É difícil acontecer, mas mesmo entre nós jornalistas especializados às vezes aparece algum carro ou moto que nos intimida. Confesso que ocorreu comigo no primeiro contato com a Kawasaki Z800. Explico: estava chovendo na tarde em que fui buscá-la para esta avaliação e, apesar de não ser uma superesportiva, a nova Z despeja nada menos que 113 cavalos de potência na roda traseira sem o auxílio do controle de tração. Ou seja, mesmo para quem tem uma 800 na garagem, como é meu caso, essa Kawa pede cautela - ainda mais quando o chão está escorregadio!
Fui direto para casa pilotando "na ponta dos dedos", trocando de marcha em giros mansos e antecipando reduções e frenagens. Ainda assim, era possível sentir a traseira nervosa querendo passar a frente nas acelerações sobre o piso molhado, enquanto o motorzão de quatro cilindros implorava para que eu deixasse de ser cagão e virasse o punho na manopla direita. "Mais tarde", pensei comigo mesmo. E foi o que fiz: cheguei são e salvo, encostei a Z na garagem e fui escrever uns textos para mudar os ares. Mas aquela intimidação estava me incomodando, eu precisava me entender com aquela moto. Pois à noite o tempo melhorou, o asfalto secou e lá fomos nós discutir a relação que começou conturbada.
Com tudo seco e a aderência retomada, a Z800 não se mostrou tão agressiva quanto na chuva, e aí o que era precaução se transformou rapidamente em alegria. O motor derivado da Z750, mas com a capacidade cúbica aumentada para 806 cm3 (o diâmetro dos pistões foi de 68,4 mm para 71 mm, mantendo o curso em 50,9 mm), é o destaque absoluto desta moto: trabalha suave como uma seda e sobe de giro com uma fome absurda. É impressionante, parece que o motor não acaba nunca! O conta-giros em barras (que pode ser configurado em três modos) praticamente trepa de escala nas arrancadas, ao passo que o velocímetro digital exibe valores proibitivos em questão de segundos. Em menos de 4s, por exemplo, ele já está mostrando os 100 km/h no visor.
Basta uma volta na Z800 para entender a paixão dos motociclistas mais esportivos pelos motores tetracilíndricos, dadas as respostas instigantes e o funcionamento bastante liso em qualquer faixa de rotações. Quem está de olho em uma naked média, porém, também encontra algumas opções com motor bicilíndrico, como a BMW F800R, que tem a mesma litragem da Z800, embora com metade dos cilindros. Em teoria, estamos diante de duas nakeds 800. Mas, na prática, qual seria a diferença de comportamento entre elas? Para descobrir, reunimos a Z800 e a F800R num passeio na cidade, na estrada e num trecho sinuoso. E para uma opinião, digamos, mais afiada, chamei ninguém menos que André Veríssimo, piloto CARPLACE de motovelocidade e atual líder da categoria 600 do Campeonato Brasileiro de Moto1000 GP.
Ex-proprietário de uma Z750, Veríssimo logo brilhou os olhos em cima da Z800. Em termos de arrojo visual, dá para dizer que poucas nakeds no mundo chegam ao nível desta japa. As linhas angulosas, cheias de quinas, e o farol pra lá de invocado (parece o olhar do "bad boy") deixam a Kawa com cara de poucos amigos. A rabeta fina com a belíssima lanterna que acende em forma de dois "Z" e os freios com disco tipo margarida completam o pacote. Só achei o revestimento com estampa também em "Z" no banco um tanto exagerado, além do tecido ser escorregadio. Já o André curtiu os suportes bem definidos para os pés na lateral, quando em posição esportiva.
A F800R é a sobriedade em forma de moto quando colocada ao lado da Z800. As linhas da BMW são mais suaves e arredondadas, harmonia quebrada apenas pelo farol de formato irregular. Legal também são os piscas de LEDs. Diferente da rival, há uma pequena bolha para desviar o vento do piloto, instalada acima do painel. Por falar nele, o quadro de instrumentos segue o estilo de cada moto: radical na Kawasaki, com três visores totalmente digitais e de formato bastante recortado, em contraste com o mais tradicional da BMW, com instrumentos analógicos e um computador de bordo mais completo - com tempo de volta, por exemplo. Novidade apontada pelo André na Z800 em relação à Z750 é o mostrador de consumo médio, além da luzinha "eco" que acende quando você pilota em ritmo econômico.
