Diante das variadas barreiras que inviabilizam a adoção de grandes volumes de veículos eletrificados no Brasil, o etanol combustível usado em larga escala por aqui há mais de 40 anos voltou a ganhar destaque como caminho rápido e eficiente para descarbonizar a matriz energética veicular brasileira.
Contudo, o biocombustível de cana-de-açúcar não é isento de problemas – assim como as baterias elétricas também não são – e não pode ser encarado como solução pronta nem única, deve evoluir em sua eficiência e ser combinado com a eletrificação; caso contrário, o País corre o risco de se transformar em uma ilha à margem da evolução tecnológica global da indústria automotiva.
É nefasta a ideia de que o Brasil não precisa de carros elétricos porque já tem o etanol. Essa narrativa é alimentada pelo balanço quase neutro de emissões de gases de efeito estufa do biocombustível no ciclo “do poço à roda” – considerando desde o plantio da cana, passando pela produção e distribuição até a queima no motor, com reabsorção de mais de 90% do CO2 emitido pelas próprias plantações de cana. No entanto, há pelo menos três fatores que tornam essa solução, sozinha, imperfeita:
• BAIXO USO – É fato que o etanol tem farta distribuição no País e pode ser usado por 92% da frota circulante de 45 milhões de veículos leves com motor ciclo otto, que saíram de fábrica com tecnologia flex, bicombustível, usam gasolina ou álcool em qualquer proporção. Porém, menos da metade desse contingente usa somente o biocombustível de cana, porque ele é menos eficiente do que a gasolina (consome em média 30% mais por quilômetro rodado) e o preço não compensa na maioria dos estados brasileiros.
Os números de consumo comprovam essa subutilização: em 2019, antes dos efeitos da pandemia, automóveis e utilitários leves consumiram quase 61 bilhões de litros de combustível e o etanol hidratado (sem considerar os 27% de mistura obrigatória na gasolina) representou apenas 22,5 bilhões de litros, 37% do total.
Ou seja, o País hoje está longe de usar todo o potencial do álcool para reduzir emissões de CO2 porque a maioria dos motoristas prefere usar gasolina, o que na prática reduz drasticamente o resultado ambiental da tecnologia flex.
• POLUENTES – O etanol não pode ser considerado um combustível “limpo” só porque tem balanço quase zero de emissões de CO2. Ainda que em proporções pouco menores do que os combustíveis fósseis, a queima de biocombustível também emite poluentes atmosféricos nocivos à saúde e ao meio ambiente. Além dos gases tóxicos já conhecidos da combustão da gasolina como monóxido de carbono (CO), óxidos de nitrogênio (NOx) e hidrocarbonetos (HC), o etanol tem mais aldeídos e é responsável por mais de 70% das emissões desse elemento potencialmente carcinogênico.
Outro problema do etanol é que suas emissões de hidrocarbonetos NMOG (na sigla em inglês, gases orgânicos não-metano) e NOx têm maior potencial para favorecer a formação de ozônio (O3), gás que na atmosfera respirável envelhece os tecidos pulmonares e causa doenças respiratórias como rinite, sinusite e pneumonia.
Com isso, o biocombustível fica prejudicado nas próximas etapas da legislação brasileira de emissões de para veículos leves, que impõe limites bastante apertados para conter a formação de O3. O Proconve L7, que entra em vigor a partir de 2022, estabelece o máximo de 80 mg/km de NMOG+NOx, enquanto o L8 que começa a vigorar em 2025 baixa o limite para 50 mg/km nos primeiros dois anos, depois para 40 mg/km até 2028 e 30 mg/km de 2029 em diante. Especialistas dizem que com as tecnologias atuais o etanol não atende essas restrições.
• RISCO DE DESABASTECIMENTO – A produção nacional de cerca de 32 bilhões de litros de etanol por ano (incluindo hidratado e etanol) é insuficiente para alimentar toda a frota circulante de 41 milhões de veículos flex, que em 2019 consumiu 60,7 bilhões de litros de combustível (somando gasolina E27 e etanol) e 55 bilhões de litros em 2020. Ou seja, se todos os carros bicombustível passassem a usar E100, não haveria combustível suficiente.
Em estudo recente encomendado pela associação dos fabricantes de veículos, a Anfavea, o Boston Consulting Group (BCG) estima que mesmo em um cenário de estímulo ao uso maior de biocombustíveis no País, o etanol ainda estaria longe de dominar o abastecimento de veículos ciclo otto, mas elevaria sua participação no consumo de dos atuais 37% para 61% em 2035.
