Segunda Guerra Mundial, norte da Itália. Um Jeep usado pela Força Expedicionária Brasileira desliza de banda, que nem caranguejo, barranco abaixo. Um monte de lama vai se acumulando numa das laterais do veículo, e fica tão grande que acaba detendo a descontrolada descida.
O motorista então engata uma marcha reduzida, acelera e o carro sai do atoleiro, como se nada tivesse acontecido. Testemunhando tudo estava o soldado Oswaldo Gudole Aranha, o Vavau. "Percebi ali que o Jeep tinha um equilíbrio e uma mobilidade fora do comum. Era meio mágico", contou Vavau, em entrevista concedida em julho de 2003, um mês antes de sua morte.
Em março de 1947, o primeiro lote do Jeep para uso civil chegou ao porto do Rio, e Vavau era um dos responsáveis pela importação. Imediatamente após o desembarque do carregamento inicial (com 195 exemplares), outro (com mais 105 Jeeps) zarpou do porto de Nova York. No fim daquele mesmo ano, o valente veículo norte-americano começaria a ser parcialmente montado por aqui. Era o começo de uma revolução 4x4.
Alguns Jeep já haviam sido trazidos para o Brasil a partir de 1942. Eram usados pelo exército em diversas tarefas da caserna e também na preparação dos pracinhas a caminho da Itália. Alguns eram dos modelos iniciais (antes da produção padronizada) como os Bantam BRC-40 e Ford GP e chegaram aqui depois de terem sido descartados pelas forças militares dos Estados Unidos. Mas só na guerra os brasileiros descobririam o real valor do veículo.
"O Jeep era facílimo de dirigir. Uma vez, tivemos que atravessar uma ponte que estava sendo alvejada por morteiros alemães. Era acelerar e num instante estávamos do outro lado. Ficou a impressão de que sem ele não teríamos ganhado a guerra", lembrou Vavau.
Enquanto a 148ª divisão alemã era pouco motorizada, usando ainda muitas carroças, os aliados faziam tudo mais rapidamente graças aos Jeep padronizados feitos pela Willys (MB) e pela Ford (GPW). Cada bateria tinha um monte deles.
"Os Jeep eram de todos e não eram de ninguém. Precisava de um transporte para qualquer serviço? Bastava pegar um. Já no lado alemão, carros eram só para transportar oficiais" afirmou o ex-combatente, que desdenhava dos Kübelwagen usados pelas tropas nazistas.
No retorno dos pracinhas ao Brasil, houve desfiles pela Avenida Rio Branco e Vavau foi escalado para dirigir um Jeep. Era um sinal do que viria pela frente. O jovem soldado era filho de ninguém menos que Oswaldo Aranha, que fora três vezes ministro (da Justiça, da Fazenda e das Relações Exteriores) no primeiro governo de Getúlio Vargas.
"Disse ao meu pai que quem vendesse Jeep no Brasil teria um sucesso excepcional, e que deveríamos tentar conseguir uma representação da Willys", relatou o visionário.
Aranha pai havia comprado recentemente uma pequena firma chamada Gastal & Cia. Ltda., que produzia de kits de gasogênio para automóveis a arquivos de aço para escritórios. A empresa também trazia dos EUA produtos como o antiferrugem Rozene e o inseticida Airosol. Seria o ponto de partida para o negócio de importação de Jeep. A marca “Gastal” , sobrenome da esposa do antigo proprietário da empresa, Mario Requião, foi mantida mas as mudanças não tardariam a acontecer.
"Como meu pai era concessionário era concessionário Chevrolet no Estado do Rio, e vendia uns dois ou três carros a cada trimestre, os Aranha acharam que eu entendia de automóveis e me chamaram para o negócio", contou Hugo Di Biase (que era colega de Euclydes Aranha, o irmão de Vavau), numa entrevista em 2003.
O primeiro Jeep civil, um CJ-2A, chegou em março de 1947. Veio praticamente pronto dentro de um caixote e só foi preciso soldar parte dos suportes dos bancos. "Mesmo assim foram dois dias para conseguir fazer o serviço direito. Naquela época era tudo mais complicado: para conseguir uma ligação de telefone para os EUA era preciso esperar até três dias", disse Vavau.
