Existem coisas que são difíceis de explicar na burocracia, mas que acontecem mesmo assim. Um amigo de longa data, Marcelo Pizani, entrou em contato conosco depois de ter visto algo curioso na TV: o anúncio do recall de um único Mercedes-Benz ML 350. Será que a marca alemã não tinha o contato do cliente? Resolvemos investigar o curioso caso do recall de um carro só.
Em contato com a Mercedes-Benz, a marca nos informou que já havia falado com o cliente sobre o problema em seu carro, mas que, por lei, ela era obrigada a veicular o aviso também em rádio, imprensa e televisão. E é verdade. O Código de Defesa do Consumidor, conhecido nos meios jurídicos como a lei federal 8.078/90, estabelece em seu art. 10 o seguinte:
Artigo 10 – O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.
§ 1º - O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários.
§ 2º - Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço.
§ 3º - Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito.
Independentemente de o risco já ter sido tirado do caminho, e do tamanho da frota afetada, o "fornecedor" tem de fazer os anúncios em rádio, TV e nos jornais. Como se eles garantissem que o consumidor vai cuidar de sua segurança como deveria se for devidamente avisado... Não vai. Não por aqui.
A verdade é que apenas 6% dos recalls convocados no Brasil de 1998 a setembro de 2014 haviam sido concluídos, como falei em uma reportagem minha de 2015. A estimativa de atendimento, em um universo de 10,5 milhões de veículos convocados de 1991 a 2014, era de 630 mil carros consertados...
Eis aí uma pauta interessante para retomar e atualizar, especialmente agora que há um projeto para impedir o licenciamento dos carros que não tiverem sido corrigidos devidamente. Essa é a proposta do projeto de lei 4.637/2012, de autoria do deputado Guilherme Mussi (PSD/SP).
Liberais dirão que é o Estado se metendo de novo onde não é chamado, mas, infelizmente, no Brasil as coisas só parecem funcionar dessa forma. Na base do "sem coerção, não há solução". Como a lei do cinto de segurança, a que impôs a instalação de airbags dianteiros e por aí afora. Mas ela pode ser exagerada, como no caso do ML 350 solitário.
Se o dono do carro já foi contatado, e provavelmente já agendou para corrigir o veículo, por que veicular uma propaganda no rádio e na TV? O perigo já não foi eliminado? O recall não foi 100% atendido? Então para que tanto furdunço? Fica o questionamento. E a certeza de que as coisas poderiam ser bem mais simples e efetivas.
Fotos: reprodução e Marcelo Pizani
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