Segundo calcula o BCG, isso obrigaria as usinas a produzir 18 bilhões de litros de álcool combustível adicionais aos 32 bilhões destilados em 2019, o que implicaria em investimentos de R$ 50 bilhões em 15 anos. Levando em consideração que ninguém fará investimentos tão altos sem a certeza do aumento da demanda, é provável que haverá desabastecimento até que a produção seja de fato aumentada.
Também é preciso considerar no balanço de oferta e procura que biocombustíveis dependem de condições climáticas favoráveis às plantações; uma seca – como é o caso na safra deste ano – pode reduzir sensivelmente a produtividade da cana. Outro fator é que os usineiros produzem mais açúcar do que etanol quando as cotações internacionais favorecem esse balanço. Em ambos os casos, o resultado é o desabastecimento doméstico do agrocombustível, elevação de preços e perda de credibilidade dos consumidores.
Embora nenhum dos fatores acima torne inviável o maior e necessário uso do etanol no Brasil, é inegável que o próprio biocombustível e os motores flex têm muito a evoluir para que de fato sejam uma solução assertiva para baixar a pegada de carbono dos veículos. Ao mesmo tempo, essa evolução não pode e não deve inviabilizar a marcha para a eletrificação do powertrain. A combinação dessas duas vertentes tecnológicas pode garantir protagonismo ao País no desenvolvimento do futuro da mobilidade.
Pelo lado do combustível, é necessário elevar o poder calorífico do etanol hidratado, que tem este nome porque sai da usina com 7% de água em sua composição. A redução desse índice para 2% não impactaria tanto o custo de produção e, em tese, reduziria o consumo e a diferença de eficiência para a gasolina. Por si só, essa medida iria melhorar a reputação do álcool junto ao consumidor e provavelmente aumentaria a demanda, além de ao mesmo tempo reduzir as emissões de CO2 e poluentes pela simples diminuição no consumo por quilômetro rodado.
Pelo lado dos motores flex, a tecnologia precisa evoluir para reduzir o consumo. Os propulsores bicombustível etanol-gasolina são “gastões” porque não trabalham com máxima eficiência para poder funcionar “na média” com os dois combustíveis em qualquer proporção de mistura.
Uma solução seria desenvolver um motor E100 de alta eficiência, mas isso esbarra na questão do risco de desabastecimento de etanol, na falta de confiança do consumidor e o fato de ser uma opção local, que hoje só poderia ser utilizada no Brasil, perdendo a força da globalização tecnológica. Esse projeto começou a ser desenvolvido há cerca de três anos pela FCA, hoje Grupo Stellantis, mas foi engavetado pelos motivos apontados acima.
Também é obrigatório colocar a eletrificação no horizonte, até porque sem ela dificilmente os fabricantes de veículos vão conseguir acompanhar a evolução da legislação de emissões, que mesmo no Brasil promete limites cada vez mais apertados até o fim desta década. As emissões medidas pelo Proconve L8, a partir de 2025, serão corporativas – a média formada por todos os veículos vendidos por cada fabricante –, assim é provável que algumas montadoras passem a vender mais carros elétricos no País para reduzir a média da empresa.
Nesse sentido, a combinação de motores flex de alta eficiência com elétricos em powertrain híbrido parece ser uma solução apropriada – como já faz a Toyota por aqui desde 2019 e deverão fazer também Volkswagen e Stellantis nos próximos anos. Contudo, novamente se esbarra na questão da possibilidade de usar etanol ou gasolina, reduzindo o benefício ambiental se a opção for pelo combustível fóssil.
Um campo de pesquisa que tornaria o Brasil protagonista na descarbonização da matriz energética veicular é no uso de hidrogênio para geração de energia elétrica por meio de células de combustível, uma espécie de gerador eletroquímico que só emite vapor d’água e pode ser incorporado a um carro elétrico ou ser usado como recarregador estacionário para baterias. O etanol é o segundo combustível mais fácil de se extrair hidrogênio por meio de um reator químico – o primeiro é o metanol, que é venenoso –, com emissões muito baixas de CO2, menores que um motor a combustão a etanol, e que são integralmente reabsorvidos pelas plantações de cana.
Já existem iniciativas em andamento para usar o etanol em veículos elétricos com células de combustível. A Nissan realizou testes com um protótipo no Brasil em 2016 e 2017 e agora se prepara para uma segunda etapa este ano em parceria com o parceria com o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). A vantagem é ter um veículo elétrico de baixa emissão compensável, sem dependência de recarregadores e com autonomia parecida de um motor a combustão. Seria perfeito se a tecnologia não fosse tão cara e por isso ainda inviável comercialmente.