Para ver essa luzinha acender é preciso uma boa dose de autocontrole, pois tudo que essa Kawa quer é acelerar - e forte. O conta-giros com escala até 14 mil rpm não está ali de enfeite, e a cavalaria japonesa se manifesta com clareza depois que o motor supera os 6 mil giros. Mas isso não significa que a Z800 deixe a desejar em rotações mais tenras. Afinal, o torque de 8,5 kgfm a 8.000 rpm não demora a empurrar e a relação curta das marchas desta Kawa (são seis) deixam a moto "viva" em qualquer situação. Você pode acelerar com giro baixo em sexta que a Z800 responde. E pode andar de 80 km/h a mais de 200 km/h (em pista fechada, claro) na mesma marcha!
Motores de dois cilindros tendem a entregar torque de maneira mais rápida que os quatro cilindros, e em rotações menores. De fato, o bicilíndrico da BMW dispõe de bons 8,8 kgfm a 6.000 rpm, número que proporciona uma saída quase tão esperta quanto a da Z800 (0 a 100 km/h em pouco mais de 4s). Mas, daí pra frente, os 87 cv não conseguem acompanhar os 113 cv da rival e a Kawasaki some no horizonte. Não é força de expressão: enquanto na Z800 o motor passa das 12 mil rpm, na F800R ele acaba bem antes, a 8.500 rpm. Além disso, a BMW tem relação longa (principalmente na quinta e na sexta), exigindo mais reduções de marcha.
Mas as diferenças não ficam só no desempenho. O ronco das máquinas também é completamente diferente: limpo e agudo no tetracilíndrico japonês, grave e "embaralhado" no bicilíndrico europeu. Escolher entre um dos dois é pura questão de gosto: eu fico com o da BMW em baixa e com o da Kawa em alta, pode ser? Ah, mas só a BMW dá aqueles estouros no escape em reduções, o que ajuda a empolgar numa condução esportiva. Só que o funcionamento do motor da Z800 é praticamente isento de vibrações, bem diferente do propulsor da F800R. Com a moto parada, é possível notar a bolha dianteira da BMW vibrando por causa do motor, e acima dos 140 km/h essa vibração é sentida também no banco do piloto. Veríssimo reclamou ainda da vibração no guidão, que fez seus dedos ficaram dormentes após algum tempo de pilotagem. Na Kawa, o único incômodo na estrada é a total falta de proteção aerodinâmica, que deixa o vento todo no peito do piloto.
Com relação ao comportamento dinâmico, Kawasaki e BMW voltam a divergir. Mais leve e estreita, a F800R vai melhor na cidade, sendo mais ágil para desviar dos carros e mostrando ótimas (e prontas) respostas dos freios Brembo. André também elogiou a facilidade de mexer manualmente no ajuste da suspensão traseira, sem necessidade de ferramenta (como no caso da Z800), mas achou que a BMW tem acerto mais macio, que não oferece a mesma precisão da japonesa em curvas velozes e "mergulha" mais em frenagens fortes - apesar de ser bem estável. No entanto, o piloto apreciou a presença do amortecedor de direção, item que ajuda a atenuar a transmissão das imperfeições do piso para o guidão.
A Z800 requer alguma adaptação com o tanque volumoso entre as pernas, além de seus "parrudos" 231 kg pedirem mais atenção nas manobras em baixa velocidade. O peso elevado se deve principalmente ao quadro de aço, enquanto a F800R usa alumínio (e pesa 199 kg totais). Fora isso, a Kawa tem o assento mais alto que o da BMW, complicando um pouco a vida dos baixinhos nas paradas. Mas, mesmo mais "gordinha", a Z800 não pode ser acusada de "empaca trânsito" na cidade, onde ela circula com certa facilidade depois que nos acostumamos. Para mim a suspensão se mostrou um tanto ríspida nos buracos, mas Veríssimo achou que existe até certo conforto dada a vocação mais "devoradora de curvas" da Z800. Aliás, comparando com a antecessora Z750, André ficou bem impressionado com a evolução do conjunto numa tocada mais nervosa: "A 800 ficou bem mais acertada, sem as torções da 750, que era bem mais arisca para pilotar". Veríssimo também elogiou a resposta dos freios, mas achei que, pelo que ela anda, as alicatadas deveriam ser mais imediatas.