Uma loja na Avenida Presidente Antonio Carlos, no Centro do Rio, foi alugada para apresentar a novidade ao público: a parte dianteira do Jeep foi levantada para que todos pudessem ver que o veículo tinha dois diferenciais – e, portanto, tração nas quatro rodas. Juntou gente curiosa e vieram as primeiras encomendas.
Um galpão que pertencia a um laranjal em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, foi providenciado para abrigar as novas remessas da americana Willys. Era uma prévia da mudança do Brasil agrícola para o Brasil industrial, que se consolidaria na década seguinte. Fabricados em Toledo, Ohio, os carros chegavam ao porto do Rio semidesmontados e dentro de caixotes. Daí eram postos em vagões de trem e levados para a “linha de montagem” da Gastal. A linha férrea para Nova Iguaçu tinha um desvio que ia até o antigo laranjal.
"Os vagões com os carros desmontados eram deixados nesse desvio. Botávamos um Jeep pronto ao lado dos trilhos, amarrávamos umas correntes nele e puxávamos os vagões até o galpão", contou Di Biase.
Daí, os Jeep eram retirados dos caixotes enfileirados e começava o trabalho, feito por dez ou quinze funcionários (o número de funcionários dependia da época). O aspecto era de uma pequena linha de montagem: as rodas e pneus eram postas no lugar, assim como as armações dos bancos e a capota. Com o tempo, os veículos vinham cada vez mais desmontados em embalagens cada vez menores. Os últimos caixotes tinham apenas 90 centímetros de altura e o comprimento justo do Jeep.
"A madeira desses caixotes era de boa qualidade e disputada por moradores da área, em busca de material para construir barracos", recordou-se Di Biase na entrevista.
Quase sempre pintados de “cinza-verde” (picket gray), os bravos CJ-2A eram vendidos aqui em quatro opções de equipamentos: os modelos A, B, C e D. Os primeiros eram os mais “pelados” e vinham apenas com os bancos dianteiros. O modelo B tinha um regulador de velocidade, que permitia andar a uma velocidade constante sem que fosse preciso manter o pé sobre o pedal do acelerador. Já os mais completos traziam implementos agrícolas (como, por exemplo, o arado) e um contrapeso de ferro, com 120 quilos, montado atrás do pára-choque dianteiro. Era uma forma de fazer o jipe trabalhar como trator e manter as quatro rodas no chão.
Depois de prontos, os veículos eram postos em um trem e desembarcados no centro do Rio (então Distrito Federal). Como as importações de automóveis novos estavam interrompidas desde a entrada do Brasil na guerra, havia grande demanda para tudo que se movesse sobre quatro rodas. Um veículo confiável como o Jeep era sucesso na certa – tanto no campo quanto nas cidades - e as encomendas se multiplicaram. "Os primeiros chegaram aqui por 36 mil cruzeiros, o equivalente a 2/3 do preço de um Ford ou Chevrolet, os carros americanos mais baratos da época", disse Vavau.
Considerado implemento agrícola, o Jeep Universal, como era chamado nos anúncios, tinha preço tabelado pelo governo e uma fila de espera que chegou a ter 3 mil interessados. "Como a gente não cobrava depósito, muita gente botava o nome na lista e desistia depois. Mas é certo que nunca tivemos Jeep para pronta-entrega. Os clientes esperavam pelo menos seis ou sete meses para pegar os carros", estimou Di Biase.
Com tamanha procura, é claro que havia os aproveitadores, que pegavam o Jeep e revendiam na primeira esquina, com lucros maiores que os da Gastal. Os negócios prosperavam, apesar de imposições quase cômicas da autoridades. Certa vez, um processo de importação foi indeferido, porque a autoridade de plantão disse que o Jeep era um mal terrível para o Brasil. "O sujeito argumentou que o brasileiro é muito descansado e, como o Jeep não precisava de estradas, nunca teríamos rodovias no país", divertia-se Vavau.
Em meados dos anos 50, a família Aranha se tornaria uma das principais acionistas da Willys-Overland do Brasil, tendo importante papel na implantação da fábrica do Jeep em São Bernardo do Campo, São Paulo (a mesma que foi fechada pela Ford em 2019). É curioso pensar que tudo isso começou com a visão de um pracinha.
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