Há não muito tempo, falamos que não havia mais nenhum carro no mercado abaixo dos R$ 30 mil. Isso valia pelo menos até o lançamento do Chery QQ Smile, vendido a R$ 25.990. R$ 26 mil, para bom entendedor. Mas a perspectiva é que isso deixe de valer em pouco tempo, a não ser que a Chery mantenha indefinidamente a estratégia de marketing de oferecer um modelo sem ar-condicionado mesmo que ele não venda. Porque ninguém mais quer carros sem ar-condicionado. Nem sem sistema de som, vidros elétricos e direção com assistência. Fora os desejos do consumidor, há também as leis que exigem carros mais econômicos. Para atendê-las, só há três caminhos: modelos mais eficientes aerodinamicamente, mais leves ou com motores mais modernos. Tudo isso custa caro. Em um mercado sensível a preço, como o Brasil, isso pode representar menos vendas. Como a indústria conseguirá conciliar o que o consumidor deseja com o que ele pode pagar?
"Hoje se exige tecnologia, o que é positivo para o cliente. Com as redes sociais, todo mundo sabe o que tem no mundo. O nível de exigência aumenta, mas isso tem um preço. É algo que a gente só consegue quando tem escala de produção, que permite baratear os veículos. À medida que o mercado brasileiro voltar a patamares de 3 milhões, 3,5 milhões de unidades, a gente acredita que conseguirá ganhar escala e segurar um pouco os preços", diz Antonio Megale, presidente da Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores). Segundo o executivo, só escala resolve a equação, mas há quem discorde.
Projeto original indiano, o Renault Kwid está sendo praticamente "refeito" para o Brasil
"Escala é importante, mas eu não vejo os carros baratos voltarem. Veja o caso do segmento A: mesmo lançamentos mais recentes como up! e Mobi acabam sendo caros. O Renault Kwid, desenvolvido para a Índia, teve de ter o projeto atrasado no Brasil para melhorar conteúdo e segurança", diz Julian Semple, consultor sênior da Carcon Automotive. "Enxergo um movimento como dos celulares, no qual os só com a função de telefone foram substituídos por smartphones cada vez mais caros e com mais conteúdo."
O movimento, para ele, seria irreversível. "A rentabilidade dos carros de entrada é muito baixa e os fabricantes ganham mais vendendo 1 carro de alto conteúdo do que 3 de baixo conteúdo. Veja o caso da FCA, por exemplo: ela ganha em Goiana, mas perde em Betim. A VW também: ela não vai lançar um novo Gol low-cost: prefere lançar o Polo aqui, mais caro e posicionado acima do Gol."
Em vez de lançar um novo Gol de "baixo custo", a VW vai apostar no novo Polo para o Brasil
Milad Kalume Neto, gerente de desenvolvimento de negócios da Jato do Brasil, concorda com Semple. "Acabou a era dos enormes lucros das montadoras. A cada ano, os lucros são menores, falando do percentual sobre veículo vendido. A preocupação em atender o consumidor e ter um preço atrativo tem que ser uma das principais. Ano após ano percebemos um aumento nos preços dos veículos. Por vezes, eles servem para mitigar os prejuízos causados pelas baixas vendas ou, em outras, para recompor os preços frente à inflação do período. Falar somente em aumento de preços é injusto com a indústria."
"Acabou a era dos enormes lucros das montadoras. A cada ano, os lucros são menores, falando do percentual sobre veículo vendido. A preocupação em atender o consumidor e ter um preço atrativo tem que ser uma das principais".
Se formos ver bem o mercado, quase ninguém mais quer ou pode comprar carros baratos. Subcompactos e compactos estão com vendas em queda, enquanto as de SUVs sobem. Sinal de que o consumidor brasileiro ficou subitamente rico, com alto poder aquisitivo? Pelo contrário. Quem tem menos dinheiro depende mais de financiamento para trocar de automóvel. E quem se endivida normalmente não abre mão de conforto, que pode ser diluído em várias parcelas. Se ninguém mais quer ou pode, para que oferecer?
