Rio de Janeiro, 1973. O Motoradio três faixas (todo silício) sintonizado na Rádio Mundial AM alternava entre "O vira", dos Secos e Molhados, e "Killing me softly", na voz de Roberta Flack. Roupas coloridas, calças boca de sino e cabelos longos eram a moda. No showroom da concessionária Rodasa, no bairro do Flamengo, havia Fusca, Fuscão, Variant, TL e... um Kübelwagen!
Mas o que aquele anacrônico combatente do exército alemão fazia em meio a seus descendentes brasileiros novinhos em folha? Pesquisando daqui e dali descobrimos as surpreendentes aventuras de um carro que percorreu muitos quilômetros desde os tempos da Segunda Guerra Mundial.
Kübelwagen, para quem não sabe, era um veículo militar leve projetado por Ferdinand Porsche e construído pela Volkswagen durante a guerra. Equivalente alemão do Jeep Willys MB, o VW Type 82 Kübelwagen teve nada menos que 37 mil exemplares produzidos entre 1940 e 1945. Baseado em componentes mecânicos do Fusca, era muito ágil no fora de estrada mesmo tendo tração apenas nas rodas traseiras.
Pois bem: nossa história começa em 18 de abril de 1944, quando o Kübelwagen chassi 2-043189 deixou a linha de produção em Wolfsburg (ou Stadt des KdF-Wagens bei Fallersleben, como o governo nazista chamava na época). Sua pintura "dunkelgelb" - tom de amarelo escuro, meio ocre, usado nos veículos militares alemães - nem teve tempo de secar direito: no dia seguinte, o Kübel foi levado à central de suprimentos do exército alemão em Kassel, a uns 200 quilômetros dali.
Posto à disposição das tropas do marechal-de-campo Gerd von Rundstedt, o Kübelwagen de nossa história participou de importantes combates na Frente Ocidental entre junho e dezembro de 1944, como a Operação Market Garden, nos Países Baixos, e a Batalha das Ardenas, na Bélgica. Mas a guerra já se delineava a favor dos Aliados e as divisões da Wehrmacht tiveram que recuar em direção à Alemanha, abandonando muitos de seus equipamentos em território belga.
A essa altura, o Kübelwagen chassi 2-043189 já era uma carcaça amarrotada e toda perfurada por projéteis. Recolhido por um ferro-velho, parecia ter chegado ao fim de sua existência.
O lixo de uns é o luxo de outros. Um americano residente na cidade belga de Hamoir, bem na fronteira com a Alemanha, comprou o que restava do Kübel, bem como as carcaças de dois Schwimmwagen Type 166, o VW anfíbio da Segunda Guerra. E, assim, as detonadas viaturas militares alemãs conseguiram chegar à segunda metade da década de 1960. A essa altura, o clima cinzento dos tempos da guerra já havia dado lugar a uma ensolarada sensação de liberdade.
Foi com ânsia de conhecer o mundo que um jovem belga chamado Christian Stein comprou o combalido Kübelwagen. O motor boxer, refrigerado a ar, de 1.131 cm³ e 25cv, foi substituído por um de VW 1200, mais potente com seus 36 cv. Os freios mecânicos deram lugar a outros com acionamento hidráulico, mais eficientes. A parte elétrica foi refeita e o Kübel ganhou um painel mais completo.
Os rústicos bancos originais deram lugar a assentos de Fusca, bem mais confortáveis. Um para-choque "tipo safári" foi providenciado e, após ter seus buracos remendados, a carroceria foi pintada de branco. Junto, vieram os primeiros adesivos e mensagens dos amigos, pintadas a pincel.
De soldado, nosso Kübel foi promovido a viajante, ganhando a missão de percorrer as três Américas. Rebatizado de Fridoline - nome feminino com aura germânica - o todo-terreno veterano de guerra foi levado de navio até Montreal, no Canadá, onde começou sua excursão por terra, sob um frio glacial, em março de 1971.