Há mais de 20 anos pesquisadores e fabricantes trabalham para viabilizar as células de hidrogênio na propulsão automotiva, até agora sem sucesso. É desconhecido quanto tempo mais será necessário para tornar essa tecnologia comercialmente viável, por isso muitos fabricantes colocaram essa ideia de lado, considerando mais rápida e barata a eletrificação pura via baterias de lítio. Mas as pesquisas devem continuar e poderão trazer uma virada tecnológica se os custos forem equacionados. Para encaixar o etanol com maior êxito na tendência global de eletrificação, esse tipo de pesquisa deveria ser incentivada com urgência no País.
Se o Brasil insistir em apostar no futuro motor a combustão – mesmo que seja flex e muito eficiente –, corre o risco de tornar-se o guardião de uma tecnologia obsoleta no mundo desenvolvido, permanecendo atrás na evolução tecnológica da indústria automotiva.
Muitas fabricantes europeias, encurraladas por uma rigorosa legislação de redução de emissões, já declararam que a partir de 2030 pretendem abandonar a produção de veículos a combustão e converter suas linhas para a fabricação só de elétricos. Na prática, isso quer dizer que as subsidiárias brasileiras terão de investir sozinhas no desenvolvimento de tecnologia que as matrizes nos países industrializados não querem mais usar.
Para se ter ideia de como esse barco da evolução tecnológica está navegando no rumo da eletrificação nos três maiores mercados do mundo, o BCG aponta que até 2035 os carros 100% elétricos a bateria (BEVs) vão dominar 54% das vendas nos Estados Unidos, com mais 15% de híbridos (HEVs e PHEVs), 29% de híbridos leves (MHEVs, com motor elétrico somente para impulsão) e apenas 2% movidos puramente a gasolina.
Para os países da União Europeia, a projeção é que os BEVs vão dominar 62% do mercado no horizonte de 15 anos, com 11% de híbridos e 23% de MHEVs, deixando 3% para a gasolina e 1% para o diesel. Na China, a previsão é de banimento total de veículos leves equipados só com motor a combustão até 2035, quando 58% das vendas concentradas em elétricos, 18% em híbridos e 23% em MHEVs com circuito de 48V.
Esse cenário prediz que algo como 70% do mercado global de veículos ao fim desta década será dominado por carros puramente elétricos ou eletrificados em algum grau. Portanto, é para lá que a tecnologia corre, com tendência de reduzir muito o preço dos BEVs. Uma projeção da agência Bloomberg indica que o custo das baterias, hoje equivalente a 48% do valor de um veículo elétrico, vai descer para 18% até 2030, equiparando os preços de modelos similares a combustão.
Se essa equiparação realmente acontecer, a hoje ainda alta barreira do preço de aquisição de um veículo elétrico será eliminada, tornando os modelos a bateria até mais baratos quando se leva em conta que os gastos com abastecimento são 50% menores na comparação com a gasolina, e os custos de manutenção caem cerca de 30%, segundo cálculos da Volkswagen na Europa, porque o powertrain elétrico tem menor número partes móveis, não usa lubrificantes, quebra menos.
Claro que ainda há muitas questões a responder nessa guinada à eletrificação, como autonomia ainda relativamente curta para tempos de recarga ainda longos, número insuficiente de recarrregadores para as pretensões de multiplicar as vendas de elétricos em tão pouco tempo, além de fontes “sujas” de geração de energia que no ciclo poço à roda tornam o carro elétrico europeu mais emissor de CO2 (54 gramas por km) do que um automóvel brasileiro movido 100% a etanol (37 g/km).
Há riscos, mas a tecnologia também está evoluindo rápido em busca de soluções. Nesse cenário, melhor não nadar contra a maré, para não morrer afogado sozinho em um mar de etanol.
Automotive Business é parceira do Motor1.com Brasil. Trata-se de uma plataforma de conteúdo sobre o setor automotivo com foco em gerar informações de alta credibilidade e fomentar negócios e relacionamento na indústria, com profissionais que atuam no segmento.
Para mais informações, acesse www.automotivebusiness.com.br
Siga o Motor1.com Brasil no Facebook
Siga o Motor1.com Brasil no Instagram
RECOMENDADO PARA VOCÊ
Carros ficam ainda mais caros com eletrificação questionável
Fiat Mobi alcança 600 mil unidades produzidas em quase 9 anos de mercado
Ano tende a terminar pouco melhor, mas juro alto pode atrapalhar
VW revela novo Tiguan 2025 nos EUA e adianta SUV que pode vir ao Brasil
Motor turbo distorce tributação do carro 1.0 e amplia lucros
Quer apostar? Híbridos vão depreciar mais que elétricos daqui a 10 anos
Observatório Automotivo: Rota do híbrido flex tem bifurcação perigosa