"Veículos de entrada se tornaram mais equipados e isto é um fato mercadológico. HB20, Onix e Etios fundamentalmente puxaram o patamar de veículos de entrada para cima, com ampla gama de equipamentos tecnológicos que atraíram o consumidor. O volume de vendas destes veículos disparou ao se comparar a outros competidores tradicionais que já vinham carregando o cansaço de imagem. A estes restou o mercado de vendas diretas. De altos volumes, mas menor margem", diz Neto.
HB20 e Onix elevaram o padrão dos compactos e hoje são os carros mais vendidos do país
Como o mercado brasileiro é muito sensível a preço, o risco que corremos é de ver modelos muito mais simples do que os vendidos no exterior, ainda que tenham o mesmo nome. "O nível dos standards das empresas é algo que a gente precisa trabalhar. Quando você trabalha com referências internacionais, tem de entender se esses padrões são os adequados para o Brasil. O cliente quer ter uma série de equipamentos, mas talvez não precise ter outros. Fica a questão: o que a gente deve colocar no carro para assegurar que ele seja o mais barato possível para o consumidor, mas que tenha também todos os equipamentos importantes que ele exige? Essa é uma luta diária que as empresas enfrentam", diz o presidente da Anfavea.
"O cliente brasileiro é muito exigente e muito bem informado. Ele não aceita mais produtos tecnologicamente defasados. Algumas empresas tentaram colocar no mercado e não tiveram sucesso".
Megale estaria no caminho certo, segundo John Jullens, diretor da Strategy &, equipe de consultoria de estratégia da PwC (Price Waterhouse Coopers). "A decisão principal para os fabricantes é se eles adotam uma estratégia de baixo custo, que reduz os conteúdos não-relacionados a segurança (e aceita margens de lucro mais baixas), ou redesenha o veículo para que ele custe pouco (e mantém margens de lucro mais gordas). A Baojun, chinesa da GM, é um bom exemplo de estratégia de baixo custo, que é preferível no longo prazo. Mas ela exige investimento pesado e recursos locais de engenharia. Ela também tem implicância além do produto propriamente dito, como o modelo de negócios, a cadeia de fornecedores etc. Em outras palavras, é um conjunto complicado de decisões e compromissos, mas, se for feito corretamente, pode ser muito lucrativo."
Será que a indústria brasileira dará uma guinada em direção a modelos de baixo custo? Fora a Renault, que no Brasil é quase toda Dacia, isso parece pouco provável. Diante disso, é possível que tenha chegado o momento de dar adeus a carros 0 km acessíveis. A ideia não pegou nem mesmo na Índia, onde o carro mais barato do mundo, o Tata Nano, sofreu com a rejeição dos consumidores. Ninguém queria ser visto em um modelo de baixo custo. "Esses carros mais caros estão fazendo um movimento de não ter mais modelos baratinhos de entrada. Eles agora são os seminovos, como mostra o crescimento do mercado de usados nos últimos anos", diz Semple.
Chery QQ Smile: custa R$ 26 mil, mas, sem ar nem direção assistida, tem poucas chances de sucesso
A última esperança é o plano de longo prazo da Anfavea vingar. Com uma reforma tributária que reduza a carga de impostos sobre os carros dos atuais 35%, em média, para algo próximo dos 6% dos EUA, uma melhoria em infraestrutura que reduza os custos de frete e volumes de produção que tornem os custos de produção mais baixos. "Na nossa visão, a questão tecnológica é irreversível. O cliente brasileiro é muito exigente e muito bem informado. Ele não aceita mais produtos tecnologicamente defasados. Algumas empresas tentaram colocar no mercado e não tiveram sucesso. O segredo é conseguir produzir de uma forma mais barata. E isso a gente só consegue ganhando produtividade e competitividade", diz Megale. A ver...
Fotos: divulgação e arquivo Motor1
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