Quando o carro é usado para matar
Caso recente nos faz lembrar de assassinatos que ficam sem punição por serem cometidos por gente que usa a habilitação como licença para matar
Você muito provavelmente ficou sabendo da morte de Daniel Masson, 35. Se não ligou o nome à pessoa, ele foi o rapaz que, numa noite de sábado (18), foi atropelado e morto pela namorada, a estudante Francine Suati de Lima. Segundo ela, Masson se jogou em frente ao carro e ela não soube o que fazer, indo e voltando sobre o corpo dele várias vezes. Segundo testemunhas e o vídeo de câmeras de segurança que registraram a discussão e o atropelamento, Francine o agrediu, o perseguiu com o carro, entrou na mão oposta à sua e o atropelou de propósito, dando ré e acelerando novamente depois de o atingir (pelo menos 3 vezes). Por conta deste entendimento, ela foi presa em flagrante por homicídio doloso por motivo fútil, teve sua prisão convertida em preventiva e um pedido de habeas corpus negado. O fim da história de Masson poderia se tornar o começo de uma mudança de paradigma, mas corre o risco de ser mais uma na qual o carro pode ser usado para matar. Sem maiores consequências.
A história não é nova. No Brasil, cerca de 50 mil pessoas morrem no trânsito por ano. E as prisões brasileiras enfrentam hiperlotação, com uma população carcerária de 622 mil condenados, mas não se tem notícia de que entre eles estejam pessoas que matam no trânsito. Isso porque, apesar de o Código de Trânsito Brasileiro ter sido modificado em 2014 pela lei 12.971/14, a lei continua branda. Ela inseriu agravantes para dirigir embriagado ou sob a influência de outras drogas, mas a pena continua a ser a de homicídio culposo. Muita gente preferia que a presunção fosse de homicídio doloso, ou seja, com a intenção de matar. Afinal de contas, quem dirige sem condições deveria saber que vai acabar matando alguém. Mas continua tudo igual.
Isso leva a absurdos como o que vimos no caso de Masson e até a coisas piores. Na China, por exemplo, existe um fenômeno conhecido como "hit and kill" sobre o qual já escrevi algumas vezes. Ele se resume ao seguinte: quem atropela alguém na China não socorre. Prefere matar. Sai 10 vezes mais barato pagar indenização à família do morto do que pagar despesas médicas ou indenizar alguém que tenha sofrido lesão por atropelamento. Jogue "hit and kill" no Google e ele mesmo completa: hit and kill China. Já falamos muito disso em outros artigos. Neste, preferimos apenas citar que ele infelizmente existe. E segue uma lógica horrível de conceber. Mas que, infelizmente, também acontece no Brasil. Com raízes históricas.
O historiador Nicolau Sevcenko defendeu em uma de suas palestras, ministrada na sede do jornal Folha de S.Paulo, que matar ao volante era prática recorrente e sem maiores consequências desde o início da história do automóvel no país. Citou uma série de exemplos, sendo um dos mais fortes o conto “O monstro de rodas”, publicado no livro “Brás, Bexiga e Barra Funda”, de Antônio de Alcântara Machado, de 1927. A história mostra o luto da família de uma menina atropelada por um ricaço e a indignação com o fato de que aquilo ficaria por isso mesmo. "Gaetaninho" também se encaixaria como exemplo ao mostrar como eram comuns os atropelamentos. Segundo Sevcenko, os motoristas chegavam a mirar nos pedestres, atropelando-os por diversão. Foi uma pena o historiador ter morrido em 2014. Tentei várias vezes resgatar sua palestra, mas não consegui. E surgem mais e mais exemplos de que matar ao volante é certeza de impunidade.
Em 11 de outubro de 2013, em Salvador, depois de uma discussão no trânsito, a médica Kátia Vargas Leal Pereira perseguiu e atropelou Emanuel Gomes Dias e sua irmã, Emanuele, que estava na garupa de sua moto. Tudo registrado em vídeo (o que você pode ver acima).
Ela responde por homicídio triplamente qualificado e deve ir a júri popular. Esperava-se que fosse julgada no ano passado. Talvez ele aconteça este ano. Talvez ano que vem. Depois que acontecer, Kátia pode apelar ao STF e esperar o julgamento em segunda instância em liberdade. O goleiro Bruno conseguiu...
Em 7 de maio de 2009, o deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho, do Paraná, voou com sua VW Passat Variant blindada a 190 km/h pelo teto do Honda Fit de Gilmar Rafael Souza Yared, de 26 anos. Numa das principais avenidas de Curitiba. Ele havia bebido. No acidente, além de Yared, morreu também Carlos Murilo de Almeida, de 20 anos. O caso deve ir a júri popular este ano se os recursos do ex-deputado não forem mais aceitos. A demorar mais tempo, o processo corre o risco de prescrever. Como já aconteceu com tantos outros casos que contam com a ineficiência da Justiça brasileira para garantir a impunidade.
A história de Masson terminou naquela noite de sábado. A do julgamento de sua morte, se é que ele vai acontecer, deve se arrastar por anos. Enquanto isso, novas histórias pipocam na internet, como a de Victor Pinheiro, o ciclista atropelado de propósito em São Paulo, por sorte sem outras consequências que arranhões e indignação. Segundo a repórter que o entrevista, o motorista, se for encontrado, pode responder por lesão corporal culposa, ou seja, sem intenção de matar. Se você viu o vídeo, há de concordar que o que acontece é tentativa de homicídio.
O trânsito brasileiro mata 50 mil pessoas por ano. E o que mais choca é saber que uma parcela expressiva de toda essa gente pode ter sido morta de propósito. Sorte dos assassinos terem escolhido a arma certa para a empreitada. Uma que não exige porte, mas que transporta os malfeitores para onde eles quiserem. Inclusive para longe da cadeia onde eles deveriam estar.
Fotos: reprodução
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