporte e distribuição, além do uso nos carros –, um veículo alimentado exclusivamente com a gasolina brasileira, com 27% de etanol anidro, emite 131 gramas de CO2 por quilômetro, contra apenas 37 g CO2/km quando abastecido integralmente com o etanol hidratado de cana.
Este valor é menor do que um modelo a elétrico a bateria na Europa, que alimentado pela matriz energética atual da região emite 54 g CO2/km – e emitiria 35 g CO2/km se usasse a energia mais limpa gerada no Brasil, 64% a partir de hidrelétricas. O híbrido flex, como o Toyota Corolla já produzido no País desde 2019, apresenta a melhor relação de eficiência: abastecido só com etanol tem emissão de 29 g CO2/km.
O etanol não é perfeito, tem problemas a resolver nas questões de abastecimento, preço, eficiência e emissões e poluentes como aldeídos e ozônio. Mas a eletrificação também enfrenta problemas parecidos. Nesta situação, portanto, o mais eficiente é estimular o que já está à mão, o biocombustível, ao mesmo tempo em que se busca combinar os benefícios de tecnologias, como nos diversos projetos de veículos híbridos flex que já estão em desenvolvimento no País e devem começar a ser lançados a partir de 2023 ou 2024.
Não se trata de desistir de desenvolver veículos puramente elétricos no País, mas de escolher e estimular prioridades viáveis ao País, sem desistir de nenhuma tecnologia. Muito pelo contrário, é preciso avançar no desenvolvimento de motores flex mais eficientes tanto quanto na eletrificação, com incentivos à engenharia e produção local – o que não vai acontecer enquanto carros elétricos importados forem isentos de impostos.
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