Duas personalidades diferentes, mas igualmente apaixonantes. A F800R é uma moto mais racional, que tem o banco generoso para uma naked (bem mais confortável para o garupa do que o "toquinho" na rabeta da Z800) e ainda uma alça na traseira. Além disso, ela se vira melhor no trânsito e, por trabalhar em giros mais contidos, também bebe menos: registramos média de 17,2 km/l durante a avaliação. Já a Z800 tem uma proposta mais individual e focada no desempenho puro, não sendo feita tanto para o dia-a-dia, mas proporciona maior prazer nas esticadas pelo motorzão fabuloso e tocada mais firme. O consumo médio foi de 14,8 km/l andando nas mesmas condições que a BMW.
Para complicar a escolha, as duas começam com preços semelhantes: R$ 36.900 a BMW e R$ 35.990 a Kawasaki. Mas vale lembrar que na Z800 o sistema ABS (altamente recomendado) é opcional e eleva o valor de tabela para R$ 38.990. Fora isso, a F800R pode ser encontrada com desconto em São Paulo, na faixa de R$ 35 mil à vista, enquanto a Kawa ainda transpira novidade e é oferecida na versão com ABS por cerca de R$ 40 mil, também na capital paulista. Ambas são montadas em Manaus (AM) e contam com dois anos de garantia. Seguro? Melhor para quem optar pela BMW, pois infelizmente as motocas de quatro cilindros são também as mais visadas pelos amigos do alheio...
No desligar dos motores, é interessante observar que apesar de serem modelos semelhantes no conceito (nakeds médias de 800 cc), Z800 e F800R são tão diferentes que, na real, elas foram feitas para consumidores distintos. Antes de se decidir por uma delas, então, é bom ter em mente exatamente o que você quer da sua próxima moto!
Por Daniel Messeder
Fotos Rafael MunhozAgradecimento à concessionária Eurobike BMW pelo empréstimo da F800RFicha técnica - Kawasaki Z800Motor: quatro cilindros em linha, quatro válvulas por cilindro, comando duplo no cabeçote (DOHC) e refrigeração líquida, injeção eletrônica, 806 cm³; Potência: 113 cv a 10.200 rpm; Torque: 8,5 kgfm a 8.000 rpm; Câmbio: seis marchas; Transmissão final: corrente; Quadro: estrutura tubular de aço; Suspensão dianteira: garfo invertido de 41 mm com retorno e pré-carga da mola ajustáveis (120 mm de curso); Suspensão traseira: monoamortecida com retorno e pré-carga da mola ajustáveis (137 mm de curso): Freio dianteiro: disco duplo de 310 mm em formato margarida, pinça dupla oposta com quatro pistões; Freio traseiro: Disco simples de 250 mm em formato margarida, pinça com pistão simples; Pneus: 120/70 ZR17 na frente e 180/55 ZR17 atrás; Medidas: comprimento 2.100 mm, largura 800 mm, altura 1.050 mm, entre-eixos 1.445 mm, altura do assento 834 mm; Peso: em ordem de marcha 231 kg; Tanque: 17 litros
Ficha técnica - BMW F800RMotor: dois cilindros paralelos, quatro válvulas por cilindro, comando duplo no cabeçote (DOHC) e refrigeração líquida, injeção eletrônica, 798 cm³; Potência: 87 cv a 8.000 rpm; Torque: 8,8 kgfm a 6.000 rpm; Câmbio: seis marchas; Transmissão final: corrente; Partida: elétrica; Quadro: dupla trave superior em alumínio; Suspensão dianteira: garfo telescópico de 43 mm de diâmetro com ajuste de pré-carga e retorno (125 mm de curso); Suspensão traseira: balança traseira de alumínio com amortecedor centralizado (125 mm de curso): Freio dianteiro: disco duplo flutuante de 320 mm com pinça de 2 pistões e ABS; Freio traseiro: disco simples de 265 mm com pinça flutuante de 1 pistão, com ABS; Pneus: 120/70-17 na frente e 180/55-17 atrás; Medidas: comprimento 2.145 mm, largura 905 mm, altura 1.160 mm, entre-eixos N/D, altura do assento 800 mm; Peso: em ordem de marcha 199 kg; Tanque: 16 litros
Galeria: Avaliação: Kawasaki Z800 e BMW F800R - esportividade em quatro ou dois cilindros?