Não faz muito tempo, o Uruguai era um museu rodante. Nas ruas, conviviam veículos de diferentes origens e gerações: americanos dos anos 20 e 30, ingleses das décadas de 40 e 50 e brasileiros dos 80 e 90, além de sul-coreanos, indianos e chineses mais recentes. Tudo em perfeita harmonia, no tranquilo ritmo local. E mais: qualquer ferro-velho uruguaio (desarmadero) era uma Disneylândia para apaixonados por carros antigos.
De uns 15 anos para cá, contudo, houve uma grande renovação da frota e os velhinhos praticamente sumiram das ruas. Em seu lugar, o que se vê são montes de Hyundai HB20 (o carro mais vendido no país), Renault Kwid, Chevrolet Onix (novos e antigos), o ultrapopular indiano Suzuki Alto e, por toda parte, VW Up! - além de picapes Renault Oroch e Fiat Strada, que fazem muito sucesso no mercado local.
Se antes ninguém dava bola para os clássicos em ação nas ruas de Montevidéu, hoje a presença de modelos das décadas de 60 para baixo começa a chamar a atenção. E mesmo os ferros-velhos uruguaios estão sendo ocupados por modelos dos anos 80 para cá. A dose de ferrugem na veia já não está disponível em qualquer beira de estrada e atualmente exige certa procura e algum conhecimento.
Foi com grande alegria que encontramos na Ruta 9 (que vai do Chuy a Montevidéu), bem no cruzamento para San Carlos e Maldonado, uma espécie de ferro-velho/museu/campo santo para automóveis. Já havíamos passado por ali mas o portão estava sempre fechado. Desta vez, contudo, resolvemos arriscar.
Por sorte, diante do portão trancado estava Enrique Bazterrica em seu impecável Citroën XM. Papo vai, papo vem, descobrimos amizades em comum e logo nos tornamos amigos de infância. Bazterrica, que vem a ser o maior colecionador de Citroën da Argentina, precisava comprar algumas peças para seus Traction Avant e aguardava a chegada do dono do ferro-velho. Após meia hora de espera, quem apareceu foram os filhos do dono do desarmadero. Abriram-se as portas da esperança para o colecionador argentino e aproveitamos para pegar uma carona na visita.
Mesmo acostumados à fartura dos ferros-velhos de antes, não imaginávamos encontrar tantas raridades e tamanha variedade. Entre os carros de passeio, modelos ingleses são figurinhas fáceis. Austin, Morris, Hillman, Ford Prefect... Todos fabricados logo após a Segunda Guerra, quando a Europa lutava para sobreviver e exportava automóveis em troca da carne uruguaia.
É claro que há muitas "cachilas" Ford Modelo A (1928-1931) por ali - algumas, inclusive, sendo restauradas. São um ícone do Uruguai. Mas não esperávamos surpresas como um Fiat 850 Coupé Vignale - carro fora de série italiano dos anos 60. Ainda bem completo, poderia retomar seu brilho original sem muita dificuldade. Logo ao lado, outro choque: um Renault 6CV dos anos 1920, daqueles de nariz bicudo.
Para quem curte americanos, destacamos um raro DeSoto 1942, com seus faróis escamoteáveis, um Chevrolet 56 Hardtop Sedan, fácil de fazer, e um Galaxie 500 de duas portas, ano 1965.
E o que dizer de um par (sim, um par: conversível e "saloon") de Triumph Herald, carrinho inglês desenhado no fim da década de 50 por Giovanni Michelotti - o mesmo designer de tantas carrocerias de Ferrari, Lancia, Maserati, do Alpine A110 e até do BMW 2002. Falando em pares, vimos também os escombros de dois ônibus ingleses AEC/Aclo - aqueles que foram apelidados de Camões no Brasil dos anos 50. Nada é barato, mas a visita é de encher os olhos.
O Uruguai foi um país muito rico até os anos 50, quando era o principal exportador de carne e lã do mundo - um período de grande importação de automóveis. Depois da década de 60, vieram crises econômicas, o golpe militar e o êxodo. Além disso, o país nunca fabricou carros em larga escala (houve pequenos fabricantes, como a Nordex, e linhas de montagem). Tudo desestimulava a compra de veículos novos.
Os desarmaderos (ferros-velhos) uruguaios eram uma cornucópia de peças para os donos de carros antigos. Esses depósitos garantiam a sobrevivência das cachilas, nome local para calhambeques.
Um detalhe curioso é que, até 1946, o Uruguai adotava a mão inglesa. Assim, volta e meia ainda se veem nos ferros-velhos carros - mesmo americanos - com volante no lado direito. Hoje, a maioria dos automóveis e picapes dos anos 50 que sobrevivem no uso diário já tem um motor a diesel adaptado.
Quem gosta desse tipo de safári, deve ficar atento aos quintais. Automóveis que deixam de rodar, por absoluta falta de condições, continuam por anos nos fundos das casas, à espera de uma ressurreição. O milagre, por vezes, vem na forma de exportações: comerciantes locais compram carros antigos e os revendem a colecionadores de outros países. O que havia de mais valioso já foi para a Europa e outros tantos vieram parar no Brasil.
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