A trajetória da Gurgel conta com uma longa lista de automóveis. Começou por uma simpática mistura de bugue com jipe, que ganhou o nome de Ipanema, passando depois para o utilitário Xavante, posteriormente rebatizado de X-12. A marca teve até um veículo elétrico, o Itaipú, chegando finalmente aos carros de passeio em 1984, com o XEF.
Além de engenheiro e industrial, João Amaro Gurgel foi um verdadeiro brasileiro. Ele acreditou no potencial do país ao idealizar o primeiro automóvel totalmente projetado e fabricado no Brasil numa época de economia instável, quando a inflação atingia números alarmantes e tinha consequências selvagens.
Gurgel vinha idealizando esse projeto desde os tempos de faculdade, ainda com o nome provisório de “Tião”. Mas o BR-800 só se tornou viável após a empresa estar estabilizada financeiramente, graças ao sucesso de seus utilitários, que ganharam fama inclusive fora do Brasil pela valentia e boa construção. Com o lançamento do BR-800 em 1988, o sonho de produzir um automóvel urbano estava realizado.
Para lançar o "city-car", João Gurgel teve uma iniciativa até então inédita no Brasil: abriu o capital da empresa. Assim, cada interessado em adquirir um BR-800 deveria comprar um lote de 750 ações da Gurgel, no valor de 3.000 dólares pelo carro e 1.500 dólares pelas ações, tendo prioridade na aquisição do automóvel junto com sorteios mensais.
Todos os lotes de ações foram vendidos rapidamente, mostrando a confiança dos consumidores no automóvel brasileiro. A arrecadação atingiu cerca de 60 milhões de dólares, viabilizando a conclusão do projeto e a ampliação da fábrica localizada em Rio Claro, no interior de São Paulo. No início de 1988, João já tinha vendido 10.000 ações da empresa.
O XV Salão do Automóvel foi o palco de lançamento do BR-800, que atraiu grande público por oferecer uma proposta simpática, simples e econômica. Quando começou a ser produzido em série, durante o Governo Sarney, o compacto inaugurou a era do "carro popular" (antes do Uno Mille), com benefício fiscal do IPI - depois estendido aos modelos de mil cilindradas de diversos fabricantes. No começo, somente o pequeno Gurgel tinha o privilégio, pagando apenas 5% de IPI, enquanto os demais veículos pagavam pelo menos 37%. Só que o sistema de vendas inicial, junto com lotes de ações da marca, deixava o carrinho mais caro que os rivais da VW e Fiat.
O motor desenvolvido pela Gurgel era um projeto único no mundo: fundido em liga de alumínio-silício, foi batizado como Enertron, com uma ignição controlada por um microprocessador que eliminava a necessidade de distribuidor, pois o disparo era simultâneo nos dois cilindros. Com 800 cilindradas, rendia 34 cv de potencia e podia ser levado a praticamente 6.000 rpm sem flutuação de válvula. Mas a economia era sua maior estratégia: o BR-800 obtinha uma média de 21 km/l de gasolina na estrada, número expressivo ainda nos dias de hoje. Para tanto, os engenheiros brasileiros trabalharam para extrair o melhor do propulsor, usando um câmbio de quatro marchas, tanque de 41 litros e reduzindo o peso do carro para apenas 650 kg.
Criação inteiramente brasileira, a suspensão dianteira usa amortecedores feitos pela própria Gurgel. Os chamados "spring shock" possuem mola capsulada dentro de um cilindro blindado cheio de fluido viscoso. Ou seja, ao invés de um amortecedor hidráulico separado, os dois componentes eram reunidos em uma só unidade. Já a traseira usava feixes de mola.
Os traços retos da carroceria, junto ao capô inclinado, davam um ar de modernidade ao projeto. O BR-800 era bem-visto entre os jovens que procuravam um carro diferente do que era oferecido pelas grandes fabricantes naquela época. O interior não escondia a proposta simplória do modelo, trazendo um painel com apenas os mostradores necessários. Os bancos confortáveis forneciam uma boa posição para dirigir e a alavanca de câmbio, com engates fáceis, ficava bem à mão. Era tudo projetado para ser prático.
Motomachine, o "Smart brasileiro"
No Salão do automóvel de 1990, a Gurgel exibiu ao público um laboratório para mostrar como seria o próximo carro urbano da marca. O Motomachine veio para trazer um novo olhar sobre o que é dirigir pela cidade de uma maneira ainda mais prática do que no BR-800 - uma proposta parecida com a do Smart atualmente. Mesmo sendo pouco menor do que o BR, o Motomachine tinha espaço suficiente para dois ocupantes.
As portas de acrílico eram realmente úteis, pois ao estacionar não havia nenhum ponto cego. Além disso, era possível transformar o Motomachine: ele vinha com uma capota de lona e outra de fibra de vidro removível. Rebatendo o para-brisa para cima da área do teto, oferecia a liberdade e a emoção de uma moto com o conforto e a segurança de um carro.
A ideia de Gurgel era vender o Motomachine como uma experiência para observar como os consumidores reagiriam à próxima geração de seus carros de passeio. Com cerca de 3 mil unidades comercializadas do BR-800 e 177 do Motomachine, a marca vinha se fortalecendo em um novo segmento, começando a explorar e entender o transporte urbano. Além da exclusividade de ser conversível, o Motomachine trouxe boa aprovação perante os novos consumidores, motivando João Gurgel a introduzir o Supermini em 1992 - uma evolução do BR-800 e tema para uma próxima conversa.
Por Júnior Almeida
Fotos cedidas gentilmente por Ricardo Gurgel
Galeria: Carros para sempre: Gurgel BR-800 - O legítimo compacto nacional