Inicialmente, Christian estava acompanhado de sua namorada Christiane Danze. A bordo do Kübel, visitaram Nova York e fizeram um costa a costa até a Califórnia. Ainda nos Estados Unidos, enquanto trabalhava numa fazenda, o casal teve todos os pertences e documentos roubados. Pôde recuperar apenas o dinheiro que estava em traveller's cheques e algo que estava no seguro.
No México, a suspensão dianteira original pediu arrego e foi trocada por uma de Fusca, mais baixa. A namorada também não aguentou tanta aventura, pediu a separação e voltou para a Europa. Sozinho ou levando caronas, Christian continuou no rumo Sul: Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru... A cada país, o Kübel velho de guerra ganhava como medalha uma nova bandeirinha colada em sua lataria.
A barra mais pesada de todo o percurso foi ficar atolado num deserto na Bolívia. Christian teve que caminhar por cinco dias até encontrar ajuda para tirar Fridoline do perrengue. O primeiro povoado ficava a 150 km e o viajante teve muita sorte ao encontrar um missionário belga com um caminhão.
Sem dinheiro, Christian precisou ficar algum tempo em Santiago do Chile lecionando História da Arte. Lá conheceu a romena Catherine, com quem se casou. A viagem prosseguiu pela Argentina até a Ushuaia e, em junho de 1973, os aventureiros entraram no Brasil via Foz do Iguaçu.
O Kübel era um verdadeiro relações públicas, abrindo portas. A Volkswagen recebeu os viajantes muito bem em São Bernardo do Campo, fazendo uma revisão completa em Fridoline. A bordo do Kübelwagen, Christian e Catherine chegaram a participar de um rali para carros da marca.
Em sua viagem, o Kübelwagen pegou muita chuva, neve, neblina e calor. Quando chegou ao Rio de Janeiro, já havia percorrido 85 mil quilômetros pelas Américas - sempre que possível, por estradas secundárias - e continuava firme. Virou atração na concessionária Rodasa por uns tempos, até ser embarcado em um navio de volta à Bélgica.
Após retornar para casa, Christian montou uma agência especializada em viagens para a América do Sul. Já o Kübelwagen ficou meio encostado em um galpão até a morte de seu dono, em 1996. No ano seguinte, Fridoline foi arrematado por Jean-François Noirhomme, que desde criança tinha como hobby buscar e colecionar todo tipo de relíquias da Batalha das Ardenas. Uma espécie de arqueologia de guerra, em que, muitas vezes, os objetos são desenterrados de antigas trincheiras.
O Kübelwagen, que na época do leilão ainda trazia todas as características e cicatrizes de sua aventura pelas Américas, foi totalmente restaurado e retomou sua aparência dos tempos da Segunda Guerra. Foram providenciados motor, suspensão, bancos e painel originais do Type 82 e, em 2002, o serviço ficou pronto. Todos os desenhos e adesivos da época da longa viagem, contudo, foram retirados ("Um grande erro de minha parte", lamenta hoje Noirhomme).
Pelos 12 anos seguintes, o Kübel foi usado principalmente para ir a eventos ligados à Segunda Guerra. Até que, em 2014, auxiliado pela esposa e alguns amigos, Noirhomme inaugurou na cidadezinha belga de Joubiéval o Bulge Relics Museum, um museu de objetos que lembram a Batalha das Ardenas. Trata-se de um casarão de pedras repleto de documentos, fotos, armas, equipamentos militares e utensílios usados por soldados dos dois lados do campo de batalha.
E é lá que hoje, depois de tantas peripécias, Fridoline está sobre cavaletes, dentro de uma vitrine, qual borboleta presa por alfinetes em uma caixa de vidro.
RECOMENDADO PARA VOCÊ
VW revela novo Tiguan 2025 nos EUA e adianta SUV que pode vir ao Brasil
Reino Unido: Kia Sportage cada vez mais próximo da liderança anual
Pablo Di Si, CEO da VW América do Norte, deixa o cargo de repente
Fiat Mobi alcança 600 mil unidades produzidas em quase 9 anos de mercado
México rejeita Amarok da Argentina e terá nova geração global da picape
Quer apostar? Híbridos vão depreciar mais que elétricos daqui a 10 anos
Volkswagen comemora os 65 anos de seu complexo industrial na Via Anchieta